DE ARAKEN A NEYMAR, SEMPRE O MELHOR

Há oito anos, na quinta-feira, 19 de abril de 2012, desci a Serra bem cedo, mas não foi só para ver o Peixe na Vila. Fui passar o dia perto do mar, lembrando do pai que me legou a paixão pelo Santos e que estaria fazendo 101 anos. Serão 119 em duas semanas. Acho até que o vi pular uma onda, feliz ao lado da Dolores e da filharada

Para mim, o Santos é o melhor do mundo desde a metade dos anos 1950, quando passei a ver com meus próprios olhos de garoto do Marapé, na Grande Vila Belmiro, o que o time de branco era capaz de fazer com a bola e com os adversários. Mas também sei que o Santos é o melhor desde muito antes, porque meu pai falou que era, ele que viu jogar os lendários times de Arakén, Feitiço, Athié e Antoninho Fernandes. Ele garantia que já naquelas épocas nada havia de parecido no mundo do futebol – e o velho Fonseca nunca mentiu.

Não sei se todos sabem, mas nós somos Peixe desde antes do Peixe, porque o mais Fonseca de todos nós veio ao mundo exato um ano antes do time, em abril de 1911, na mesma cidade de Brás Cubas e de Nossa Senhora do Monte Serrat. É bastante provável que antes do fim daquela década o Fonsequinha – como mais tarde ficou conhecido da Vila Mathias à Ponta da Praia, da Praça dos Andradas ao José Menino – botasse banca com os feitos santistas. Colocou, por exemplo, três atletas, incluindo o capitão Arnaldo Silveira, na seleção que conqauistou a Copa Roca de 1914 e do Sul-Americano de 1919.

Pois, é! Meu pai dizia que o Santos foi formidável também nesses primórdios e só não conquistou os títulos que viriam aos montes na segunda metade do centenário porque era invariavelmente prejudicado pela arbitragem. Já naquela época, os donos do futebol, os times da capital e seus empertigados torcedores, sofriam por ter de engolir a supremacia forasteira. Ainda mais vinda de um lugar que ousava concorrer com a metrópole em relevância política e cultural, sem falar nas praias inexistentes no alto da Serra e na desenvoltura da gente santista. O Santos era o máximo e a cidade, também.

Mas essa é só a primeira parte da mais bela história escrita dentro de um campo de futebol. A primeira e a menos conhecida. A segunda parte, que tive a felicidade de acompanhar e que continua enchendo de felicidade os corações alvinegros, dispensa relatos e adjetivos. Está fartamente documentada e, no conjunto da obra, é comemorada onde quer que haja um amante da arte da bola. Onde quer que estejam os craques de ontem e de hoje. Onde quer que pulse um sentimento praiano e vibre uma alma fonseca.

CONVERSA COM O CAPITÃO (III)

Caro Zito,

Você, mais do que ninguém, sabe que o Santos é universal. Nas nossas eleições, vem gente de todo lugar. Do Mato Grosso, do Norte do Paraná, do Nordeste, de Brasília. Alguns nem podem votar. Vêm para viver um momento importante do clube. Outros, nos mais distantes pontos do mundo, ficam na internet, ávidos por notícias. É impressionante o que esse time faz com a gente, não importando se santistas recentes ou antigos, de perto ou de longe.

É por isso que eu não me conformo quando vejo santista que se considera mais santista do que os outros só porque, além de tudo, teve a sorte de nascer cercado pela moldura maravilhosa das praias e dos morros santistas. Esse santista, como eu e os demais filhos da Bela Dolores e do Bom Fonseca, tem o privilégio de ser santista em todos os sentidos, o que inclui as mais nobres marcas do caráter e molda nossa personalidade.

Em outras palavras, tivemos a felicidade de nascer nesse lugar bendito e no momento certo. Justo a tempo de ver se cumprir aqui o desígnio divino. O berço de Bartolomeu de Gusmão, dos sonhos libertários dos Quilombos, dos irmãos Andrada, dos movimentos sindicais, da arte de Wega Nery, dos sonhos de Pagu, da inspiração de Martins Fontes e Vicente de Carvalho, da genialidade de Plínio Marcos e do maestro Gilberto Mendes – esse berço embalaria também o maior espetáculo da Terra. Como não ser duplamente santista em tais condições?

E, além de tudo isso, Santos, para quem não sabe, é também a terra da liberdade e da caridade. Pois é porto, símbolo maior da hospitalidade da nossa gente. O que quero dizer, Zito, é que foi muito fácil, para nós, tão generosamente abençoados, sucumbirmos de corpo e alma a essa atração mágica, a essa paixão desenfreada pelo Peixe. Não temos méritos. Apenas tiramos o bilhete premiado.

Já o Santos que você ajudou a construir atraiu para a nossa cidade milhões de corações. É um incalculável capital de amor, força e competência, que alguns insensatos desprezam. Mas não se preocupe, Capitão. O nosso Santos é suficientemente grande para sobreviver a essa gente.

(fim)

Contra o dinheiro da MSI, o coração de Geílson

Não havia santista tranquilo no fim da tarde do domingo, 12 de fevereiro de 2006. Ainda em formação, o Santos de novo de Vanderlei Luxemburgo ia enfrentar o Corinthians, suposto campeão brasileiro do ano anterior, que já batia bola no Morumbi com Tevez, Nilmar e o recém-contratado Ricardinho, ex-Peixe.

O adversário era amplamente favorito. Além da base campeã, seguia contando com o dinheiro da nebulosa MSI e com a simpatia do STJD, dos árbitros, da CBF e da mídia. Seu título mais recente resultara justamente da inédita união dessas forças.

Entre os 18 jogadores santistas convocados por Luxemburgo estava Geílson. No banco. O jovem atacante estreara dois anos antes no time B, campeão da Copa Federação Paulista de Futebol e, no ano seguinte, foi promovido ao grupo principal pelo técnico Gallo. Em 2006, continuava tentando conquistar a confiança dos treinadores e da torcida.

Nem se precisa falar aqui de seres quase mitológicos, como Feitiço, Pagão e Coutinho. O Santos teve dezenas de centroavantes melhores do que o esforçado Geílson no escalão intermediário em que se encaixam, por exemplo, Paulinho McLaren e Guga.

O garoto, entretanto, embora marcasse pouco, tinha uma característica especial: fazia gols importantes. Meses antes, no dia 26 de outubro, ele abriu o marcador da vitória de 3 a 1 sobre o Vasco, no estádio de São Januário. Gol histórico, o 11.000º do Santos, único clube no mundo a atingir tal marca.

Mas agora, com a bola rolando, não eram boas as perspectivas de Geílson. Se tivesse de ir para o jogo, seria lá pela metade do segundo tempo, em condições adversas. Caso contrário, se o Peixe estivesse em vantagem, o técnico reforçaria a defesa e tentaria garantir o resultado. Ele continuaria no banco.

Tudo mudou, porém, aos 15 minutos, quando o centroavante Reinaldo se machucou. Geílson foi chamado por Luxemburgo e iniciou uma batalha desigual contra a defesa adversária, já que o jogo se concentrava no campo santista e a bola quase não chegava. Foi assim até o fim do primeiro tempo e assim prosseguiu durante quase todo o segundo.

Perto dos 30 minutos finais, o que era ruim piorou. Num escanteio, nosso zagueiro Luís Alberto foi para a área corintiana e sofreu pênalti não marcado pelo juiz. O zagueiro reclamou e foi expulso de campo. O Santos fechou-se ainda mais, já considerando o empate de 0 a 0 um grande lucro. Mas o predestinado Geílson estava em campo e reescreveu a história.

Foi aos 33 minutos. O volante Fabinho desarmou o ataque adversário e deu um chutão. A bola cruzou a linha central do gramado correndo junto à lateral direita. Geílson chegou antes dos zagueiros e, com um corte para o meio, driblou Betão e deixou Marinho para trás. Livre de marcação, foi até a frente da área e bateu de pé esquerdo. Preciso, bem no canto. Inalcançável para o goleiro Marcelo. Santos 1 a 0, placar final.

O momento mágico de Geílson lavou a alma da torcida. O garoto ainda marcaria mais um gol, o da vitória contra o Rio Branco, contribuindo com seis pontos para a reconquista do campeonato paulista. No total, em duas temporadas, disputou 51 jogos com a camisa do Santos e fez 14 gols. Ainda em 2006, sofreu uma contusão no joelho e, após meses de recuperação, foi emprestado ao Al Hasen, da Arábia Saudita. Na volta, foi para o Atlético-PR.

CONVERSA COM O CAPITÃO (II)

Caro Zito,

Imagine se, vindo de Taubaté, no início dos anos 1950, você encontrasse pela frente alguns desses torcedores que dizem: “O Santos é dos santistas. O Santos é de Santos. Não precisa de gente de fora.” Você teria voltado para o seu Vale do Paraíba e logo estaria em qualquer outro time. Não teria escrito uma das mais belas histórias da história do Peixe. Felizmente, aconteceu o contrário.

Você foi bem recebido, enturmou-se rapidamente com o elenco praiano e acostumou-se à cidade. Fez como o mineiro Formiga e associou-se ao clube o mais rápido possível. Anos depois, tornou-se o jogador mais importante do futebol brasileiro, como não canso de dizer, jogando ao lado do melhor jogador do mundo, no mais fantástico time que já se viu. Os provincianos daquela época, se existissem, teriam feito um belo estrago, se o rejeitassem.

E olhe que, de fato, podiam-se formar seleções brasileiras de altíssimo nível, apenas com jogadores da região. Era só ir pegando Gilmar, Olavo, Alfredo, Pavão, os irmãos Valente, Gonçalo, Antoninho Fernandes, Del Vecchio, Odair, Cláudio Cristóvão do Pinho, o cabecinha de ouro Baltazar, o “filé de borboleta” Pagão, o canhão da Vila Pepe… Timaços!

Dava gosto ver os craques incríveis que brotavam na região, como brotam siris nas praias de Cananeia a Paraty, como se reproduzem caranguejos nos mangues do rio Cubatão e do canal da Bertioga, como crescem bananeiras nos contrafortes da Serra do Mar, do Vale do Ribeira ao Vale do Paraíba. Esses eram então os limites da Grande Santos. Para não ir longe, era só atravessar o Canal 2 e selecionar as preciosidades que o velho Papa cultivava no viveiro de Ulrico Mursa. Ou descobrir onde o itinerante Xabuca estava treinando naqueles dias.

A concorrência era enorme, Zito, mas como prescindir de você, do Hélvio Piteira, da experiência do Jair Rosa Pinto, do talento de Vasconcellos, e da turma que chegou depois – Dorval, Coutinho, Mengálvio, Mauro, Calvet, Lima, Dalmo, Geraldino, Carlos Alberto Torres, Cláudio Adão, Abel, Edu, Lyra, Juary, Batata, João Paulo, Dema – para se juntar aos talentos nativos – como o alagoano Clodoaldo, seu sucessor, Negreiros, Pita, Nenê e o senador Joel Camargo. Foi dessa mescla que nasceu e viveu o grande Santos. Você veio, viu e venceu, porque não encontrou um xenófobo pela frente. E, com você, o Peixe conquistou o mundo e uma legião de fãs por onde passou.

Foi assim, da mesma forma, que se fez a nossa torcida, a mais bonita de todas. Dessa comunhão de brasileiros e brasileiras de todos os cantos, alimentada por insondável paixão. Que cresce movida por certezas que não se explicam, apenas existem para nos fazer rir e chorar. Que nos veste com a mesma bandeira imortal, disfarçados de operários do porto, executivos da Avenida Paulista, surfistas e pescadores do imenso e belo litoral brasileiro, caipiras do nosso rico hinterland, estudantes e anciões, trabalhadores da cidade e do campo, camioneirose portuários, homens e mulheres de todos os lugares. Médicos como o Dr. Táki Cordás, artistas como Chorão e Zeca Baleiro, jornalistas como a Bia Andrade, que você conhece, Zito, e também o admira.

(continua)

Afagos e provocações da pandemia

O que me deixa mais irritado é ouvir autoridade dizer que meu netinho, o Bento, é um perigo para mim, avô do grupo de risco.
Se a convivência forçada continuar por mais tempo, pais e filhos virarão inimigos mortais, E poucos vão suportar a convivência forçada com sogros, genros, avós, cunhados, tios e primos.
Diz-se que a reclusão provocará um boom de nascimentos no fim do ano. Pode ser, mas muitos casamentos não resistirão até lá.
Como na lei seca americana, é possível que surjam por aqui baladas clandestinas. Convocadas pelas redes sociais.
Ironia! Agora que a cidade está tão deliciosa, me proíbem de sair de casa.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, desejar bom dia não transmite o vírus a quem passa.
Passarinhos e flores não são hospedeiros nem transmissores. Que bom! Mesmo pessoas com ódio incurável podem gostar deles.
A moda da cantoria nas varandas parece que passou. Ainda bem. Eu já estava prevendo bate bocas tipo porcos versus gambás e até tiroteios.
Não gostou da afinação do tenor do prédio azul? Espere até ouvir a soprano da cobertura ao lado.
A guitarra do garotão do quinto andar incomoda mais que reclusão.
Ouvi alguma bateção de lata, semana passada. Não identifiquei um mísero Chico Batera.
Dellivery de abraços. iFood de beijos. Alguém já pensou nisso?
Vida em desencontro é assim. Meu netinho volta de Itupeva; agora, eu posso ir pra lá.

CONVERSA COM O CAPITÃO (I)

Caro Zito,

Você é meu ídolo desde os inesquecíveis domingos da segunda metade dos anos de 1950, em que meu pai – o Bom Fonseca – conseguia colocar seus pirralhos para dentro da Vila, sem poder curtir com os próprios olhos, por absoluta falta de grana, sua segunda maior paixão. Segunda porque o primeiríssimo lugar era ocupado pela Bela Dolores, mãe de seus doze filhos, alguns deles provavelmente gerados simultaneamente a um gol do Santos.

Com tal produtividade, o casal não podia desperdiçar a súbita calmaria que se instalava no minúsculo chalé do Marapé, enquanto o Peixe dava recitais. De modo que parte da formação da nossa família humilde e feliz sem dúvida se deve à magia do time de branco.

Mas não estou aqui para falar da fonsecaiada. Estou aqui para encher a sua bola, Zito. Você é meu ídolo, o maior da história do Santos, na parte que conheço, a partir da segunda metade dos anos de 1950. Para mim, você está acima do Rei e dos que vêm a seguir. Entre outros, as equipes inteiras daquela época; a trinca de dirigentes formada por Athié, Roma e Moran; os treinadores Lula e Antoninho Fernandes; e os recentes Giovanni, Diego, Robinho e Neymar. Todos eles ajudaram a construir a mística do Peixe. Para mim, porém, você é um pouco mais.

É, por exemplo, o mais importante jogador brasileiro. Não é heresia. Pelé, sem dúvida, é o melhor de todos os tempos. Mas foi sob o seu comando que o menino Gasolina virou Pelé, que o Santos transformou o jogo da bola em fantasia e que a seleção livrou-se do complexo de vira-lata. Daí sua inigualável importância, Zito.

As novas gerações talvez não saibam, mas até o Mundial de 1958 o Brasil não ganhava nada. Jogava bem, empolgava as plateias … e perdia sempre. Aqui mesmo, no sul da América, era freguês de carteirinha de uruguaios e argentinos. Tudo mudou quando você assumiu a liderança do escrete nos campos da Suécia, e fez o que fazia no Peixe: ensinou que era possível jogar bonito e ganhar.

Há quem atribua esse papel a Didi e Nilton Santos, também magníficos futebolistas. Só que eles representavam em linha direta as gerações perdedoras de 1950 e 1954. Aquelas que sucumbiram diante da força de Obdulio Varella e da fantástica equipe húngara. Outros dirão: ah, mas na Suécia tivemos Garrincha e Pelé. E eu responderei que nunca nos faltaram craques. O que faltava era você, Zito. A novidade de 1958 foi o comando do seu espírito vencedor.

(continua)

Palavra de Rei: ele sou eu!

Foi mais ou menos por esta época. Minutos finais de Santos e Guarani, na Vila, no início do ano mágico de 2002. Mágico? Quem sabe das coisas entende. O repórter de campo da TV anuncia uma substituição no Santos e a câmara mostra o magrela saltitante na beira do gramado. Não é possível! A semelhança só pode nascer da minha enorme vontade de ver algo pelo menos parecido em campo. Do nosso lado, do lado branco, é claro.

O juiz custa a autorizar a mudança, de modo que a TV pode mostrar um pouco mais o garoto, quase criança, olhar ansioso acompanhando a trajetória da bola.

Foi a primeira vez que vi Robinho. Nos minutos seguintes, quem estava ansioso era eu. Havia algo ainda mais inebriante a formar, tornar inescapável até, a comparação herética. Não é possível! As mesmas passadas rápidas, a disparada com a bola em direção ao adversário, o drible vertical, sempre no rumo do gol. Mas o jogo acabou cedo demais para outras constatações.

Dias depois, a imagem repetida na mesma Vila Belmiro. Santos versus São Paulo perto do fim. Por duas vezes, estivemos à frente no placar. Por duas vezes, o atacante tricolor França foi lá e empatou. O Santos parece sem forças de continuar buscando a vitória, quando Robinho entra de novo no gramado, com a mesma sem-cerimônia, o mesmo futebol abusado.

Tempo regulamentar esgotado, lá vai ele pela esquerda, da linha lateral em direção à área. Beletti, o defensor são-paulino, pensa que vai tomar o drible pela direita, mas toma pelo outro lado. Vencido, passa a rasteira e se garante ainda mais agarrando o serelepe pela cintura. O importante do lance acaba aí, com os dois jogadores rolando na grama. Depois, Diego cobrará a falta e o zagueiro Preto desviará de cabeça, deslocando o goleiro Rogério Ceni e assinalando a nossa vitória. Nada relevante. Apenas mais um gol, apenas outra vitória.

Eu estava maravilhado com o drible, e a imagem do raio não me saía da cabeça. Liguei o computador e escrevi aos amigos do grupo virtual: parece que o raio caiu de novo no mesmo lugar. No total, na soma das duas partidas, haviam sido uns 15 minutos de Robinho em campo, mas não tive dúvidas em apostar: temos um pelezinho.

O veredito seria repetido, meses depois, na maravilhosa crônica do colorado Luís Fernando Veríssimo sobre a nossa conquista do campeonato brasileiro. “Parem as buscas”, decretou o escritor gaúcho. “O sucessor já foi encontrado, na mesma Vila Belmiro.” Veríssimo também citou o raio e usou como definitivo o vaticínio feito pelo próprio Pelé, anos antes, ao cruzar com o adolescente Robinho no CT do Peixe: “Ele sou eu”.

No tempo em que as notícias mandavam

Em outros tempos, eu tinha um jeito fácil de formar opinião própria. Lia os editoriais de um grande jornal paulistano, e seguia em outra direção. Era infalível, e se confirmava com a leitura do noticiário. Os fatos em geral não batiam com o que os donos da publicação pensavam.
Por mais estranho que possa parecer aos consumidores da mídia atual, naquele tempo patrão tinha o espaço de opinião para defender seus pontos de vista. As notícias eram sagradas. Os veículos de tradição procuravam orientar seus leitores a partir de princípios ideológicos, sem brigar com a realidade.
Hoje, a fórmula mudou, e a inversão de valores vale para quase toda a chamada grande mídia. Sem o menor pudor, os donos das empresas determinam o que é informação de interesse público e, ainda por cima, deturpam o que é publicado.
Um exemplo prosaico vem do UOL, suposto portal de notícias do grupo Folha. De vez em quando recebo, compartilhado por alguém no facebook, uma coisa que os caras de pau chamam “UOL Notícias”. Sério! É esse o nome que eles dão aos textos que distribuem. Abro e, sem surpresa, vejo que se trata de artigo opinativo de colunistas ou comentaristas do grupo.
Tudo obrigatoriamente tendencioso. Sempre, com raríssimas exceções assinadas por profissional da redação do jornal, defendendo as mesmas posições. Em escala ainda pior, a sacanagem se repete no rádio e na TV.
A TV, território do qual a reportagem foi praticamente banida, dedica cerca de 90% do tempo “informativo” a mesas redondas, debates e entrevistas com “especialistas” cuja posição ideológica é logo enunciada, quando não a partir da identificação do convidado, no máximo quando responde à primeira pergunta.
Em geral, o que determina tais atitudes parciais e rancorosas são interesses contrariados. Vejam os exemplos recentes da guinada editorial de grupos como IstoÉ e Bandeirantes. A Globo e seus canais, depois de na primeira hora apoiar o afastamento de Dilma, logo virou o jogo e passou a atacar o substituto.
Essa lição me foi ensinada no início da carreira, no jornal da minha cidade. Como o interventor municipal resolveu criar uma gráfica e um diário oficial para desovar a publicidade legal da Prefeitura, o jornal resolveu se vingar da perda de parte importante de suas receitas. O chefe de reportagem me mandava visitar cada dia um bairro, com um fotógrafo, e escrachar as mazelas da cidade. Como sempre há mazelas e como quem procura acha, era tiro e queda!
A refrega durou menos de uma semana, quando um acordo selou o armistício. A Prefeitura voltou a publicar suas matérias pagas no jornal e eu parei de mostrar os problemas que afligiam a população. Fui cobrir outras pautas.
Nos últimos anos, desacorçoado, como dizia a mãe, com a mídia disponível, cancelei uma a uma as assinaturas: Estadão, Veja, Folha e, por último, o portal de notícias do UOL. Esse que chama opinião de notícia.

Sobre lugar de fala

As turminhas foram se juntando na curva dos rios, no remanso das marés, no enrosco da vegetação dos mangues. Hordas descartadas. Pneus, geladeiras, vasos e assentos sanitários, fogões. Móveis de madeira, sofás, cadeiras, estrados. Rejeitos hospitalares, produtos químicos. Veículos de tração mecânica e animal, barcos emborcados, latinhas e latões, lonas, tecidos e todo tipo de material plástico. Vidros, pets de todos os tamanhos.
Brinquedos. Aqui e ali. bicicletas decadentes, bolas furadas. Bonecas arruinadas de material variado, santos e santas de louça, com ou sem cabeça. Lâmpadas queimadas, filtros de barro, quadros de parede, bujões de gás enferrujados. Tudo o que um dia teve serventia, mas que há muito de nada mais valiam. Estorvos.
De início comunidades solidárias, uniram-se para dar conta das próprias agruras, amparar-se e fazer frente aos inimigos naturais com que se confrontavam: a corrosão das águas, a agressividade da fauna e da vegetação e a força avassaladora da natureza, suas tempestades e mudanças de maré. Os resíduos e os dejetos humanos despejados sem cuidado com a qualidade da água a que se misturavam. Não era o paraíso. Era a sobrevida possível. Fim de ciclos.
Nesse tempo, o homem andava distante, mal se dando conta do que ocorria naqueles confins. Mal percebendo que as porcarias largadas nos córregos, nas praias e nas ruas, nas redes de esgoto, a algum lugar chegariam. Até que, em todas as águas internas e costeiras, surgiram as primeiras carcaças de animais e peixes variados. Os menores, primeiro. Depois, maiores. E cada vez mais distantes dos litorais e das zonas urbanas. Mar afora, interior adentro.
Os primeiros a notar que alguma coisa mudava foram os caiçaras, os pescadores e os que usavam os rios para irrigar as terras, saciar as plantações. Ao invés da antiga limpidez, cursos de águas mortas. Sobras malcheirosas a turvar paraísos naturais. Também dessas populações partiram os alarmas, que naturalmente não foram ouvidos.
Tanto quanto a poluição das águas, incomodavam os lixões que se formavam ao redor. Junto, vinha a ocupação desordenada das áreas ribeirinhas por desvalidos expulsos das periferias das cidades e explorados por espertalhões com ou sem causa. Todos interessados nas parcas rendas e escassas economias dos infelizes.
Os solidários movimentos por moradia e os agentes imobiliários da miséria acenavam com preços e alugueis módicos. Ali, seria possível encontrar não só a moradia, como também as atividades de subsistência oriundas das sobras das classes mais abastadas. Reciclagem foi o nome bonito que encontraram para isso.
Aí, começaram as desavenças. As pets e as latinhas de alumínio, notando a preferência dos catadores, começaram a se achar. Não queriam mais a proximidade de madeiras, ferragens, materiais plásticos, tecidos em decomposição. Só queriam a própria companhia, e só a seus iguais permitiam manifestar-se em nome do grupo.
Nasceram as castas e o empoderamento das que se julgavam diferenciadas. Aquelas que mesmo na desgraceira comum se sentiam superiores e com mais direitos. Os elementos mais radicais, reservaram para si o lugar da fala.
Caminho aberto aos mais abjetos preconceitos.
Cemitério da solidariedade.

Com o JN, o jornalismo bate no fundo do poço

A edição do Jornal Nacional da última quarta-feira, 18 de marco, foi a pá de cal. Nunca vi, que eu me lembre nem na época sabuja dos tempos da ditadura militar, a Globo ter um comportamento tão sujo. Não é o caso de fazer a exegese do que foi aquilo, mesmo porque a emissora vem há tempos se esforçando em corromper todos os predicados da boa prática jornalística.

Bastaria dizer que, ao apresentar sua cobertura da coletiva de imprensa do governo, a Globo dedicou toda a longa primeira parte do jornal a discutir a errática atitude do presidente diante da pandemia. Para insinuar que, se o covid-19 não foi causado por Bolsonaro, cabe a ele a culpa de a doença atingir esperada situação de calamidade pública. Por ter demorado a reconhecer a gravidade do problema e vacilar em adotar as atitudes necessárias.

A crítica pode fazer sentido, mas deve ser endereçada a pelo menos todos os governos ocidentais, que viram a doença crescer na China e em outros países da Ásia, e só se mexeram com a água no pescoço. Vale pra Itália, França, Espanha, Inglaterra, Portugal etc. Já neste lado do planeta, não se pode dizer que as potência do norte, EUA e Canadá, fizeram mais e melhor do que nós. Ou seja: o coronavírus é desafio superior à capacidade de reação e enfrentamento de todos.

Mas a Globo precisava arranjar um jeito de culpar o governo e, por isso, fez seu principal noticioso dedicar-se com prioridade a discussões pretéritas e inócuas, antes de tratar do que interessa à audiência: as medidas do governo para enfrentar a doença e encarar suas consequências econômicas e sociais. Depois, vieram também a longa e rasteira discussão sobre o uso das máscaras sanitárias pela equipe do governo (o que antes a GloboNews já havia feito à exaustão) e a inédita cobertura do chamado panelaço, que ocupou toda a parte final do JN.

Ao falar dos números do coronavírus no Brasil, a emissora dos Trapalhões e da Escolinha do Professor Raimundo conseguiu lançar outra maledicência grave, capaz de aumentar o pânico que se alastra. Sugeriu que os casos, inclusive de mortes, podem ser muito maiores do que os divulgados, porque o governo limita os testes às pessoas com sintomas de infecção. É uma forma bem safada de jogar a opinião pública contra as autoridades. Em nenhum lugar com população equivalente à brasileira, foi ou é possível testar todo mundo.

Ontem mesmo, num canal SporTV (Globo também), um jogador da NBA e da nossa seleção afirmou que não passou pelos testes, embora cinco atletas de uma só equipe estejam contaminados. “Não há testes suficientes”, disse ele. Falava de Estados Unidos, o país mais rico do mundo, e de uma liga esportiva que é luxo só. Mas a Globo quer porque quer que o Brasil teste um por um todos os seus 210 milhões de habitantes. Jornalismo lixo.