As flores e os espinhos

Pelé em 1957

Foram imensas as homenagens pela passagem dos 80 anos de vida do Pelé. Um porre gostoso, como os melhores porres. Eu mesmo perpetrei a minha homenagem, neste tãoSantista. E acrescentei a indefectível foto com Pelé 10. Por falar nisso, as fotos brotaram feito maria-sem-vergonha no meu quintal. Deu a impressão de que todo brasileiro foi fotografado ao lado do Rei.

O feito lembra o público declarado daquele Juventus x Santos de 50 anos atrás, na Rua Javari, Mooca, São Paulo. Naquele dia, o Rei marcou o gol que considera o mais bonito da sua carreira. O gol da fieira de chapéus sobre quatro defensores juventinos, entre eles, e derradeiro, o goleiro Mão de Onça. O único registro do lance é a foto histórica de Rafael Dias Herreira, de A Tribuna. O jogo não foi gravado em filme e o VT é posterior.

Entretanto, talvez não seja preciso mais do que o clic do grande fotógrafo santista, tanto quanto foi desnecessária a recriação eletrônica feita pela equipe técnica do filme Pelé Eterno. Pois as imagens do moleque de branco passando como Pantera Negra sobre a zaga grená estão bem vivas na retina e na mente do público extraordinário que teria ultrapassado em pelo menos 100 vezes os quatro mil lugares do velho campo.

Inacreditável? Eu, pelo menos, ainda não encontrei um amante do futebol com idade suficiente que não declare presença na icônica partida. Por isso, faço o cálculo aleatoriamente, como um míssil do nosso Marinho. Assim sendo, trata-se de imbatível recorde mundial, consideradas todas as competições, até finais olímpicas e decisões de mundiais de futebol, passadas e futuras.

Pelé é imbatível até nas lendas criadas em torno dele.

Mas não apenas flores, afagos e aplausos recebeu o Rei em seu aniversário. A data fez ressurgir também a ira que muitos lhe dedicam desde o episódio controverso do não reconhecimento de uma filha. A opinião pública, como sempre manipulada pela parte irrecuperável da mídia nacional, tendeu em parte a ficar ao lado da moça que, décadas depois, decidiu reclamar o amor do pai.

O caso, porém, por todo ângulo que se analise, dos sentimentos humanos ou religiosos à letra fria da lei, não comporta julgamentos finais implacáveis. Possivelmente, há acertos e equívocos dos dois lados. Um amigo que diz conhecer todo o processo assegura que o jogador (para mim, nunca será ex, porque parece estar entrando em campo agorinha mesmo) é o menos errado na história. Confio no Zé Guido, mas admito que possam haver outros entendimentos.

O que não aceito é a condenação moral definitiva, decretada por gente que se diz movida pelo mais genuíno espírito cristão. Nos últimos dias, li execrações inacreditáveis. Pelé seria um péssimo ser humano, indigno do tratamento de ídolo que recebe. Avessas ao espírito cristão de que se dizem possuídas, essas pessoas sentem-se em condição de lançar contra ele não só a primeira, mas dezenas de pedras, com ódio só comparável ao de Jesus expulsando vendilhões do templo.

Da minha parte santista roxo, continuarei agradecido e idolatrando o Rei. Adepto do errar é humano, seguirei gostando do Edson, a quem me igualo na falibilidade e nas faltas graves ou não que cometo todos os dias. Isso não é advogar em causa própria. É sentir a possibilidade de ser um pouco Pelé.

O hino inglês do Santos

Durante anos, o jornalista Osvaldo Martins correu atrás do verdadeiro hino do Santos, time do seu coração. Ele estranhava o fato de o hino oficial ter surgido apenas na década de 1960, com o Peixe já cinquentenário. Argumentava o Osvaldinho que todo clube, ao ser fundado, ganhava nome, cores, distintivo, bandeira e hino. Tudo isso remetia à segunda década do século passado.

A busca não foi em vão. Pouco antes do centenário do Santos, em 2012, ajudado por outro santista ilustre, o ex-deputado Arnaldo Madeira, ele encontrou o que lhe pareceu ser o hino original, que ouvia em sua meninice, nos programas esportivos das rádios da cidade. Ou o mais próximo disso.

Confiando na memória, e na do amigo, ele conseguiu recuperar música e letra, entregues ao maestro Roberto Sion, também santista, com o perdão da insistência, para arranjos (coral e orquestra) e gravação. O que foi feito às vésperas do centenário do Peixe, com autorização dos presidentes Laor e Odílio. Foram gravadas uma versão só orquestrada e outra com coral e orquestra.

“Nosso clube foi sempre forte / desde o tempo do União / Duvidamos que alguém suporte / seu valor de campeão … são os primeiros versos.

O trabalho ficou belíssimo, mas nem todos gostaram. A própria diretoria relutou em levar adiante o projeto, que incluía a edição de um vídeo. Na época, conselheiro do Peixe, insisti para que fosse copiado pelo menos um CD. Poucos tiveram acesso às cópias e membros do Conselho Deliberativo nem se interessaram.

Anos depois, assistindo à série britânica Peaky Blinders (BBC/Netflix), ouvi  a música no início da segunda temporada. Ela é tocada por uma banda marcial, no hipódromo de Birmingham, Inglaterra. Ali, os Peaky Blinders, uma gangue que atuou entre o fim do Século 19 e os anos 1930, manipulavam apostas e corridas de cavalo, entre crimes e contravenções a que se dedicavam.

De forma que o suposto hino do Peixe de original só tem a letra. O que em nada o diminui. Sabe-se, por exemplo, que o famoso hino norte-americano The Star-Spangled Banner é originalmente uma canção popular. Espécie de Leva, meu samba, que os bebuns ingleses cantavam alegres nas tavernas da antiga Londres.

A letra, que os norte-americanos cantam hoje com tanto fervor e orgulho, foi escrita por Francis Scott Key, em 1814. Ah, e recomendo muito a série, disponível  na Netflix, para quem ainda não assistiu.

O Papa viu Pelé

O sol do fim de tarde ilumina o Caravelle da Air France que segue tranquilo sobre o mar do Caribe. No avião, um time de futebol dorme. A maioria francesa que embarcou nos Estados Unidos e se dirige para o Haiti – destino estranho, justificável para burocratas, acadêmicos ligados no exotismo e turistas desavisados – não mostra interesse pelos rapazes de terno escuro, escudo preto e branco no bolso do paletó. Um deles é Pelé.

Anos antes, a simples presença do futebolista em território africano havia interrompido guerras. Pelé é uma celebridade mundial. Foi coroado rei pela imprensa francesa, mas os passageiros que o acompanham no trajeto entre Nova Orleans e a ilha Hispaniola só se darão conta da figura ilustre da poltrona ao lado (ou à frente, talvez mais atrás) quando o avião, ainda taxiando na pista do Aeroporto François Duvalier (nome da época), for cercado pela multidão.

Então, terá anoitecido e será tarde para os franceses. Os brasileiros do Santos FC descerão direto para o interior de limousines e iniciarão uma viagem surreal de três dias pelos domínios do Papa Doc.

Os soldados brasileiros da Força de Paz da ONU no Haiti percorreram, anos mais tarde, os mesmos oito quilômetros – pouco mais, pouco menos – da pista simples que leva do aeroporto à capital, Port-au-Prince, situada no ponto mais recôndito do golfo de Gonâve. Avançando pelo golfo, o oceano reduz a extensão territorial do Haiti a 27 mil quilômetros quadrados, mas em troca desenha uma costa magnífica, que abriga a quase totalidade da população de cerca de doze milhões de habitantes.

Na altura de Port-au-Prince, na parte sul da ilha, o território haitiano atinge sua menor largura. Acima e abaixo dali e em direção à fronteira com a República Dominicana (bem próxima, a leste), predominam as montanhas. Elas reduzem ainda mais as áreas aproveitáveis, mas são excelentes pontos de fuga, um jeito fácil e rápido de buscar abrigo no país vizinho. De forma que as principais cidades se espalham pelas planícies costeiras, ao norte e a oeste.

Parece a descrição do paraíso, mas a realidade, sabe-se, está muito longe disso. O Haiti, cuja tragédia política e social pede socorro ao mundo, nada mais é do que a continuação do Haiti do início dos anos 70, visitado pelo Santos. O Haiti de Papa Doc, François Duvalier, médico sinistro, pai da pátria, fruto da maldição lançada no martírio do libertador L’Ouverture.

O ex-escravo Toussaint da virada dos séculos 18 e 19, que expulsa ingleses e espanhóis da ilha descoberta por Colombo e, com a bandeira dos ideais da Revolução Francesa, conquista a liberdade. Efêmera liberdade, interminável danação. L’Ouverture é preso e banido tão logo assume o poder, em 1801, e morre na França.

Primeira colônia americana a libertar seus escravos, o Haiti vive a partir dali a sucessão de golpes, revoltas e guerras civis que terá sempre o mesmo resultado: os perdedores serão executados, mas os vencedores não terão vida longa. Serão os perdedores a seguir.

A independência, igualmente frágil, dará lugar a frequentes intervenções e ocupações por forças estrangeiras, especialmente a partir da entrada em cena dos interesses norte-americanos, já no Século 20. São esses interesses que levam à eleição de François Duvalier, em 1957.

 

Colombo e L’Ouverture, em Port-au-Prince

Os carros encostam na escada do avião e os santistas acomodam-se neles em grupos de cinco ou seis. Em volta, a multidão e, lá atrás, ou melhor, no alto da escada ou ainda dentro do avião, os outros passageiros, boquiabertos, obrigados a esperar a dispersão para também desembarcar. Os carros deixam a pista do aeroporto com os faróis acessos, em velocidade não muito alta, mas excessiva para a segurança de quem está em volta. Muitas são obrigadas a se atirar para o lado, fugindo do atropelamento. Logo estamos na estrada.

Tantos anos depois, as lembranças são vagas e só tornam mais dura a constatação de que o privilegiado jornalista em início de carreira era também um péssimo repórter. Não há um caderno de anotações guardado e mesmo os textos enviados para o jornal (e publicados com o devido atraso, face à lamentável ausência de recursos como internet ou um banal telefone celular, não só naquela ilha triste, mas no mundo) pecam pela base informativa. Quase não há dados, nomes – o foca concentra sua atenção no lado errado da história e o resultado do relato é pífio. Ah, se fosse possível voltar àquela noite e aos dias que se seguiram!

Mas agora é preciso recorrer à memória – absolutamente inconfiável do jornalista aposentado – e voltar àquela estrada com uma correção. Eu disse “ilha triste”, mas onde a tristeza se a natureza é bela e o povo alegre? Olho pelas janelas do carro e, dos dois lados, grupos de pessoas pulam, correm, parecem comemorar a nossa passagem.

Os vidros fechados impedem que se ouçam seus gritos, mas elas cantam e dançam, também. E sorriem. Talvez não sejam felizes, mas é claro que são alegres. Lembro do poetinha: “é melhor ser alegre que ser triste”. É a iluminação fraquíssima dos postes públicos que torna a minha visão, esta sim, compadecida.

Tais cenas, mais e mais esmaecidas, são inesquecíveis. Junto a elas, uma dúvida nunca respondida. Sempre gostei de pensar que as pessoas saíram das casas para receber Pelé e o Peixe. Intuí que cercaram os dois lados da estrada até Port-au-Prince só para isso. Mas terá sido esse o motivo? Para nos festejar? Não tenho tanta certeza.

É possível que a maioria nem soubesse da chegada do Rei e seus companheiros do Santos. Podia ser só a confraternização de todas as noites, pouco importando os personagens que transitassem à frente, porque, olhando além, para o interior das casas, percebo algo mais. Se junto à estrada a iluminação é fraca, nos barracos em volta ela inexiste. Daí que, como na ruazinha de terra de minha infância no Marapé, em Santos, saem todas as famílias para o convescote noturno, tão logo escurece, e até que chegue a hora de dormir.

Desde sempre, para a minha geração, Haiti é sinônimo de miséria. Miséria e horror. Miséria, horror e corrupção. E continua sendo, mesmo que os tontons macutes, os bichos papão, só resistam nas velhas canções de ninar e o vodu não assuste como antes. Caetano disse uma vez “o Haiti é aqui”. Caetano tinha idade suficiente para falar do tempo de Papa Doc lá e da ditadura militar aqui. Mas como foi um Caetano mais recente que falou, e não aquele antigo do exílio, devia estar se referindo ao Haiti/Brasil da miséria e da corrupção, só.


Papa Doc, François Duvalier, e o estádio em que o Rei jogou

Papa Doc morreu dois meses depois de ver Pelé. Ele foi ao campo naquela tarde de fevereiro de 1971. Exatamente ao campo, porque o estádio muito simples, quase todo de madeira, não tinha acomodações presidenciais e o jeito foi o cerimonial do Palácio colocar confortáveis cadeirões forrados de veludo vermelho à beira do gramado. Exatamente três cadeirões, com o presidente ao centro, Mama Doc à direita e o gordinho Jean-Claude, Baby Doc, à esquerda. Dos dois lados, cadeiras comuns acomodaram os ministros e as autoridades civis, militares e eclesiásticas.

Vale a pena recordar a chegada daquela gente. Por um portão lateral, os enormes carros pretos entraram no estádio Sylvio Cator, capacidade para 20 mil pessoas, lotado. Dos dois primeiros desceram os homens da guarda pessoal da família Duvalier. Negros altíssimos de terno preto, óculos escuros e metralhadora na mão. Pense em como seriam os tontons macutes. Pois eles eram exatamente iguais aos da sua imaginação. Do terceiro carro saiu o casal, quando a plateia já delirava, e, do quarto, o gordinho, que nem imaginava estar a tão poucos dias de ocupar o lugar do pai. Ou saberia que sua vez estava chegando? Quando se sentaram, pude chegar perto e fotografar. Pessoas simpáticas. Pense na tia mais querida. Mama Doc era a cara dela.

Acho que a irmã mais nova não estava no Haiti ou não se interessou pelo jogo. Pelo menos não a vi por lá, mas para ela também estava reservado um lugar trágico na história. Pouco depois de suceder o pai, e ainda com maior sede de sangue, Baby Doc mandou prender e matar o marido dela, o general-cunhado, por suspeita de conspiração. A originalidade estava nos laços familiares dos envolvidos, porque o figurino já havia sido usado antes e seria usado depois. E tantas vezes que nunca se saberia se a conspiração era real ou pretexto para endurecer ainda maior o regime.

O time do Santos pouco viu de Port-au-Prince. Passou pela cidade naquela noite apenas para uma concorridíssima recepção na Prefeitura – um palacete antigo e acanhado de dois andares, salas e cômodos estreitos e escadas apertadas – e seguiu direto para o hotel fora da zona urbana. Na verdade um beira-de-estrada quase isolado, esvaziado de hóspedes e reservado aos brasileiros. Dos usuários habituais, restou naqueles dias apenas a idosa moradora fixa do hotel, uma viúva endinheirada, branca e, portanto, estrangeira. A intenção era evitar nossos contatos com nativos.

Quem não se apertava em qualquer situação era o ponta-esquerda Edu. Jonas Eduardo Américo tinha chegado de Jaú, interior de São Paulo, muito garoto. Estreou no time com 15 anos, foi chamado para duas Copas do Mundo (haveria uma terceira, na Alemanha) e, aos 21, com o Santos e a Seleção, conhecia metade do mundo. Naquela noite, como em todos os lugares, deixou o quarto para explorar o hotel e fazer amizades.

Não havia muito a ver no estabelecimento e ele esticou o passeio solitário. Teria descoberto pelo menos um bar nas proximidades, segundo o minucioso relato feito na manhã seguinte pelo chefe da segurança. Coube ao treinador Antoninho Fernandes ouvir a mal disfarçada bronca e a recomendação de que ninguém deixasse o hotel sem prévia comunicação.

Era perigoso sair desacompanhado da segurança, argumentou o policial. Tão perigoso que o ônibus que levou a delegação ao treino, no primeiro dia, e ao jogo (2 a 0, Lima e Picolé, sobre a seleção local), no segundo, era sempre precedido e seguido por dois caminhões com homens armados. Foi assim até no terceiro dia, nosso último no Haiti.

Fomos levados para um piquenique na sede de praia do clube dos oficiais do Exército e lá passamos a segunda-feira ensolarada. Nós de sunga, batendo bola na areia e mergulhando no mar claro, e os seguranças vestidos a caráter. Para desconsolo do incansável Edu, e não só dele, nenhum biquíni à vista. Nenhuma presença feminina.

Imagens reproduzidas da publicação “Haïti – Première République Noire du Nouveau Monde – Son vrai visage”, que o presidente Docteur François Duvalier mandou imprimir.

AI-5 – A ditadura militar e a imprensa

Estes apontamentos foram preparados para o debate “O movimento de 1964 e a imprensa brasileira”, realizado pela CPFL em Campinas, nos 40 anos do golpe militar. Lá estive ao lado da professora Vera Lúcia Chaia, da PUC-SP, e dos jornalistas Alberto Dines e Jorge da Cunha Lima.

 

Ao longo dos 21 anos da ditadura militar, não há um comportamento único, linear, lógico, pensado a longo prazo. Nem dos ocupantes do poder com relação à imprensa, nem desta com relação ao significado e à natureza do regime. Mas é claro que o AI-5, promulgado em 13 de dezembro de 1968 (O ano que não terminou, do jornalista Zuenir Ventura), representou a inflexão da quartelada de 1964 para a ditadura de fato, com todos os recursos que caracterizam os regimes de força, inclusive no que toca ao controle dos veículos de informação.

O ato permitiu as demissões sumárias e a cassação de mandatos, suspendeu os direitos políticos, interditou as garantias constitucionais de liberdade de expressão e de reunião e liberou o lado repressivo do regime, ao tornar sem efeito o habeas corpus nos casos de “crimes políticos contra a segurança nacional”. Uma tentativa de organizar o pensamento sobre aquele período da história recente do país é dividi-lo em três fases. A duração de cada uma delas é temporalmente desigual, mas pode-se visualizar nelas algum padrão na atitude de ambos os lados, imprensa e governos, com as naturais exceções e desvios.

Na primeira fase, estão quase todos do mesmo lado. Todos contra Jango: os chefes militares, a alta hierarquia da Igreja, as principais lideranças políticas. Os grandes grupos jornalísticos da época, com os Diários Associados e O Estado de S. Paulo à frente, apoiam o golpe. Teriam até participado da conspiração. As exceções são Última Hora de Samuel Wainer, logo sufocada, e o Correio da Manhã, que especialmente nas crônicas de Carlos Heitor Cony, coloca-se na oposição em seguida ao golpe. Os presidente militares do período são Castello Branco e Costa e Silva.

A segunda fase é a virada do AI 5, que prorroga o regime militar, fecha o Congresso, coloca os partidos políticos na ilegalidade e estabelece-a censura à imprensa. O desencanto com as cassações soma-se à frustração das restrições às atividades políticas, sindicais e corporativas. A imprensa divide-se entre a subserviência e a resistência. Censura prévia (Estado, Veja, Tribuna da Imprensa e alternativos) e autocensura, sob os governos Costa e Silva e Medici.

Na terceira fase, é anunciada a distensão lenta e gradual dos generais Geisel e Golbery. Promessa de abertura política e fim da censura cooptam a grande imprensa. O fim do “milagre”, a crise econômica mundial provocada pelos países produtores de petróleo do Oriente Médio e a derrota da Arena nas eleições legislativas atrapalham o processo. Consequências: a reação da linha dura (assassinato de Vlado, 1975), a Lei Falcão (1976) que emudece a campanha eleitoral, o recrudescimento da censura literária (Zero, Loyola, e Feliz Ano Novo, Rubem Fonseca, 1976), o pacote de abril (1977). E, bem mais tarde, a explosão de 1º de maio no Riocentro (1981). Sob Geisel e Figueiredo, surgem a Campanha das Diretas, Já! e a luta pela anistia, ampla, geral e irrestrita.

 

De início, o projeto de controle dos militares parece excluir a imprensa. O jornalista Osvaldo Martins, diz na Cult: a ditadura é tão envergonhada (emprestando a expressão de Élio Gaspari) que não implantou a censura à imprensa, item número 1 de qualquer ditadura que se preze. Os jornais estão livres para elogiar a “revolução” que eles mesmos haviam feito. Depois da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, liderada por um grupo de senhoras católicas, vem a campanha Doe Ouro para o Bem do Brasil, organizada pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand. O Congresso, depurado pelas cassações, também fica aberto.

Os inimigos declarados são o comunismo e a corrupção, leia-se, os militantes das organizações e partidos de oposição (incluindo os sindicatos não dominados pela pelegada e as entidades estudantis) e os velhos políticos. Para isso, bastariam as prisões dos líderes mais conhecidos da esquerda e dos movimentos populares, o fechamento de organizações como a UNE e a CGT. As resistências são controladas pontualmente, como na invasão e fechamento da UnB e a prisão de 15 de seus professores, ainda em 1964.

Mais tarde vêm as cassações de mandatos e as suspensões de direitos políticos, a implantação do bipartidarismo, bem como a suspensão do calendário eleitoral. O AI-2, de 1965, torna indiretas as eleições majoritárias previstas para aquele ano. Ainda se fala em preservar a democracia ameaçada pelo comunismo, com a transformação do Brasil em uma nova Cuba, mas os setores mais esclarecidos do conservadorismo nacional percebem que os militares, dessa vez, chegaram para ficar no poder. A grande imprensa começa a refletir a insatisfação desses setores diante dos rumos do regime e do banimento de seus principais líderes (Juscelino, Lacerda e Magalhães Pinto) da vida pública. Todos tinham o sonho de voltar ou chegar à Presidência da República, mas, afinal, não haveria mais eleição.

Última Hora, de Samuel Wainer, Correio da Manhã, com Cony (“Da salvação da pátria”, 2/4/1964), e Tribuna da Imprensa, de Hélio Fernandes, são os emblemas desse período. Os jornais têm liberdade de opinião e crítica, mas há represálias, tentativas de intimidação de redações e jornalistas na prisão. Já no dia 14 de março de 1964, telefonemas para a redação e a casa de Cony transmitem ameaças de um grupo que se denominava “oficiais do Exército”.

A ditadura militar entra na segunda fase. Instala-se a censura, antes do AI-5. Os emblemas do período, na Imprensa, são os jornais do Grupo Estado, a Veja, os alternativos Opinião e Movimento, O Pasquim (a resistência pelo humor, a desqualificação do regime pela ruptura dos padrões de comportamento – Sérgio Porto e o Febeapá, na linha inaugurada já a 2 de março por Cony) e O São Paulo, da Arquidiocese paulistana. Tribuna da Imprensa permanece sob censura prévia até 1978. Ruy Mesquita diz na Justiça Militar que ele mesmo escreveu títulos, olhos e legendas de determinada reportagem, preservando profissionais do Jornal da Tarde. Júlio Mesquita Neto declara que, enquanto houver censor dentro do Estadão, a responsabilidade editorial é do ministro da Justiça, Alfredo Buzaid.

O grupo muda o foco da cobertura: a política perde importância e tem seu espaço ocupado pelo noticiário militar e de outras áreas, como sindicalismo, saúde, educação, direitos humanos, qualidade de vida, economia, carestia, direito do consumidor, meio ambiente, questões fundiárias e indígenas, igreja, movimento social, diplomacia. Temas bem indigestos ao gosto militar. Exemplo: Agnaldo Silva no JB e uma reportagem sobre depredações nos trens de subúrbio do Rio. A nota oficial distribuída pela comunicação do regime tenta desestimular a reportagem que apura e vai fundo. Os repórteres policiais do Estadão/JT – Inajar, Percival e Fon – e a investigação da tortura. Oban, DOI-CODI e a ligação policial-militar institucionalizando a repressão como prática de defesa do governo. Muitos jornalistas são presos entre 1974 e 1975. Estoura o caso Herzog (ver neste blog a série “Vlado, 43 anos”).

A terceira fase começa com a promessa de distensão do governo Geisel. Os encontros de Golbery com jornalistas. A cooptação da imprensa: o governo quer abrir, mas tem de enfrentar a resistência da linha dura e a mídia “precisa ajudar”. Com exceção da imprensa alternativa, que continua censurada, os donos dos jornais voltam a assumir o controle das redações: Mino Carta cai na Veja, a direção de redação do Estadão é substituída: sai Clóvis Rossi, entra Miguel Jorge, futuro diretor da Volks e ministro de Lula. Ou seja, o inimigo das lutas sindicais de São Bernardo vira “companheiro” no governo petista.

A crise econômica e o endividamento dos jornais. No Sul, o Grupo Caldas Júnior vai à falência e abre espaço para o Zero Hora (Sirotsky). O Estadão é tirado do buraco pelo Bradesco e outros investidores, numa operação costurada por Delfim. Os jornais alternativos resistem: além da equipe fixa, jornalistas de outras redações produzem reportagens para eles, muitos ajudam nos fechamentos, sempre “na faixa”. Eesse noticiário: inédito no país, abastece as centrais informativas que funcionam no exterior.

Com o fim da censura e a posse de Figueiredo, a imprensa volta praticamente à normalidade. A televisão já domina o mercado da comunicação, os alternativos fecham, prevalece o autocontrole do noticiário. O fracasso da greve dos jornalistas em 1979 e o fracasso da experiência do Jornal da República de Mino Carta desmobilizam os jornalistas. Após o caso Riocentro, a mídia em geral assume a resistência ao regime militar, com o apoio tardio da Globo à campanha das diretas.

Que proveito a imprensa pode ter tirado do período militar? Um deles é a regulamentação da profissão de jornalista, em 1969. A reportagem ganha força, com a valorização da apuração em lugar do jornalismo opinativo (que volta tão forte em nossos dias). A atuação da imprensa no afastamento de Collor está em linha direta com o aprendizado dos anos de chumbo. A atual geração de jornalistas, e a própria direção das empresas jornalísticas, é herdeira dos profissionais que viveram e ser formaram naqueles tempos. O acompanhamento sério e responsável da atuação dos agentes do poder é excepcionalmente valoroso, mas o denuncismo e o engajamento político-partidário, decorrente do polarizado “bem contra o mal”, são tão perniciosos quanto inaceitáveis.

Vlado, 43 anos – Parte III

(Num 25 de outubro, em 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado pelos torturadores do mais tenebroso porão da ditadura militar brasileira: o DOI-Codi de São Paulo. Meses depois, durante greve dos metalúrgicos da Capital, a vítima foi o operário Manoel Fiel Filho. Os dois episódios acirraram a crise interna e iniciaram o processo de enfraquecimento do regime imposto pelo golpe de 1964)

 

Na manhã do domingo, com a notícia da morte de Vlado, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, na Rua Rego Freitas, junto à Consolação, começa a receber um movimento anormal. É lá que os jornalistas se reúnem para se informar, para se consolar e para discutir atitudes. De lá, saem às vezes — para o velório do companheiro, para o enterro na manhã da segunda-feira, para trabalhar — e logo voltam.

É quase uma vigília, num movimento de autodefesa. Teme-se pela vida dos companheiros que continuam presos e pela própria segurança. Todas as noites, realizam assembleias disfarçadas de sessões de informação. A plateia pode se manifestar, mas não há votações. Em determinado momento, alguém do sindicato, em geral o presidente Audálio Dantas, morto recentemente, faz um relato dos acontecimentos do dia e fecha o discurso com as decisões da diretoria.

O texto tem clara preocupação legalista: dentro da ordem, os jornalistas manifestam sua perplexidade, pedem explicações aos responsáveis pela integridade física dos presos, mas não deixam que sua dor seja usada por aproveitadores. Exigem respeito ao companheiro morto, à memória de Vlado. Na forma de notas oficiais, essas mensagens são enviadas também aos jornais.

O Estadão e o JT, liberados da censura em janeiro daquele ano, no centenário do grupo jornalístico, assumem papel decisivo no processo informativo que levará muitas pessoas, como o advogado Moraes, a reformular seus sentimentos com relação à ditadura. Numa linha que supõe a defesa da autoridade presidencial, os jornais abrem espaço para denúncias contra os excessos do aparelho repressivo, para as posições dos jornalistas e para a movimentação dos políticos de oposição e dos representantes da sociedade civil.

O outro lado é o próprio governo, que se manifesta determinando a abertura do inquérito para apurar o “enforcamento” do jornalista, sua disposição de continuar combatendo a subversão e de manter o projeto de abertura política.

A voz do porão, nas notas plantadas por militares ligados aos centros de informação e por policiais envolvidos com a repressão, perde-se nos pés de colunas ou ecoa nas manchetes de diários como a Folha da Tarde, com menor credibilidade. A Folha de S.Paulo, de acordo com estudo feito pela pesquisadora Líliam Perosa (A da cidadania), tenta equilibrar-se entre a antiga subserviência e uma recente, mas ainda tímida, tomada de posição.

 

Tarde de 31 de outubro de 1975. Há tanta gente na praça quanto dentro da Catedral da Sé, em frente. Fica para o registro da história o número de 8 mil pessoas no culto ecumênico de 7º dia da execução de Vladimir Herzog no DOI-Codi paulista.

Há muita gente, também, nas janelas e sacadas dos prédios que, então, cercavam a Sé, ainda não ampliada e juntada à Praça Clóvis pela estação do metrô. Alguns desses espectadores usam câmaras fotográficas e são fotógrafos dos jornais, ali colocados não só para obter bons ângulos da manifestação, mas também para documentar possíveis excessos da polícia.

O secretário da Segurança Pública, coronel Erasmo Dias, ao longo da semana vinha tentando desestimular o comparecimento ao culto, com o pretexto de que poderiam ocorrer conflitos e atentados à ordem provocados por militantes de esquerda. Por via das dúvidas, armou também mais de 300 barreiras na região central da cidade, engarrafando o trânsito e prejudicando o tráfego em direção à Sé. Há, também, entre os fotógrafos, agentes de segurança disfarçados, cujo objetivo é identificar gente procurada pelos órgãos de segurança.

A polícia, porém, fica à distância e não ocorrem distúrbios. Em paz, como pedem D. Paulo, o rabino Henry Sobel e o pastor Jaime Wright do altar da catedral, o culto se encerra e as pessoas voltam em calma para o seu dia a dia.

Os três religiosos e mais o jornalista Audálio Dantas, que também participou ativamente da cerimônia, estão satisfeitos e aliviados. Com o culto, pela primeira vez desde que o AI-5 havia entrado em vigor, a ditadura havia recebido uma resposta à altura da sociedade. Sem violência, sem dar margem a um recrudescimento ainda maior da repressão, mas firme e decisiva para os rumos que o país tomará a partir de então. Além disso, cada um tem suas razões particulares.

D. Paulo vê o trabalho à frente da Comissão Justiça e Paz da Diocese de São Paulo afinal atingir a opinião pública. Sobel, porque desde o início colocou-se contra a versão do suicídio, informando no mesmo dia do enterro que o corpo de Vlado fora colocado no “campo dos homens”, já que nada tinha feito contra si mesmo, e não nas covas destinadas aos que tiram a própria vida. Wright vivia um drama pessoal parecido com o da família Herzog: seu irmão há tempos estava desaparecido e não havia a mínima informação sobre o paradeiro dele.

Para Audálio, era o fim de uma semana terrível, em que foi necessário negociar cada passo do sindicato com as autoridades militares e civis e, ainda, com a ajuda dos companheiros de diretoria, conter os ânimos dos jornalistas mais exaltados, cujas propostas de reação poderiam colocar tudo a perder.

(fim)

Vlado, 43 anos – Parte II

(continuação)

Terminado o jornal da noite da TV Cultura, na sexta-feira, Vlado despediu-se procurando tranquilizar os companheiros de trabalho: amanhã vou lá, esclareço as coisas e tudo se resolve. Seu único cuidado foi aceitar a companhia do repórter Paulo Nunes, que cobria a área militar para a emissora. Ao chegar em casa, conseguiu acalmar também a mulher, dissuadindo-a de acompanhá-lo na manhã seguinte. Vlado tinha conhecimento da prisão de vários jornalistas nos dias anteriores, conhecia a maioria deles e sabia que seu nome havia sido citado nos interrogatórios, mediante tortura.

Mesmo assim, é pouco provável que se imaginasse seguindo para a morte. Afinal, ocupava alto cargo numa organização estatal, subordinada a um governador (Paulo Egydio Martins) nomeado diretamente pelo general que ocupava o cargo de presidente da República (Ernesto Geisel). Além disso, naquele Brasil ninguém virava síndico de prédio sem que sua folha corrida fosse submetida aos órgãos de informação do governo militar. O nome de Vlado havia sido aprovada pelo SNI. Ninguém se atreveria a maltratá-lo numa dependência oficial do II Exército. Não seria bem assim.

Sérgio Gomes da Silva, o Serjão, aos 25 anos de idade, caiu vinte dias antes, no amanhecer de 5 de outubro, no Largo do Machado, Rio de Janeiro. Tinha acabado de chegar à cidade, depois de viajar a noite inteira de ônibus, e começou a apanhar lá mesmo, na Cidade Maravilhosa. A tortura continuou na viagem de volta a São Paulo e prosseguiu no DOI-CODI, até o dia 28, quando foram liberados todos os jornalistas que continuavam presos. Durante seu depoimento, três anos mais tarde, “todo o tribunal está paralisado, estarrecido, ouvindo o relato daquele jovem que sobreviveu”, conforme nos conta o “Dossiê Herzog – Prisão, tortura e morte no Brasil”, de Fernando Pacheco Jordão.

O procurador da República tenta interromper, alegando que a testemunha fala de sua própria situação, de fatos que nada têm a ver com o processo. Exaltado, o advogado Sérgio Bermudes responde: “É importante, sim, Excelência! É relevante, sim! Porque a testemunha está narrando fatos que demonstram como se tortura, como se mata neste país!”. O juiz João Gomes Martins, que conduz o processo, mas que será impedido de dar a sentença, continua a inquirição de Serjão: “O senhor pode descrever como era esse ‘trono do dragão’?”. “‘Cadeira do dragão’, Excelência”, corrige a testemunha, antes de prosseguir com a narração das atrocidades sofridas.

“… eu tinha de lutar em duas frentes, contra os comunistas e contra os que combatiam os comunistas. Essa é que é a verdade. Eu sabia que a ação do (general) Frota era exagerada, excessiva. Mas não era só o Frota, era sempre o grupo da linha dura”. É o general Ernesto Geisel, quarto presidente do ciclo militar iniciado em 1964, falando a Maria Celina D’Araújo e Celso Castro, pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, numa longa entrevista concedida em diversas sessões entre 1993 e 1994. O resultado foi publicado em livro (Ernesto Geisel, Editora FGV, 1997) e não deixa dúvidas: o general falava em distensão lenta e gradual, mas admite que passou os cinco anos no poder tentando manter as Forças Armadas e o regime sob controle.

Vlado foi preso em meio ao conflito entre o grupo castelista e a chamada “linha dura” do Exército, personificada pelo ministro Sylvio Frota, afinal demitido em 1977. De qualquer forma, Geisel teve de colocar outro linha dura no cargo, o general Bethlem. Na entrevista de Geisel, o período que resulta em centenas de prisões e dezenas de mortes dentro dos aparelhos repressivos ocupa apenas 18 das quase 500 páginas do livro. O capítulo tem o título de Problemas com a linha dura.

Nesse contexto, Vlado vira um caso menor, quando os entrevistadores perguntam se ele aceitou o resultado do inquérito: “É preciso ver o seguinte: o presidente da República não pode passar os dias, ou as semanas, com um probleminha desses. É um probleminha em relação ao conjunto de problemas que ele tem”.

(continua)

Vlado, 43 anos – Parte I

Este texto foi preparado originalmente para a Revista Cult. É republicado aqui com pequenas correções, dividido em três partes, até a semana de 25 de outubro, quando se completam 43 anos do assassinato do jornalista.

Nunca se saberá o quanto de fatalidade concorreu para o desfecho. Nem se, ao contrário, era esse o resultado esperado pelos algozes e seus chefes. Erro de dose ou risco mal calculado? O certo é que naqueles dias de outubro de 1975 a luta que se travava no interior do regime militar encaminhava-se para o ponto de não retorno. O monstro da barbárie, em confronto com seus criadores, tratava de mostrar serviço, num recado para dentro do sistema: ainda havia serviço a fazer.

A resistência armada estava morta e enterrada nas covas do Araguaia e de Perus, ou em alto mar, mas para os zelosos defensores da exceção e do arbítrio, restava o inimigo escondido na defesa das liberdades democráticas e dos direitos e garantias individuais. Tão insidioso, reclamavam, que se infiltrava pelo alto comando das Forças Armadas e chegava à própria cúpula do governo. Manifestos apócrifos circulavam nos quartéis e davam nomes aos bois: Geisel e seu ideólogo Golbery. Era nessa direção que eles agora atiravam. Por isso, as celas cheias e o trabalho incessante no porão.

“Eles chegavam à noite”, contou D. Paulo Evaristo, em entrevista à CULT. E chegavam de preferência no fim da semana, como no cair da tarde da sexta-feira, 24 de outubro de 1975. Dois homens batem na casa da família Herzog, à procura de Vladimir Herzog. “Vlado está na TV”, informa a mulher do jornalista. Os dois homens respondem que seguirão para lá e deixam Clarice preocupada. Ela coloca os dois filhos pequenos no carro e também segue para a TV Cultura, onde o marido trabalhava há menos de dois meses, como diretor de jornalismo.

Free lance para o Vlado? Estranho. Todos sabem que ele não faz e nem tem tempo de pegar serviços extras. Foi isso o que os homens disseram e foi nisso que ela pensou no trajeto até a tevê. Mas a desculpa não foi mantida. Diante do jornalista, os homens anunciam o motivo da visita. Vlado terá de acompanhá-los ao DOI-CODI do II Exército. Estabelece-se uma negociação, com a participação de colegas de redação e da direção da emissora. Fica combinado que a apresentação se dará na manhã seguinte, espontânea, bem cedo.

O juiz federal Márcio José de Moraes tinha 30 anos de idade quando descobriu que havia tortura e morte no Brasil do regime militar. Estava no escritório de advocacia em que trabalhava na época, quando tomou conhecimento pelo jornal da morte do jornalista Vladimir Herzog. Formado pela USP em 1968, ano em que a ditadura baixou o Ato Institucional número 5, ele passou sete anos relutando em acreditar que aquilo acontecesse no País.

“Eu ainda admitia que pudesse haver perseguição política. Mas, na verdade, a tortura e a morte eram coisas que eu tinha dificuldade em acreditar”, lembra Moraes, em entrevista publicada pela Folha de S.Paulo. A revelação foi fulminante. “Eu realmente fiquei chocadíssimo. Não só pela notícia em si. Mas porque ficou absolutamente claro para mim que, na verdade, ele morreu torturado.”

Na sexta-feira seguinte, 31 de outubro, Moraes era uma das 8 mil pessoas que foram à Praça da Sé participar do culto ecumênico em memória do jornalista assassinado. Ainda receoso, conforme admitiu ao jornal, preferiu ficar meio de lado, perto de uma pastelaria. “Se a cavalaria da Polícia Militar invadir a praça da Sé, como se noticiava, eu me ponho aqui dentro da pastelaria e como um pastel.”

Precisamente três anos depois, em outubro de 1978, Moraes deu a sentença do caso Herzog. Responsabilizou o Estado brasileiro. Já não era o advogado assustado, mas um juiz determinado.

(Continua)