O idioma que se fala

– Tudo bem?
O passante cumprimenta o conhecido que cruza com ele na calçada, na manhã ensolarada destes dias. A resposta é bem brasileira:
– Tudo bem!!!???
Uma afirmação como resposta e, ao mesmo tempo, uma pergunta embutida na entonação final. Coisa distinta, de quem quer saber do bem estar do outro.
– Tudo bem!
Na medida certa das palavras, e sem reduzir o passo, os vizinhos travam um diálogo completo. Com começo, meio e fim.

Sobre lugar de fala

As turminhas foram se juntando na curva dos rios, no remanso das marés, no enrosco da vegetação dos mangues. Hordas descartadas. Pneus, geladeiras, vasos e assentos sanitários, fogões. Móveis de madeira, sofás, cadeiras, estrados. Rejeitos hospitalares, produtos químicos. Veículos de tração mecânica e animal, barcos emborcados, latinhas e latões, lonas, tecidos e todo tipo de material plástico. Vidros, pets de todos os tamanhos.
Brinquedos. Aqui e ali. bicicletas decadentes, bolas furadas. Bonecas arruinadas de material variado, santos e santas de louça, com ou sem cabeça. Lâmpadas queimadas, filtros de barro, quadros de parede, bujões de gás enferrujados. Tudo o que um dia teve serventia, mas que há muito de nada mais valiam. Estorvos.
De início comunidades solidárias, uniram-se para dar conta das próprias agruras, amparar-se e fazer frente aos inimigos naturais com que se confrontavam: a corrosão das águas, a agressividade da fauna e da vegetação e a força avassaladora da natureza, suas tempestades e mudanças de maré. Os resíduos e os dejetos humanos despejados sem cuidado com a qualidade da água a que se misturavam. Não era o paraíso. Era a sobrevida possível. Fim de ciclos.
Nesse tempo, o homem andava distante, mal se dando conta do que ocorria naqueles confins. Mal percebendo que as porcarias largadas nos córregos, nas praias e nas ruas, nas redes de esgoto, a algum lugar chegariam. Até que, em todas as águas internas e costeiras, surgiram as primeiras carcaças de animais e peixes variados. Os menores, primeiro. Depois, maiores. E cada vez mais distantes dos litorais e das zonas urbanas. Mar afora, interior adentro.
Os primeiros a notar que alguma coisa mudava foram os caiçaras, os pescadores e os que usavam os rios para irrigar as terras, saciar as plantações. Ao invés da antiga limpidez, cursos de águas mortas. Sobras malcheirosas a turvar paraísos naturais. Também dessas populações partiram os alarmas, que naturalmente não foram ouvidos.
Tanto quanto a poluição das águas, incomodavam os lixões que se formavam ao redor. Junto, vinha a ocupação desordenada das áreas ribeirinhas por desvalidos expulsos das periferias das cidades e explorados por espertalhões com ou sem causa. Todos interessados nas parcas rendas e escassas economias dos infelizes.
Os solidários movimentos por moradia e os agentes imobiliários da miséria acenavam com preços e alugueis módicos. Ali, seria possível encontrar não só a moradia, como também as atividades de subsistência oriundas das sobras das classes mais abastadas. Reciclagem foi o nome bonito que encontraram para isso.
Aí, começaram as desavenças. As pets e as latinhas de alumínio, notando a preferência dos catadores, começaram a se achar. Não queriam mais a proximidade de madeiras, ferragens, materiais plásticos, tecidos em decomposição. Só queriam a própria companhia, e só a seus iguais permitiam manifestar-se em nome do grupo.
Nasceram as castas e o empoderamento das que se julgavam diferenciadas. Aquelas que mesmo na desgraceira comum se sentiam superiores e com mais direitos. Os elementos mais radicais, reservaram para si o lugar da fala.
Caminho aberto aos mais abjetos preconceitos.
Cemitério da solidariedade.

A classe média vai à luta

Um boato de desabastecimento, no início da tarde de ontem, quinta (12/03), fez a classe média dos Jardins, em São Paulo, correr ao empório Santa Luzia, a fim de garantir seus queijos, biscoitos e produtos importados diversos. Senhoras nervosas empurravam carrinhos, auxiliadas por empregados domésticos.

Não chegou a ocorrer disputas mais agressivas por um pedaço de brie, mas a avalanche de gente e o congestionamento nos caixas fizeram a direção da loja acionar o circuit braker e suspender as entregas em domicílio. O pessoal dos serviços de compra por aplicativos, contudo, continuou operando normalmente.

Passei lá esta manhã, e encontrei o mercado ainda lotado, com movimento digno das festas de fim de ano. No trecho da Alameda Lorena em frente, era longa a fila de carros na entrada da garagem. Dentro, foi difícil circular nas proximidades dos caixas. Notei ser inviável fazer qualquer compra e limitei minha visita a uma ida ao banheiro. Também ali havia alguma espera, mas nada grave.

O pior desta crise, para aquela freguesia, é que não se pode nem fugir para a Europa ou América do Norte, regiões em que o vírus está pegando mais pesado. Mais feliz, o pessoal da esquerda pode continuar indo para Cuba, na certeza de que lá existe uma vacina infalível.

 

Grudadinha

Espécie rara da flora paulistana, encontrada junto ao prédio na esquina da Peixoto Gomide com a Barão de Capanema. Ela cresceu roçando a parede do edifício e, hoje, os moradores do quarto e do quinto andar alcançam seus galhos e suas folhas com as mãos. Podem dizer que têm uma árvore na sala. Meu poodle Chico, que às vezes tem umas ideias esquisitas, comentou enquanto eu fotografava: “Se eu soubesse subir em árvore, ia dar uma espiadinha!”

Dos passeios com Nina e Chico

A guarda distraída e o ladrãozinho escalando o prédio, disfarçado de Papai Noel.

 

Numa esquina da cidade de São Paulo, o cidadão tenta atravessar para o outro lado da rua, usando a faixa de pedestre. Mas não dá tempo. O caminhão passa em velocidade incompatível com a região e ainda buzina, como quem diz: vê se presta atenção no trânsito, cara!

O cidadão recua para a calçada, porque logo atrás vem um carro em velocidade mais baixa. Espera que o motorista lhe dê passagem, mas não é necessário. O carro dobra à esquerda, antes da faixa, sem dar o sinal de seta;

Às vezes tenho a impressão de que, especialmente nos veículos mais caros e luxuosos, a sinalização de direção é equipamento opcional, pouco desejado pelos motoristas. Porque pelo menos nesta cidade o sinal de seta é muito pouco usado. Ou talvez na maioria estejam enguiçados.

Nos casos em que as setas funcionam, tento entender a cabeça dos motoristas. Que utilidade teriam para eles? Penso em três hipóteses, por ordem decrescente de prioridade.

  1. O motorista usa a seta para tomar uma decisão, normalmente em cima da hora. “Vou virar pra esquerda!” Tchum. Seta pra esquerda, e é para lá que eu vou. Vou virar para a direita;;; Ou seja, o motorista usa a seta para ele mesmo.
  2. O motorista usa a seta para avisar o outro motorista, quase ao seu lado, de que vai mudar de faixa. Dá a seta e já vai entrando, à direita ou à esquerda. Em caso de batida, a seta ainda piscando será a prova de sua inocência.
  3. O motorista usa a seta para avisar ao pedestre sobre a faixa de proteção de que vai entrar/está entrando/entrou na rua transversal. Em caso de atropelamento, culpa do pedestre que não esperou pela passagem do meu possante.

Nos casos extremos, há os (poucos) que usam corretamente o sinal de seta e os (muitos) que nunca usam o instrumento. Numa cidade como esta, haver tão poucos acidentes e atropelamentos é sinal claro da existência de Deus

Vejo uma rosa bonita no jardim de um prédio do bairro. Uma rosa irresistível. Lembro do pai do Johnny, que rouba flores dos quintais, no caminho de casa, e leva para a mulher.

Tento imitá-lo, mas sou surpreendido pelo zelador. “Que coisa feia!”, diz ele. “Que coisa linda!”, respondo. “Uma beleza destas só tem um lugar para ficar melhor. O colo da mulher amada!”

O zelador sorri e me deixa ir.

 

Passarinhos

O lagarto cinza com manchas amarelas desce rebolando o caminho de terra. Tem cerca de 80 centímetros de comprimento e é um tanto gordo. De repente, para, observa o pequeno barranco coberto de heras e fareja o alimento. Começa a caminhar para lá, quando a passarinha sai das folhagens e pousa, primeiro à direita do bicho de língua comprida. O lagarto vira-se e a passarinha, ligeira, faz um curto voo sobre ele, indo parar do outro lado. Começa a dança. O lagarto olha para a esquerda e a passarinha vai para a direita. O lagarto é lento e a passarinha, ágil. Ficam assim por alguns minutos, até que o lagarto desiste do almoço e retorna pelo mesmo caminho. Missão cumprida! A passarinha volta ao ninho e aos ovinhos.

O passarinho marrom está petrificado, bem no meio da calçada. O homem se aproxima conduzindo dois cachorrinhos, que passam um de cada lado, indiferentes à figura paralisada. Será uma pedra? Uma folha ressecada? Cocô de cachorro grande? Nada que interesse. Aliviado, o bichinho volta às suas tentativas de alcançar as plantas do outro lado do muro, sem perceber que a parte de cima é vidro grosso. Só por isso ele vê aquele verde, que o atrai. O pobre voa, bate e cai de volta. Mas não desiste. Vê ali um refúgio mais seguro do que a calçada. O homem percebe o drama. Recolhe o passarinho e o deposita num galho da pitangueira plantada junto ao meio-fio. Dali, os horizontes serão mais amplos, e o bichinho poderá voar para onde quiser