Na minha memória afetiva estão os dois jogos épicos do Santos em competições oficiais: a virada contra o Milan, no Maracanã, em 1963, e a goleada sobre o Fluminense, no Pacaembu, em 1995, que nos levou à final do campeonato brasileiro daquele ano. Assisti ao primeiro pela TV e ao segundo no estádio. Na mesma memória estão os dois maiores espetáculos de futebol jamais vistos no mundo, protagonizados pelo time mágico de Zito e Pelé.
Ambos também oficiais e consagrados por títulos conquistados aconteceram nos inesquecíveis anos de 1962 e 1963, quando o Peixe virou cinquentão e levou tudo o que disputou. Foi um show por onde passou. Nesses dois jogos, que apenas ratificaram a liderança santista nacional e mundial, brilhou além do time fantástico a competência do treinador Luiz Alonso Peres. Lula, aliás o criador do time. Do primeiro desses jogos, soube apenas o resultado, no dia seguinte, pois era interno em um seminário de padres. O segundo, vi pela TV.
Naquela época, não estava na moda a expressão “nó tático”, mas foi exatamente isso o que Lula fez com os pobres adversários. Contra o Botafogo, que se achava rival do Peixe, mas que historicamente foi apenas um eventual coadjuvante de nossas conquistas, o massacre de 5 a 0 no Maracanã, fechando o bicampeonato da Taça do Brasil (em seguida, sucessivamente, viriam mais três títulos nacionais) não deixou margem a dúvidas. O Botafogo de Garrincha e Didi era irremediavelmente impotente diante do Peixe.
Na noite de 2 de abril de 1963, os dois times entraram com sua força máxima no Maracanã. O Santos tinha vencido no Pacaembu (4 a 3), mas o Botafogo ganhou o segundo jogo por vistoso 3 a 1, e era considerado pela mídia o favorito a conquistar a Copa do Brasil. A ilusão durou pouco. O Peixe meteu cinco com os seus atacantes (Dorval, Coutinho, Pelé, Pelé e Pepe) e deu branco no ataque carioca de Amarildo, Quarentinha e Zagallo, além de Garrincha.
Para esse resultado, foram fundamentais duas intervenções táticas de Lula: Zito ficou na cobertura de Dalmo na marcação a Garrincha e Dorval recuou para acompanhar Zagallo, bloqueando a armação do time botafoguense. O ponta esquerda não viu a cor da bola, anulado pelo ponteiro santista, e o genial Mané pouco produziu. Quando passava por Dalmo, parava no grande capitão.
Meses antes, no Estádio da Luz, Lisboa, a intervenção tática do treinador do Peixe foi mais simples, mas mostrou outra de suas qualidades, talvez a menos valorizada. Desde que assumiu o Santos, e foi montando o maior time da história do futebol, Lula estimulava a polivalência dos seus jogadores. Com ele, zagueiros pelo meio deviam ser tão bons laterais quanto meias defensivos e avançados, às vezes até atacantes, como Ramiro, Formiga, Urubatão e Feijó não cansaram de mostrar. O mesmo valia para laterais, volantes, meias e atacantes. No time de Lula, tinham de jogar em várias posições.
Em Lisboa, Lula tinha à disposição o mesmo time da vitória no Maracanã, pouco menos de um mês antes, com Gilmar, Lima, Mauro, Calvet, Dalmo, Zito, Mengálvio, Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe. Ou seja, podia escalar simplesmente o melhor conjunto da história do futebol mundial, e não precisava esquentar a cabeça. O bruxo, entretanto, resolveu azucrinar os portugueses.
Foi assim que o veterano zagueiro Olavo surgiu na lateral do Peixe, na noite de 11 de outubro de 1962, no Estádio da Luz. Eram tão grandes a empáfia lusitana e a certeza na vitória em Lisboa, decorrentes do que o Benfica fizera com os rivais europeus, incluídos Barcelona e Real Madrid, no bicampeonato da Copa da Uefa, que a mudança promovida por Lula nem foi percebida por eles.
Na verdade, a entrada de Olavo nada alterava na defesa santista. Mas o deslocamento de Lima para a meia, no lugar de Mengálvio, foi decisivo. Ao poderio do ataque santista acrescentou-se a mobilidade de Lima, mais ofensivo do que o clássico meia catarinense. Além de mais rápido, o coringa era também um poderoso finalizador de média distância.
Em suma, não foi fácil a vida do goleiro Costa Pereira. Com Dorval e Pepe em noite mais inspirada do que nunca, era impossível para ele e seus companheiros saber onde morava o perigo. O técnico Riera achava que o Santos tentaria manter a vantagem obtida no Maracanã e jogaria na defesa.
Pagou caro a ingenuidade. “O Santos nunca se fechava”, disse Zito ao jornalista Odir Cunha. “Fomos pra cima deles desde o início”, completou Lima. Aos 25 minutos, Pelé já havia marcado duas vezes. E os santistas só deram folga aos 32 do segundo tempo, quando Pepe fez o quinto gol, depois de Coutinho e Pelé terem feito outros dois. No fim, o público aplaudiu de pé o time brasileiro.
Quase100 mil portugueses viram no estádio aquela exibição inacreditável e até saíram felizes com os gols marcados por Eusébio e Santana depois dos 40 minutos do segundo tempo. Afinal, tiveram o privilégio de testemunhar um espetáculo de gala apresentado pelo maior time do mundo. Um time que, além da realeza de Pelé e da liderança de Zito, contava com a genialidade de um elenco inteiro de mágicos da bola. Sob o comando de Lula.
Não por acaso, quatro anos depois Lima foi o melhor jogador da seleção na Copa da Inglaterra, tendo se transformado no mais famoso coringa do futebol brasileiro. Jogava praticamente em todas as posições. Lula procurava explorar ao máximo o talento dos jogadores de que dispunha, muitas vezes montando o time não com os melhores por posição, mas com os melhores do elenco.
No ataque santista, Alfredinho, Dorval, Álvaro, Pagão, Coutinho, Toninho, Tite, Edu e Abel podiam jogar tanto nas extremas quanto no meio, recuados ou avançados. O Santos de Lula tinha, permanentemente, um grupo de cerca de vinte titulares, que se equivaliam e davam ao treinador todas as opções técnicas e táticas. A torcida ia para o estádio sem saber bem que time jogaria. Pagão ou Coutinho? Tite ou Pepe? Dorval ou Alfredinho? Zito e Mengálvio? Zito e Lima? Lima e Mengálvio? Zito ou Formiga ou Urubatão?
Lula assinou o primeiro contrato com o Santos no dia 13 de maio de 1952. O treinador era conhecido na cidade pelo trabalho em equipes amadoras e foi para a Vila trabalhar na base. O mineiro Formiga (Cruzeiro) e o goleiro Manga (Bonsucesso) já estavam lá desde o ano anterior, mas em seguida chegariam Zito (Taubaté), Álvaro e Feijó (Jabaquara, no começo de 1953), Vasconcellos e, mais tarde, Pagão (Portuguesa Santista). Nos times de baixo despontavam os promissores Del Vecchio e Pepe, além de Ramiro, comprado do Fluminense.
Era um elenco de peso, mas os títulos não vinham e uma penca de técnicos foi chegando e sendo dispensada. Até que, em junho de 1954, o presidente Athié decidiu entregar o time a Lula, que se transformaria no melhor e mais vitorioso técnico do futebol brasileiro. Em 13 anos no Santos, Lula ganhou 21 títulos oficiais, entre eles dois mundiais, duas Libertadores e o pentacampeonato brasileiro (Copa do Brasil, de 1961 a 1965), além de oito paulistas e diversos troféus internacionais. Venceu 770 partidas em 950, inéditos 81% de vitórias.
O maior mérito de Lula, entretanto, foi assim reconhecido pelo jornalista Odir Cunha, no livro Time dos sonhos: “Jamais outro técnico criou uma obra tão perfeita. Um time com todos os jogadores do próprio país, nenhum contratado por muito dinheiro e quase todos lançados antes de atingirem a maioridade.”
Lula foi demitido em 1967, dando lugar ao auxiliar Antoninho Fernandes, por causa de alguns maus resultados (entre eles a eliminação para o Cruzeiro, na Taça Brasil de 1966) e de intrigas políticas internas. Voltou depois à Lusinha e, em 1968, passou pelo Corinthians, com o qual derrubou o tabu, que ajudara a criar, de não vencer o Santos. Trabalhou ainda na base do Santo André e afastou-se do futebol no início dos anos 1970 por graves problemas de saúde.
Luiz Alonso Peres, o técnico que foi pedreiro e estivador antes de trabalhar no futebol, nasceu em Santos no dia 1º de março de 1922 e morreu aos 50 anos, em 15 de junho de 1972, em São Paulo. O Peixe deve uma grande homenagem a ele.