Negócios da bola (fim)

Tentativa de roteiro “baseado em fatos reais”, para série de TV. Os fatos que se seguem, datados de décadas atrás, envolvem um time de futebol e pessoas já mortas, cujos nomes foram modificados. Testemunhas ouvidas pelo autor narraram estas histórias, que nada são mais do que pura ficção e galhofa.

 Temporada 1, episódio 3

Saguão do aeroporto de uma capital do sul do país. Fininho, auxiliar técnico de Paco no comando do time de futebol, caminha de um lado para outro. Parece desorientado, enquanto espera pela chamada do voo que o levará de volta. Desorientado a ponto de, frustrada a primeira parte da missão, decidir voltar sem cumprir a segunda.

Dois dias antes.

Enquanto observam o treino coletivo dos titulares contra os reservas, Paco e Fininho conversam ao lado do campo. Paco fala ao assistente:

– Sabe aquele meia do time da fronteira, que a gente gostou? Pois é! Eles vão jogar domingo. Quero que você vá lá observar. Vê se vale a pena comprar.

– Claro, chefe! O cara parece ser muito bom. Aproveito e dou uma olhada no goleirinho, também.

– Ah, mas tem uma coisa que eu preciso que você faça pra mim.

– O quê? É só mandar.

– Lembra da nossa última viagem ao exterior? De lá de fora eu despachei um baú com algumas coisinhas. Pensei que ia pegar aqui, com o nosso pessoal da alfândega. Só que o avião fez escala no Sul e lá ficaram as bagagens desacompanhadas.

– Deu ruim, chefe?

– É, atrapalhou. Mas, tudo bem, vamos resolver isso. Falei com um amigo lá. Você chega no aeroporto, procura por ele, mostra este recibo e ele te ajuda a desembaraçar o baú. Na volta, uma perua do clube vai te buscar. Feito?

Dois dias depois.

Apesar do cansaço e do nervosismo, Fininho evita ficar parado. Olha para todos os lados para ver se alguém se aproxima. Sai do saguão e vai pro estacionamento em frente. Volta. Entra e sai do banheiro. Caminha de um lado ao outro do corredor dos balcões das companhias aéreas. Aguarda ansioso a chamada para embarque.

Só se acalma quando o avião começa a levantar voo. Mourão, o contato do Paco na alfândega do Sul, foi muito claro quando procurado. Disse que avisou o treinador para deixar a poeira baixar, porque o conteúdo do baú chamou a atenção do pessoal da Receita. Já tinham calculado a multa e estavam loucos para pegar o espertalhão que fosse buscar a muamba. Seria pagar ou passar alguns dias na cela da PF, ali mesmo.

– Se manda, porra. Não estou entendendo este encontro. O Paco ficou louco de te mandar aqui. Vaza. Pega o avião de volta. Se te pegarem, não diz que me conhece. Tchau, adeus…

A 10 mil metros de altura, Fininho só pensa em vingança. Filho da puta! Sabia no que estava me metendo e nem ligou. Paco filho da puta!

Negócios da bola (segunda parte)

Tentativa de roteiro “baseado em fatos reais”, para série de TV. Os fatos que se seguem, datados de décadas atrás, envolvem um time de futebol e pessoas já mortas, cujos nomes foram modificados. Testemunhas ouvidas pelo autor narraram estas histórias, que nada são mais do que ficção e galhofa.

 Temporada 1, episódio 2

Quarto de hotel cinco estrelas em cidade de um país alpino. O técnico Paco reúne o time para resolver um problema grave, que ameaça não só a reputação dos jogadores e do time, mas a do próprio país que representam. O clima é tenso.

Cinco horas antes.

O comércio local está fechado ao público por causa de um feriado nacional. A pedido da Embaixada, um alto funcionário de prestigiada joalheria abre a loja para atender o elenco e os dirigentes do clube. Armado da maior boa vontade, o rapaz destrava as estantes envidraçadas e coloca os mostruários de joias e relógios à disposição dos estrangeiros.

De volta ao hotel, o chefe da delegação recebe uma ligação da Embaixada. Uma joia valiosa havia sumido e a polícia só não será acionada se não for devolvida até aquela noite. O treinador é chamado para resolver rapidamente o problema, já que o escândalo seria enorme, caso vazasse. Paco diz “deixem comigo”, e chama o elenco para a reunião no quarto dele.

Agora, estão todos acomodados diante do técnico e de uma mesinha. Paco dirige-se aos jogadores no tom que a gravidade do momento exige:

– Um de vocês fez merda. Um puto de vocês pegou uma peça muito cara, colocou no bolso e saiu da joalheria sem pagar. Os caras descobriram e ameaçam avisar a polícia. Precisamos devolver a joia, caralho.

Suspense. Os jogadores se entreolham, tentando adivinhar quem foi capaz de fazer aquilo. O sentimento geral é de vergonha.

– Está claro que um de vocês pegou a joia. Mas não quero humilhar ninguém. Vou dar uma chance ao malandro. O (massagista) Marinho vai apagar as luzes e o filho da puta terá tempo de colocar a joia nesta mesa sem ser visto.

– Apague a luz, Marinho!

O silêncio só não é maior do que a escuridão do quarto. Ninguém percebe qualquer movimento, até que Paco autorize Marinho a acender a luz de novo.

Então, como num conto do detetive Hercule Poirot, espantosamente a joia brilha no meio da mesa. Paco elogia a honestidade dos jogadores e dispensa o grupo.

Negócios da bola (primeira parte)

Tentativa de roteiro “baseado em fatos reais”, para série de TV. Os fatos que se seguem, datados de décadas atrás, envolvem um time de futebol e pessoas já mortas, cujos nomes foram modificados. Testemunhas ouvidas pelo autor narraram estas histórias, que nada são mais do que pura ficção e galhofa.

 Temporada 1, episódio 1

Quarto de hotel cinco estrelas em uma capital sul-americana. Paco, o treinador do time, interfona para o massagista Marinho.

– Você comprou um “3 em 1” em Nova York, não foi? Quanto pagou? Ainda está com ele?

– Sim, chefe. Paguei 100 dólares.

– Então, vem aqui. E traz o aparelho, que eu quero comprar.

Paco explica ao massagista que estava encrencado com um freguês, a quem havia prometido vender uma daquelas maravilhas. Trouxera cinco dos EUA, mas naquela manhã outros compradores apareceram e levaram todos.

Naquele tempo, quem viajava para o exterior trazia na bagarem alguma bebida, cigarros, perfumes, lenços de seda, suéteres de cashmere inglês, relógios e brinquedos elétricos. Esses produtos ficavam mais baratos quando comprados livre de impostos nas zonas francas de Lima e da Cidade do Panamá, escalas das viagens entre o Sul e o Norte do continente.

Na América do Sul, o que podia ser comprado em um país para ser vendido em outro era algumas roupas de lã no Peru e na Bolívia, cashmere de padrão inferior na Argentina, também produtora de um bronzeador, o Rayito de Sol, muito apreciado nas praias e piscinas brasileiras. Havia também alguma bebida, como o rum e o pisco, que podia interessar nas vizinhanças. Nas andanças do time pelo continente, Paco estudava bem o roteiro e avaliava os negócios possíveis.

Sonhos de consumo de maior valor agregado eram pequena TV de cinco polegadas, ainda em preto e branco, e um auto rádio chamado GoldStar, de seis válvulas, além do recém lançado “3 em 1”, equipamento que reunia toca discos, rádio e gravador de fita cassete numa só peça. Era de uma dessas novidades que o treinador precisava para não deixar o freguês na mão.

No quarto do chefe, Marinho encontra o comprador à espera. Sem ação, acompanha a rápida sequência da história. O sujeito passa 150 dólares em dinheiro para Paco, que entrega a encomenda ao novo dono. Em seguida, Paco coloca uma nota de 50 dólares no bolso e paga o subordinado com os outros 100.

– Tudo certo? Obrigado, Marinho!

“Isenção” desde a pauta

Reunião de pauta na redação. Qualquer redação. O chefe de reportagem, um chefe qualquer, levanta o assunto. Vocês viram o que fizeram na desocupação daquele prédio abandonado no centro da cidade? Um absurdo! Puseram a polícia lá, armada até os dentes, para retirar famílias pacíficas e inocentes. Violência sem sentido!

Alguém recente na casa, tenta defender a operação: Diz que a polícia foi cumprir mandato judicial e os invasores reagiram com uma tempestade de paus, pedras e objetos diversos, até um vaso sanitário. Conversa mole, meu caro, corta um editor. É limpeza de área para a especulação imobiliária.

O pauteiro põe ordem na conversa. Vamos mandar equipe completa. Produtor de campo, repórter e cinegrafista, para mostrar o lugar depois da operação policial. Em seguida, percorremos as ruas por onde o pessoal se dispersou.

Vamos providenciar para que estejam lá nossas fontes de confiança: o padre que lida com população de rua, o pessoal que defende “soluções alternativas”, os técnicos do governo anterior (“que fazia um trabalho admirável, dando moradia e salário para os sem teto!”), um especialista da universidade federal com “visão científica e progressista” do problema, o combativo deputado da oposição, alguém do ministério público e de um ou dois movimentos sociais.

Também estamos tentando encontrar a representante daquela organização internacional que atrai financiamento europeu para nossas ongs. Ela certamente terá muito o que falar sobre a mudança na política pública para a habitação.

A intervenção é aplaudida. Para jornalistas investigativos e imparciais, as medidas adotadas pelo governo anterior, dependendo do tipo de governo anterior, são sempre melhores do que as do governo atual, dependendo do tipo de governo atual. São melhores sempre, ainda que os problemas persistam e até se agravem. O que vale é a boa intenção.

É melhor recorrer às fontes de sempre, carimba o chefe de reportagem, porque elas têm pontos de vista originais e respeitáveis. Partem do princípio de que a autoridade pública, dependendo do tipo de autoridade pública, é claro, está sempre errada. Sabem o que é melhor para as pessoas e valorizam nossos telejornais. Falam bem e dão boas entrevistas.

Com todos esses cuidados, a cobertura sairá redonda e a matéria esclarecerá a opinião pública. Sem ruídos perturbadores, como a explicação dos responsáveis pela ação, a opinião dos moradores e comerciantes da região (gente intolerante!), o sentimento dos cidadãos que tiveram seus imóveis e negócios desvalorizados pelos invasores (problema deles!). Bobagens que, francamente, não interessam!

Nem se passará perto da discussão sobre a possível existência de uma indústria da ocupação, ou a respeito da exploração daqueles miseráveis, os invasores, pelos profissionais do setor. Afinal, querem moleza? Querem de graça a luz, a água e a net gatunamente fornecidas? Denúncias infundadas, sabemos, contra pessoas que trabalham pelo bem comum. Papo furado para justificar a desumanidade da ação e encobrir a truculência da polícia.

Pronto! Os telejornais da casa apresentarão matérias edificantes. O telespectador comum ficará um pouco confuso, é certo, sem saber exatamente de que lado estamos. Haverá quem desconfie que defendemos as invasões e o vandalismo, em oposição ao cumprimento da lei. Mas, por outro lado, o lado que interessa, ficaremos bem com a inteligência avançada e o pensamento bonzinho.

Premonição pandêmica

Esta história não se conecta à vida real nem se baseia em fatos concretos. Se aconteceu, quem ainda lembra? Profecia retroativa, antevisão do passado?

Era uma vez, no tempo impreciso de uma terra distante, ou no tempo distante de uma terra imprecisa, um jovem advogado aprovado em concurso para juiz.

(“É golpe!” – range a fauna corrupta. “É golpe!” – rosna a patuleia dos pântanos.)

Sérgio, vamos chamar assim o nosso personagem, vive longe das maravilhas do centro do poder. Seu tribunal não usufrui das regalias reservadas aos colegas das cortes centrais. Mas Moro, digo, Sérgio, é determinado.

(“É golpe!” – assanha-se a turba informe nas profundezas do pré-sal. “É golpe!” – desespera-se a proteína animal no abatedouro.)

Véspera da nomeação. Moro, digo Sérgio, não dorme. Um enredo inconcebível insinua-se e bloqueia seu sono. Na fantasia, a grande aventura apenas começa. De forma imprecisa, intui a missão redentora cravada em seu destino. Seria ele o encarregado de enfrentar as forças do mal que infelicitam o reino e seu povo? Seria ele nada menos que o salvador?

(“É golpe!” – queixam-se as parasitas nas árvores exauridas. “É golpe!” – repetem em pânico as manadas cabisbaixas.)

Nisso, um sonho põe fim à vigília e atropela a história. A voz tonitruante (como em todo sonho, uma voz tonitruante conduz a narrativa) ordena ao juiz:

– Moro, Moro! Digo, Sérgio, Sérgio! Agarra a Operação que te espera e faz dela a razão de teu trabalho e de tua existência. Investigue a bandalheira, lave esta terra, ataque a jato os vendilhões do reino. Use a força da tua tarefa!

(“É golpe!” – grasnam as aves negras. “É golpe!” – escapam pelos esgotos as ratazanas graúdas.)

– Imploda a indústria da corrupção, derrube os usurpadores do poder do povo, coloque na cadeia o chefe da quadrilha – prossegue o vozeirão.

– Siga nessa trilha. Abra caminho para o Messias que virá e serás recompensado. O Príncipe te fará Ministro. Tenha a certeza!

(“É golpe!”, já mal se ouvem os ganidos em polvorosa. “É golpe!”, distancia-se o mimimi das gralhas na debandada.)

A voz também emudece. O sol clareia a manhã em Curitiba. Moro, digo Sérgio, já não sabe mais o que é sonho e o que é realidade. Curitiba… Nome estranho…

Silêncio. Tenta pensar num discurso de posse. Ficar na praxe de esperar a colaboração de todos? Falar do trabalhão que terá pela frente? Antecipar o futuro brilhante que a todos aguarda?

(“É golpe! Não disse?” – praguejam de volta os abatidos. “É golpe! Não disse? – renascem os derrotados, em busca do sol.)

O REI DO FUTEBOL – Prólogo II

Porque eu fui/sou o rei do futebol, e a minha majestade teve/tem vários nomes. Santos, você pode resumir. O time e a cidade. Ou Vila Belmiro, o meu melhor cenário, o lugar onde todos os talentos da bola insistimos em jogar. Mas você também pode individualizar. Ramiro, Zito e Formiga. Alfredinho, Del Vecchio e Vasconcelos. Álvaro, Urubatão e Tite. Manga, Hélvio e Ivan. Fui/sou essa turma toda em carne e osso e, com o tempo, aconteceu uma coisa esquisita. De heróis dos títulos de 1955 e 1956, como por encanto viraram/viramos seres mitológicos devidamente documentados com CPF, RG e CEP. Extraordinário!

Sozinho, formei/formo o ataque sobrenatural de Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe, na continuação daquele que escalei com outros nomes. Com Jair e Pagão entre Dorval e Pelé, por exemplo. Antes, fui/sou Omar, Camarão, Siriri, Araken, Feitiço, Evangelista, toda a poderosa linha dos 100 gols do fim dos anos 1920. Como também fui/sou o solitário Antoninho Fernandes, nos tempos difíceis das três décadas seguintes. Eu era/sou cada linha atacante dessas e fui/sou cada um desses craques. Provavelmente, estava a não mais de um quilômetro de Urbano Caldeira, quando Pablo Neruda escreveu, na amurada do navio atracado no cais santista: “Falam de Pelé. Será que ele joga tão bem?”. Um verso perdido do fim daquela década, um poema que o chileno dedicou à cidade.

"Fui/sou o time campeão de 1935. Fui/sou Pelé e Coutinho"

Sim, poeta! Posso responder porque fui/sou ele. Joguei muito e sempre estive na boa companhia de mim mesmo no Santos. Sendo também Gilmar, Cláudio, Cejas, Lima, Carlos Alberto, Mauro, Marçal, Calvet, Ramos Delgado, Joel Camargo, Orlando, Djalma Dias, Marinho Peres, Dalmo, Geraldino, Rildo, Clodoaldo, Negreiros, Nenê, Léo, Orlando Lelé, Pitico, Abel, Edu, Manoel Maria, Jair da Costa, Toninho Guerreiro, Douglas, Alcindo, Euzébio e Cláudio Adão. Outras lendas que encarnei/encarno, outras histórias que a magia do futebol tornou fantasias.

Pode crer que, nos primórdios, também fui os assombrosos Arnaldo Silveira, Tuffy e Athié. Garanto a você que, no corpo atarracado de uns e na figura esguia de outros, todos foram/fomos nada menos que isso: assombrosos. E que, desde aqueles tempos tão antigos quanto eu, demos ao Peixe a marca inconfundível. O Santos, meu filho, nasceu para encher de gols o mundo da bola. Quantas vezes eu disse isso a vocês, os mais velhos, extasiados com os ataques avassaladores dos anos 1950 e 1960. E quantas vezes repeti para os mais novos, deslumbrados com os títulos que vieram dos pés de Aílton Lira, Pita, Batata, Juary e João Paulo. E de Rodolfo Rodrigues, Dema e Serginho Chulapa.

Ao lado de todos vocês, e na versão Giovanni dentro de campo, chorei o roubo de 1995 e revivi a epopeia do Peixe quase centenário na síntese da redentora tarde de 15 de dezembro de 2002, quando aquela nova fornada de Meninos da Vila nos recolocou de cabeça altaneira. Vencidas as sete pragas e superada a travessia do deserto, porque não há glória sem dor, cumpria-se o que está escrito: jamais houve ou haverá nada igual entre as linhas dos campos abençoados. E, naquela tarde, eu era o menino endiabrado, com suas pedaladas e tudo o mais.

O que você lerá/leu aqui é apenas resumo. Algumas das formas que assumi nestes cem anos, em múltiplos cenários por toda parte e no meu reino preferido. A Vila Encantada. Mas o mundo gira e a bola não para. Daqui a 30 anos, suas filhas poderão dizer: eu vi Robinho e Diego, eu vi Neymar. Poderão resumir: eu vi o melhor do futebol. Porque assim foi. Assim é. Assim será.

(Fim)

O REI DO FUTEBOL – Prólogo I

Não pergunte como pude saber, filho, mas você vai encontrar/encontrou estes papéis exatamente hoje, 14 de abril de 2012, e vai ler tudo até o fim. Bem antes que o sol deite o último raio do canto dos ingás, que Vicente de Carvalho cantou, você saberá das coisas extraordinárias que aqui estão descritas. Não pergunte nada, por enquanto. As respostas estão aí. Apenas leia. Isso! Pegue a cadeira de alumínio com tiras coloridas de plástico que sempre foi sua. Ela estará/está incrivelmente conservada. Como estava limpo e sem mofo o bangalô que você reabriu esta manhã, depois de tanto tempo. Surpreso? Eu também ficaria, apesar de tudo. Mas, repito, não se questione. Deixe as perguntas para depois, porque então elas não serão mais necessárias.

Encoste a porta, siga a carreira de terra batida entre o mato rasteiro, cruze a areia e instale-se no lugar de sempre. Bem onde as ondas acabam, molhando seus pés e os chinelos de dedo. Daqui, eu o verei/vejo. Ora correndo como o garoto de outrora, descalço, calção folgado, fazendo alarido com os irmãos. Ora como agora. Meio curvado, medindo os passos, estranhando a claridade do sol que ofusca a visão fraca, reclamando da aspereza da areia que arde nos pés através da borracha do calçado (talvez lhe restem bolhas no solado do dedão, como lembrança deste dia especial, minha única incerteza de tudo quanto passo para o papel com tanta antecedência). E, afinal, arrepiando-se no contato com a água salgada e fria desta época.

Antes, não haviam estranhamento, irritação, arrepios. Esta praia, de ponta a ponta, em toda extensão, era a continuidade do nosso ínfimo quintal do Marapé, em Santos. A sua casa e a casa dos seus irmãos. O lugar em que mais ficavam à vontade. Não havia segredos que vocês não desvendassem entre a mata e o mar, os passarinhos e os peixes, as frutas praianas (ah, o azedinho do abricó, a doçura do jambolão…) e os frutos do mar (os suculentos mariscos das pedras do canto direito), os ventos, as ondas e as marés. Foi aqui que os mais novos aprenderam a surfar. Aqui disputamos nossas peladas, vocês sem saber com quem jogavam! Naquelas manhãs e fins de tarde, o que me dava prazer era assistir à vibração de todos. Rir da chacota trocada no drible, da emoção suscitada pelo gol bem marcado, da comemoração das vitórias. Parecia que vocês estavam de branco, no Maracanã. São os melhores momentos das histórias que deixo aos seus cuidados.

Por que você entre tantos filhos? Por que neste chalé esquecido, que seus irmãos compraram para o desfrute da família? Neste encontro com o passado, para você casual? Você sabe, filho, que amei todos vocês do primeiro ao último. Em cada um vi qualidades, que só me deram orgulho, muito mais do que as façanhas que estou prestes a revelar. Todos seriam bons guardiões destas anotações. Mas foi você, junto com a sua mãe, quem mais me entendeu, nestes casos. E quem, sem saber, me ajudou a contá-los. Ou você pensa que me saiu do nada este jeito de colocar as palavras no papel, se o pai que você teve mal foi alfabetizado? Acho que você vai gostar do resultado. Nas outras missões que tive, obras assinadas por diversos autores, você vai ver que me saí bem. Muito bem. Excepcionalmente bem, posso dizer, sem medo de exagerar.

Que bom que você lembrou de trazer a garrafinha de água! As horas passarão/passaram rápidas, e será/foi bom molhar a garganta de quando em quando. Mesmo que o sol do outono nesta praia tenha perdido a força de semanas atrás. Não haverá/não há movimento algum nesta sexta-feira junto ao mar. Nada que possa desviar sua atenção e até o vento que costuma bater do oceano dará/deu um tempo para você manter as folhas em ordem, sem sobressaltos e correrias. Será/é apenas uma brisa, suficiente para levar para longe o alarido dos meninos que, você nem percebe, batem bola à sua esquerda. Nenhum deles será o que eu fui. Nenhum verá ou fará o que eu vi e fiz. Nenhum saberá o que eu sei, filho, e que você, agora, também começará a saber.

(continua)

O Santos é o time do céu. Mas o tinhoso vive ciscando

Em 2004, o antigo Portal do Santista Roxo revelou um personagem de ficção, em textos atribuídos a um certo Argemiro da Veiga, que assinava a coluna “Tesoura Afiada” e se dizia proprietário de uma barbearia no Macuco, bairro popular de Santos, próximo ao porto. Ali, uma freguesia variada discutia futebol, especialmente o Peixe. Nos comentários anotados pelo barbeiro, destacavam-se as observações do portuário aposentado Nicácio Silva Pinto. Mas o velho morreu no mesmo dia em que Diego partiu para Portugal, e a coluna parou. Ano e meio depois, em janeiro de 2006, Argemiro relatou uma conversa que teve em sonho com o amigo falecido. O texto faz referência à dispensa do ídolo Giovanni.

A Santos de Santa Terezinha e o Santos do ataque dos deuses

“Tem o Santos que é coisa daqui de cima, Argemiro, feito à imagem e semelhança do Criador. Ou você acha que Robinho surgiu assim, por conta da sabedoria dessa gente aí? Que foi o turco – e você sabe que eu respeito muito o Athié – quem guiou os passos do menino Pelé até a Vila? Claro que não, amigo. Só que também tem o Santos do general Osman, o vice-presidente que “vendeu” Coutinho, Carlos Alberto e meio time do Peixe para um jornalista da Placar, pensando que tratava com um empresário do Marrocos e que o negócio era das Arábias. Caiu num conto de 1º de abril. Esse Santos é coisa do demo.”

Parecia um sonho ver o Nicácio com o jornal dobrado em cima dos joelhos, sentado na cadeira junto à porta do salão, iluminado pelo fiozinho de sol que atravessava a cortina. A conversa sempre começava daquele jeito, como continuação das notícias que ele tinha acabado de ler na Tribuna, mas indo da frente pra trás. Da conclusão para os fatos, da moral para a história, do resumo para a ópera. Eu, que conhecia bem o finado, digo, o velho, conferia com o rabo do olho os assuntos do jornal que chamavam a atenção dele, para depois não boiar. Tava na cara que, naquela manhã, ele ia falar do Giovanni.

Antes de continuar, porém, é importante explicar que foi sonho mesmo, porque eu ainda não dei de ver fantasmas e todo mundo sabe que o Nicácio morreu, coisa de ano e meio, quando o Diego, desamarrou o barco dele do nosso cais e foi pro outro porto, o de Portugal. Além do mais, nunca incorporei espírito e nem acredito nisso, que me desculpe Matilde, a mulata do 47, que diz encarnar um índio velho num terreiro do Golfo. Toda sexta-feira.

De forma que o Nicácio continuou falando, dentro da minha cabeça, enquanto eu dormia, de segunda pra terça. Me entreteve tanto, eu que me agito demais nessas noites quentes de janeiro, que foi uma estirada só, do fim do Big Brother até as seis da manhã. “Acorda, Argemiro. Abre o olho que aí tem coisa … Sol forte na capital da Baixada … Sou Peixe, mas não sou trouxa … ” Ouvi, ou pensei ouvir, antes de pular da cama, sem saber se quem falava era o Nicácio do sonho ou o locutor do rádio despertador.

“O Santos daqui de cima é um time abençoado, que recebe a ajuda divina para resolver as encrencas do pessoal aí de baixo. Mas não é caridade, Miro. Esta turma gosta mesmo do Peixe. Você precisava estar aqui comigo (“eu, heim!”) para ver como a galera se divertiu naquele domingo em que o Robinho e o Leo fizeram gato e sapato dos infelizes, na Vila. Foi 3 a 0, lembra? O Chefe também estava de bom humor, mas no fim do jogo disse uma coisa que me deixou grilado: ‘Aproveitem enquanto é tempo!’”.

Aí o Nicácio explicou como é que funciona. O Cara é Peixe e ponto! Mas tem de ser justo. Não pode ficar favorecendo sempre o time dEle. De vez em quando, deixa a coisa correr frouxa. São aquelas fases tétricas que a gente passa, achando que o Santos de glórias mil (deve estar enturmado com o Plínio Marcos, o velho ranzinza) acabou. Larga a mão só pra dar um gostinho pros que vivem reclamando nas divinas orelhas.

Como o Vicente “benditos os que sofrem” Matheus. “Dizem, porque eu ainda não tinha vindo para cá, que o corintiano fez um escândalo quando viu Robinho e Diego pela primeira vez com as camisas brancas. Justo contra quem? É, isso, naquele 3 a 1 que abriu o mais recente tabu contra o ‘faz-me rir’. Era só um amistoso, mas o marido de dona Marlene pressentiu o que viria pela frente, já que conhece como ninguém as mumunhas de ser um bom freguês do Peixe.”

“Pô, Pai! Por que é que Você só leva esses garotos pra Vila? Já não bastava o Pelé, aquele insuportável? E, agora, esses dois meninos?” – bronqueou. A resposta até hoje é lembrada pelos boleiros daqui: “Do que reclamas, Matheus? Não vês os tipos que coloco na direção do Nosso clube, digo, do clube deles?”

Mas o Nicácio, que duvida de tudo e não aceita explicação simplória, quis saber que história é essa de que Deus não pode ajudar só o Santos, para não ser injusto com os outros? Deus é Deus, pode tudo. Se ele quer, faz e pronto. Conversa daqui, assunta dali, me disse o Nicácio que conseguiu desvendar o mistério.

“Sabe o que é, Miro? Cabeça não é só o lugar por onde as palavras passam, indo da orelha para a boca. Cabeça é pra pensar. Não é para usar que nem esses repórteres que ouvem qualquer coisa e vão correndo transmitir pro povão, se achando muito informados. É por isso que todo dia dizem barbaridades nos jornais, na rádio, na televisão. Furos … n’água. Ou você também acreditou que o Giovanni foi dispensado porque não está nos planos do Luxemburgo?”

Esse era o ponto, mas o Nicácio não falaria do Giovanni. Naquele momento do sonho, ele ainda explicava porque o Homem, que gosta tanto do Santos, não faz logo o time ter sempre os melhores jogadores e ganhar todos os campeonatos. “Se fosse assim, que graça teria? Você não viu o que aconteceu com o Otávio, que papava todas as meninas? Ficou tão fácil que ele mudou de time. Saiu da linha e foi pro gol. Acabou desfilando na Dona Dorotéia com faixa de Rainha da Estiva e tudo o mais.” Tive de concordar com o falecido, digo, com o velho.

“Tem que ter emoção, Argemiro. É por isso que, de vez em quando, você vê são-paulino e corintiano se achando. Palestrino pensando que é mais. Nunca serão, porque isso Ele não vai permitir. No máximo, deixa os caras terem um pouco de alegria, pra depois o sofrimento ser maior e a nossa felicidade, mais completa. O Próprio, contam os hóspedes antigos daqui, percebeu que iria morrer de tédio, se tivesse de passar a eternidade tomando conta do jardim sem pecado. Foi quando teve a ideia genial de transformar o seu melhor assistente no anjo do mal. Inventou o capeta, para animar o pagode aí embaixo.”

“Levanta, Argemiro. Sol forte na capital da Baixada…” Nesse momento, eu acordei e o sonho acabou. Tomei um banho gelado, bebi o café em dois goles e saí andando pro salão com a cara e as palavras do Nicácio rodando na cabeça. Foi assim o dia inteiro, tentando não esquecer nada e querendo voltar logo pra casa pra colocar tudo no papel, à noite. De tanto pensar, acabei escrevendo coisas que ele não disse. Culpa daquele filme do poeta que ensina pro carteiro o significado da palavra metáfora. O Nicácio também era meio poeta, com a prosa cheia de imagens, dando cor às ideias.

Foi desse jeito que ele falou do Santos do céu, que nunca vai ser destruído pelo Santos das trevas, porque é o Santos do Antoninho Fernandes e do Zito, do Balero e do Jair Rodrigues, do Athié e do Lula, do Guilherme e da Nanda, do Rei Pelé e do Canhão, do Toninho Neves e do Márcio, do Ary Fortes e do Abel Neto, do Salu e do Sabuzinho, da Leila e da Laurinha, do Bom Fonseca e da Bela Dolores, do Mário Covas e do Supla, do Osvaldo Martins e do professor Sílvio, do Bob Marley e do Mano Brown, do Jun e do Rafa, da Bia e da Vilminha, do Agostinho e do Serrano, do Taki Cordás e do Bento, do Mengálvio e do Chulapa, do Chadad e do Zelli, do Emicida e do Chorão, da Mari e da Fernanda, dos Setúbal e dos Bracher, do Zé Lúcio e do Lúcio Cardin, dos Oliva e dos Gomes, do Tonico Duarte e do Mauricy Moura, do Luís Álvaro e do Hase, do Manente e do André, da Jovem e da Sangue. O Santos do Renato Teixeira e da Nossa Senhora Aparecida.

Esse time, que é o paraíso dentro dos nossos corações, nos faz aceitar como pequenas provações tristezas como a dispensa do Giovanni.

Conversa ao pé do Monte Megido*

“Ele prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o diabo, Satanás, e o acorrentou por mil anos. Lançou-o no abismo, fechou-o e pôs um selo sobre ele, para assim impedi-lo de enganar as nações, até que terminassem os mil anos. Depois disso, é necessário que ele seja solto por um pouco de tempo.” Apocalipse 20:1-3

O senhor de meia idade, atarracado e acima do peso, aproximou-se do homem que parecia comandar os trabalhos.
– Tem alguma coisa para eu fazer por aqui?
Calçava sapatos italianos de bico fino, impróprios para aquele chão, e as roupas ostentavam marcas que a crise depreciou e fez desaparecer. O agricultor não deixou de reparar nos modos afetados do homem. No desconforto e no pouco jeito com que se movia por ali.
– O senhor não é o doutor Alfredo, que tem casa nas terras do outro lado do rio? Veio a pé? É uma caminhada e tanto!
Alfredo incomodou-se por ser reconhecido, mas não teve como negar. Disse que havia conseguido manter a propriedade, onde agora morava com a família. Fora levado a isso ao perder todas as posses e atividades rendosas que tinha na capital: a advocacia privada e um bem remunerado cargo público, que lhe valia participação em dois conselhos de administração de empresas estatais.
Os imóveis foram vendidos a preço de banana, as aplicações no mercado financeiro derreteram e pouco restava das reservas em ouro e moeda estrangeira com algum valor. Logo, não haveria de onde tirar o sustento.
– Pode me chamar de Alfredo, sem doutor. Mas me diga senhor… senhor… Desculpe, esqueci seu nome.
– Antônio Ricci, ao seu dispor, mas não faça cerimônia. Pode me chamar de Tonhão, como todos.
O agricultor voltou a avaliar o homem que havia sido importante, admirado e temido na região. Pensou nas voltas que o mundo dá. Conhecia histórias de famílias que perderam tudo na pandemia. Na verdade, todas que tinham o que perder. Sabia das mudanças que abalaram o mundo sobrevivente da doença, mas via pela primeira vez, à sua frente, em carne e osso, um efeito da tragédia global.
– Preciso esclarecer algumas coisas, senhor Alfredo. Pode não parecer, mas não sou dono deste lugar nem chefe de ninguém. Apenas ajudo a organizar os serviços, porque fui capataz de fazenda e tenho experiência. Mas também pego no pesado, para fazer jus à cota semanal de comida, proporcional ao tamanho da minha família. De forma que todos aqui ganham igual.
Tonhão explicou mais. Do jeito dele, disse que ali não há departamento de recursos humanos. As pessoas chegam, escolhem um canto para erguer a casa e, imediatamente, passam a ajudar na produção. Cada um tem mais talento para certas tarefas, é claro. Alguns sabem abrir e preparar um roçado, outros têm mãos boas para semear ou são mais rápidos na colheita, e assim por diante. Quem chegou com porco, vaca e galinha passou a cuidar da produção comunitária de carne, leite e ovos.
– De modo que o senhor pode escolher uma ferramenta ali e se juntar a nós. Não tem burocracia, registro em carteira, nem se exige diploma. Cada um faz o que sabe. O que o amigo sabe fazer?
Alfredo notou a ironia, mas esperava a pergunta.
– Não penso num cargo muito elevado, que corresponda às minhas qualificações. Posso cuidar da contabilidade, produzir relatórios de produção, fazer análises de mercado, indicar rumos. Coisas assim. Posso trabalhar de casa mesmo e vir aqui de vez em quando.
O agricultor ouviu em silencia e em silêncio ficou por um tempo. Isso animou Alfredo a avançar em suas ideias para o negócio. Aliás, ele via até o horizonte daquelas terras grandes oportunidades de negócio, como diziam os amigos. Aproveitou a brecha e foi em frente:
– Minha filha, a Belinha, é formada em propaganda e marketing. É muito criativa. Trabalhou nas maiores agências. Pode ajudar a criar uma marca e fortalecer a imagem da produção. Vai ser um sucesso.
– Quem sou eu para contrariar o senhor, seu Alfredo, um homem tão vivido e tão bem sucedido. Não duvido da importância disso aí que o senhor está falando, mas, por enquanto, o que precisamos é produzir mais. Garantir a alimentação da nossa gente e ter sobras para a central do sistema. Eles vêm buscar nossa comida e deixam tecidos, remédios e outros artigos que não fazemos. É o velho e bom escambo.
Alfredo tremeu, mas pensou que ainda podia escapar daquele destino. Nunca se imaginou pondo a mão na terra, desde quando era levado pelos pais ao balneário do litoral norte e brincava de fazer castelos de areia na praia. Agradeceu, despediu-se com um aperto de mão e a promessa de voltar depois de conversar com família. Distante alguns metros, ainda ouviu:
– Vai com Deus, seu Alfredo! Se entre os desempregados da sua empresa houver interessados, pode mandar para cá. Precisamos de mão-de-obra.
O caminho de casa pareceu mais longo e cansativo. Mais do que os pés, doía a alma. É inadmissível essa mudança de ordem. Como aceitar que a pirâmide secular tenha se invertido tanto em tão poucos meses? E o que pensar da perda total de referências e valores? Quer dizer, então, que agora um capiau de poucos estudos se dá ao desplante de desprezá-lo daquele jeito!
Deve ter sobrado algum lugar para as pessoas de fino trato. Um reduto onde ainda se aprecie um bom vinho, uma tela de Van Gogh, uma sinfonia de Beethoven, um prato elaborado, um texto de Pessoa, uma cidade como Paris. Não é possível que todo o gênio humano, da Grécia antiga ao time do Santos, tenha se perdido de ontem pra hoje.
Não é possível que eu, Alfredo, virei descartável!

* Lugar em que, de acordo com estudiosos da Bíblia, se dará o fim do mundo, o armagedom.

A compra do cassino foi um erro. Mas Nicácio não condena o turco

Esta é uma ficção. Relato de Argemiro da Veiga, oficial de barbearia, salão montado no Macuco, junto ao cais, com base em devaneios do freguês Nicácio. Qualquer semelhança com pessoas e fatos reais é coincidência

Para o velho Nicácio, a compra do hotel-cassino foi um divisor de águas na história do clube. De vez em quando, comentando algum fato atual, o portuário aposentado lembra daquele passo errado e suas conclusões, como sempre, ficam muito além da minha capacidade de entender as coisas.

Não há dúvida de que, na opinião do velho, o negócio foi uma das maiores besteiras já feitas. E ele não vacila em apontar o responsável pelo “tresloucado gesto”: o presidente do clube na época.

O que não entra na minha cabeça é que, com tudo isso, o meu amigo garanta que esse é o melhor presidente que já tivemos. Na verdade, a admiração nunca foi abalada. “É preciso entender os homens, Argemiro. Ele teve um motivo que eu respeito para fazer o que fez.”

Foi nesse dia que o Nicácio me falou da paixão que o antigo presidente teria alimentado por uma primeira-dama do país. Segundo o velho, o turco nunca falou disso com ninguém e nem teve como levar o romance adiante. Seria risco de vida para ele.

“O general-ditador pertencia à linha dura e o nosso presidente era também deputado da oposição. Diante da mínima desconfiança, o turco iria parar no forte do coronel feroz ou no Raul Soares. Lembra do Raul Soares, Miro? De quanto preso sofreu lá, sem saber por quê?”

Eu era garoto naquele tempo, mas às vezes ia até a faixa do cais com um tio da Polícia Marítima e via o navio-prisão fundeado no meio do canal do porto. Sabia o que estava acontecendo em Santos e no país, porque ouvia as conversas dos adultos e passava por muros pichados com nomes de sindicalista, político, estudante: “Fulano é comunista”.

A moda era dedurar. Um nome que ficou gravado na minha cabeça: “Manente é comunista”, li numa parede. Esse Manente era jornalista.


Parque Balneário, hotel-cassino
semelhante ao desta história

O clube não comprou o imóvel para entrar no ramo hoteleiro. Queria era explorar o famoso cassino após a reabertura do jogo. Dizia-se que era questão de tempo, porque a primeira-dama defendia a liberação. Mas a igreja foi contra, a ditadura não quis comprar mais essa briga com os padres, e o Peixe ficou com o mico.

É uma história interessante, que explica o começo da decadência do clube. Mas minha imaginação não vê nela a comprovação de um amor.

“Pense junto comigo, Miro. O cara deu certo em tudo. Jogador de futebol, foi um grande goleiro. Cartola, o time não teve outro igual. Político, ganhou todas as eleições que disputou. Moço, era um rapaz bonito. Homem feito, não houve alguém mais distinto. Fino, elegante, rico e sedutor. As mulheres não resistiam. Teve uma cantora famosa que, dizem, tentou o suicídio por causa dele. Mas fracassou no amor. Sabe por que? Porque seu grande amor, único de uma vida, o verdadeiro – esse amor foi impossível.”

Foi uma de nossas conversas mais longas. E, se querem saber, foi também a mais emocionante. Fiquei feliz de ver o amigo, enternecido, falando bem de alguém, ele que em geral só falava mal.

“O turco costumava dizer que no seu coração só cabia o clube. Mas eu sei que houve outra grande paixão. Ele teria dado metade do passe do Rei para conduzi-la pelo menos uma noite ao imenso salão dourado. Junto dela, suspenderia a respiração enquanto os dados rolassem no pano verde. Apertaria levemente os amados ombros na virada das cartas e ousaria até mais, durante o giro da roleta. Provocador, fixaria o olhar despudorado no generoso decote. Que homem poderá condená-lo por isso, Miro?”

Quando o velho pisava a calçada, o fim da conversa não era para ser ouvido. “Eu sei como são essas coisas, amigo. Também estive a ponto de fazer loucura por uma mulher!”