Para ler de novo: Na guerra insana, vale qualquer aliado

Este texto foi publicado no blog no dia 3 de abril, após o início das medidas de confinamento determinadas em função da covid-19. Repito agora, com pequenos ajustes, porque continua valendo.

Tempos malucos, estes. Em meio à mais profunda incerteza sobre o que será de nós ou, no mínimo, sobre como ficará o mundo pós pandemia, os insensatos continuam em guerra, para manter nacos de poder ou ganhar importância. Acham-se imunes? Ou preparam a inscrição para as próprias lápides: “Foi em vão, mas lutei até o fim para me dar bem!”.

Deve acontecer no mundo todo, porque Deus não há de ter reservado tanta cretinice como atributo único e exclusivo de nossos governantes, políticos e formadores de opinião. De governantes e políticos, na verdade, desde muito tempo, e ainda mais hoje, além dos 70, nunca esperei mais e melhor. É o padrão deles. Nem dá para reclamar, porque fomos nós que colocamos os calhordas onde estão. Insistimos em dar razão ao Rei. Falo de Pelé.

O que me incomoda e envergonha é a atitude da grande mídia. Um querido amigo, o qual não viveu para ver esse pan…demônio, diferenciava mídia e imprensa. Para Osvaldo Martins, mídia é um negócio e imprensa, uma atividade voltada à informação, bem dos cidadãos, o que insere o jornalismo entre os direitos e liberdades fundamentais. É bom que grandes grupos de comunicação sejam ao mesmo tempo mídia e imprensa, porque fazer jornalismo correto é caro e exige competência empresarial. Basta saber separar as coisas. Mas, com exceções, o que temos hoje é só mídia.

Outro dia lembrei da minha introdução na profissão. Foca, fui encarregado de encontrar mazelas na cidade, para bater no interventor militar. Até que o general de plantão fez acordo com o jornal e tirou o bode da sala. Também exemplares desse comportamento “desinteressado” da nossa mídia são um histórico jornal carioca, já extinto, e aquela que foi durante décadas nossa maior revista semanal de informação.

Os saltos triplos carpados que essas publicações davam na relação com os governos eram nada menos que espetaculares, medalhas de ouro. Aos leitores só cabia ficar de boca aberta e, de vez em quando, soltar um expressivo “uau!”. Consta que tais malabarismo cessavam quando jornal e revista, em épocas distintas, voltavam a ocupar lugar top na publicidade federal.

Raras vezes presenciei conflitos da mídia com a autoridade maior do país motivados por questões republicanas. Lembro como exceções a postura do Estadão, com seu irmão caçula Jornal da Tarde, durante o regime militar. Veja foi outra que enfrentou a ditadura com altivez, além da imprensa digamos nanica e a alternativa. Houve certamente outras resistências importantes, que cometo a descortesia de não mencionar, por lapso de memória.

Mas a maioria aderiu, entre eles um jornal hoje tão ativo no confronto com o governo legitimamente eleito. Na época brava, nem opinião tinha. Considerava mais prudente não dar palpite e expor o que pensava. Há quem diga que o grupo chegou a colaborar com o regime militar. Eu não chego a tanto, mas também não confio na sua postura atual.

É no jornalismo da Rede Globo, no entanto, que o pior desse mundo se encontra e ecoa. Há tempos, sabe-se que a empresa não vai bem das pernas. São de domínio público os enxugamentos na programação e no quadro de pessoal, incluindo o estrelado elenco das novelas. Com a situação deixada pelo governo Dilma, escassearam os recursos federais, antes tão generosos, e reduziu-se o investimento privado em mídia.

Com a entrada em cena de Bolsonaro, começou o jogo do bate e assopra, mas os resultados não foram os esperados. O outro lado manteve-se inflexível. Daí o endurecimento da oposição ao governo, nos telejornais do grupo e nas suas publicações impressas. Na TV, a pancadaria é inacreditável. Fora de propósito, em tom bem acima das latas que infla, desproporcional e indecente.

O comportamento é tão indecoroso que notícias boas, ou pelo menos neutras, são atribuídas a um governo impessoal. Já as más notícias, verdadeiras ou forçadas, têm nome e sobrenome: os do presidente desafeto. Alguém pode dizer “bem feito pra ele!”, não sem razão. Mas e desse tipo de “jornalismo” o que se pode falar? Eu digo que não engrandece a profissão que tanta gente dignificou. Muito ao contrário.

Nos tempos da Praça Marechal Deodoro, gloriosos anos 1980, ativistas sociais ligavam para a redação e pediam cobertura para manifestações que estavam sendo organizadas. Quando o produtor pedia detalhes como data, horário e local, as pessoas respondiam: onde e quando for melhor pra vocês. “A Globo vai cobrir, ?” Pois é! Hoje, a técnica foi aprimorada por instituições e gente de alto bombordo. Até o mais tosco assessor de imprensa sabe que, para entrar na Globo, o cliente precisa ter o discurso da emissora. Daí vermos toda noite, no JN, os mesmos “especialistas” dizendo ao governo “o que fazer”.

Dependendo do grau de afinidade, o interessado pode até virar “comentarista” fixo na grade “jornalística” da Zorra Total. É o caso do presidente da Câmara, conhecido por “Botafogo” na planilha de propinas da Odebrecht. Aqui, porém, trata-se mais propriamente de aliança dos amigos do Bozó com a escumalha da política nacional.

Assim como os governos do PT associaram-se a Sarney, Renan, Collor, Temer, Barbalho, Delfin, Maluf, ao mais profundo baixo clero e tantas flores do bem para viabilizar seu projeto de poder e controle do Tesouro, a TV BBB descaradamente une-se aos atuais simulacros dos tipos citados.

Troca visibilidade em rede nacional por apoio ao plano lelétantam de derrubar o presidente democraticamente escolhido. Depauperada pela queda de receita da publicidade pública (principalmente) e privada, mas momentaneamente revigorada pela audiência literalmente cativa do isolamento, os lunáticos tocam indiferentes sua guerra brancaleone.

Se Darth Vader baixasse hoje, não haveria aliado melhor. Na falta do vilão de George Lucas, pode servir o covid-19.

Repeteco de memórias santistas

Perdoando-os desde logo pela pouca idade, é claro que muitos conterrâneos não terão topado com o seresteiro Mauricy Moura cantando sucessos da época em um boteco qualquer da noite santista. “Eu daria tudo o que pudesse…” Nem prestigiaram o restaurante que o ídolo Tite, nosso ponta-esquerda dos anos 1950, predecessor de Pepe, o canhão da Vila, montou no caminho da Ponte Pênsil, onde era atração com seu violão.

Ambos, o calunga Mauricy e o craque Tite, tinham no repertório as canções de Lupicínio e do santista Lúcio Cardim, o autor de Matriz e Filial, magnífica interpretação de Jamelão. Esses de quem falo nem imaginam o que isso seja. Seja lá o que desconheçam: Cardim, Matriz e Filial, Jamelão…

Se não conhecem tais mitos, é claro que nunca foram a uma batalha de confete para ver desfilar as Dengosas do Marapé, os Romanos do Campo Grande, os Chineses do Mercado, a Embaixada de Santa Teresa, o Cordão das Esmeraldas e o Bloco da Cruz de Malta. Porque essa monumental folia é do tempo em que blocos na rua eram a melhor coisa do carnaval.

A proeminência das escolas de samba – com as magníficas X-9, Império e Brasil – viria mais tarde. Como mais tarde ainda veio a União Imperial do sambista Lúcio Nunes. Lúcio também não pôde ver a Bola Alvinegra desfilar com o Rei, não faz tanto tempo assim. Lamento que tantos não receberam o convite dirigido à Dona Dorotéa, mas extensivo a todos: vamos furar aquela onda?

                O rei Momo Valdemar Esteves da Cunha e o bonde com reboque

Coisa mais fácil de encontrar na noite da Baixada, qualquer dia da semana, qualquer época do ano, eram os grupos de choro. Os chorões. Tarde da noite, você no ponto, de volta da escola ou da casa da namorada, esperando o ônibus, e lá vinham eles, precedidos pelo som inconfundível que lançavam no ar. Puro enlevo. Ou você entrava no bonde, e dava de cara com eles.

Até na travessia da balsa do Guarujá cheguei a encontrá-los. Violão, cavaquinho, pandeiro, quatro ou cinco músicos que nada falavam, não conversavam entre si, nem cantavam. Só tocavam. Como tocavam! Uns após outros, os grandes clássicos da nossa música saltavam das cordas. De onde vinham ou para onde iam, não faço a menor ideia. Daí que acho que eram criaturas fantásticas cruzando o meu caminho só para me encantar!

Quando troco umas palavras com meu quase contemporâneo Braz Cubas, chegamos à conclusão de que a cidade fundada por ele é um lugar mágico. Algo como o país das maravilhas de Alice. Onde mais poderiam surgir gentes, fenômenos e costumes tão arrebatadores? E, de quebra, um time como o Peixe de reis e príncipes. De malabaristas como Kaneko, Edu, Mané Maria. De poetas da bola como Pagão e Dom Antônio Fernandes! A máquina de fazer gols, versos e canções, quase orações.

Alguns têm a minha idade. Nossas memórias são quase as mesmas. Mas poucos nadaram nos canais que se abriram para a instalação dos tubulões do esgoto nas ruas de terra do Marapé. Não subiram o morro, cataram coquinho brejaúva ou colheram bico de papagaio para vender na feira. Não invadiram quintais para roubar carambolas, pitangas e abricós.

Não mancharam indelevelmente puídas camisas com o roxo do jambolão. Nunca arriscaram a vida, aos oito, dez anos, saltando do bonde em movimento, depois de passar de um estribo a outro, na fuga do cobrador. Nem mudaram a direção dos trilhos, só para ver a fúria do motorneiro e a algazarra dos passageiros, quando o coletivo seguia reto ao invés de virar, ou virava quando devia seguir em frente.

Teriam, como eu e meus irmãos, saboreado os tremoços da patrícia gorda que fazia ponto, todo jogo, sob as sociais de Ulrico Mursa? Teriam ajudado a cobrir de cuspe o infeliz goleiro adversário nas pugnas contra a briosa burrinha? Teriam usado de todos os artifícios para invadir a Vila? Ah, a Vila! Inesquecíveis recitais do Peixe!

Nas tardes de domingo, as famílias já assistiam ao programa Sílvio Santos na tevê. Eu, quando não tinha Peixe na Vila, e avançando no tempo, pegava minha fusqueta azul, a inesquecível Agripina, e fugia para São Lourenço, antes de Boracéia e da divisa com São Sebastião. Na época, Bertioga pertencia a Santos e a praia não tinha sido modificada pelos condomínios.

Levávamos uma caixa de isopor cheia de gelo e latinhas. Estacionávamos na areia, estendíamos a toalha, armávamos as cadeiras de alumínio e o guarda-sol e passávamos o dia ocupados apenas em, vez por outra, ir até o mar e dar um mergulho. Nenhum dinheiro, mas fazíamos daquela praia deserta um lugar mais sofisticado do que qualquer ponto da costa mediterrânea.

Minha namorada era linda, os domingos eram de sol, e eu era o dono do mundo.

Cuidado, pau que bate em Chico bate em Francisco!

Ao sair atirando, Moro disse que tinha provas. Não tinha. Nem ele nem as testemunhas que arrolou. Decepcionou a oposição e a grande mídia, que esperavam pela bala de prata, e viram apenas um traque falhar. Aí, o ex-ministro apelou para a gravação da reunião ministerial de 22 de abril. Seria a confirmação cabal de que o presidente queria interferir na PF, argumento que convenceu o juiz Celso de Mello – tão solícito quanto seus companheiros de corte na atenção a tudo que possa encurralar o governo federal – a aceitar o vídeo como prova das acusações.

Os advogados de Moro sabiam que as revelações em nada afetam Bolsonaro do ponto de vista criminal e da acusação original, o que coloca em má situação o próprio denunciante, também investigado no inquérito aberto pela PGR. Como querer algo não é crime e nomear diretores e superintendentes de órgãos federais está no rol das atribuições presidenciais – tudo o que, com grande esforço interpretativo e muita imaginação, supostamente o vídeo contém –, Globo e companhia ganharam assim uma nova denúncia vazia.

Moro pediu, então, a divulgação de todo o teor da reunião ministerial, mesmo das partes que nada dizem respeito à questão original. Sabia da possibilidade de causar constrangimentos a Bolsonaro e ao seu governo. Sabia, acima de tudo, que o absurdo de se expor um encontro fechado de governo receberia o apoio da grande mídia – interessada, entre outras invasões de privacidade, no resultado dos exames médicos do presidente – e contava ter o STF como aliado.

Não se enganou. O decano viu a gravação e, ao perceber que nela nada há que afete gravemente Bolsonaro, lançou mão de uma antiga petição de partidos de oposição. Antes mesmo de liberar o conteúdo do vídeo para a TV Globo, determinou que seja bisbilhotado o celular do presidente. Era a máxima corte do país declarando guerra, definitivamente, ao poder executivo, pela caneta do honorável ministro, empunhada simbolicamente por todo o colegiado.

Se conseguir cometer a pretendida violação criminosa e nada achar contra o presidente, a que outro tipo de ilegalidade o STF irá recorrer depois? Quem não se escandaliza com tudo isso e até comemora as arbitrariedades do poder encarregado da defesa da Constituição deve avaliar melhor tal postura. A máxima do pau que bate em Chico também bate em Francisco está aí para ser aplicada. Depois, não adiantarão choro e ranger de dentes.

Principalmente se o choro verter e os dentes rangerem no cumprimento da ameaça de um militar do governo: as consequências podem ser imprevisíveis.

O JN acha que somos Simpsons

Homer Simpson, a audiência do JN

Uma jornalista que admiro diz no facebook que tem evitado falar de política, por não ser “comentarista de circo”. A julgar pelo que se vê, do lado do governo e da oposição, ela está coberta de razão. Sortilégios. Ilusionismo e prestidigitação de lá e de cá. Eu, da minha parte, pretendo continuar escrevendo sobre o assunto, mas pelo viés da “cobertura” da chamada grande mídia, aquela que um grande jornalista considerava apenas negócio. Eu concordo e acrescento: não temos mais jornalismo nem imprensa. Temos o grande circo da mídia.

Também citando terceiros, alguém disse que o papel de oposição no Brasil foi assumido pelas grandes empresas de comunicação. Perfeito! Até o PT e as siglas de esquerda perceberam a inviabilidade de tentar derrubar o governo pelas vias legais. Por isso, colocaram mordaça em seus porta-vozes institucionais, embora Lula e os postes sejam quase sempre incontroláveis. Falando em nome próprio, e interessadíssimos no espaço aberto pelos jornais e meios eletrônicos a quem se dispõe a atacar o presidente, sobram parlamentares, governadores, ex-ministros, especialistas, pesquisadores e ruelas esperneando.

É que pode haver eleição este ano, vai haver eleição em 2022, e nada melhor do que aproveitar a mídia para fixar imagem e nome junto ao eleitor. Essa gente faz lembrar a dúvida do editorialista da imprensa antiga ao receber o tema do dia seguinte: é para escrever a favor ou contra? Hoje, a pergunta é desnecessária: se o assunto for o governo, o redator já sabe que posição assumir. Os políticos de oposição fazem igual, sabendo que falar mal do governo é senha para ganhar tempo na TV BBB, por exemplo.

Motivos para crítica ao governo não faltam, e nem há o risco de ter de enfrentar contradita. O que é confortável demais para a pobreza da argumentação que costumam exibir. É só colocar a culpa no atual governo por pequenos e grandes males. Queimadas, secas, enchentes, miséria, educação deficiente, saúde precária, desemprego, salário baixo, dólar alto, e toda a desgraceira que o messias teria conseguido produzir em poucos meses, sem qualquer contribuição de quem governou o país nos 16 anos anteriores. Como essa mitologia não convenceu a maior parte dos brasileiros, a situação já era de pânico nas redações, quando afinal a natureza, como diz Lula, fez o favor para a humanidade de criar o novo corona vírus.

Com a pandemia, ampliou-se o repertório. Se o governo socorre quem mais está perdendo com a doença e com a paralisação dos negócios, a ajuda é insuficiente ou demora a chegar. Se o número de contaminados e mortos segue crescendo, a culpa é do presidente, que deseja outra política de isolamento, sem o bloqueio total da atividade econômica, mas foi desautorizado pelo STF. Para os meritíssimos, cabe aos governadores e prefeitos (sem que se saiba quem detém a palavra final) decidir sobre as medidas a tomar para “proteger” o povo.

Falta comando e coordenação na luta contra a covid-19, acusam os presidentes da câmara e do senado, apoiados pelo presidente da alta corte da justiça e pela direção do noticiário global, que vê na conversa mole outro ataque supostamente eficaz ao presidente da República. Esse discurso, tão incoerente por vir justamente dos que tiraram comando e coordenação da esfera do Palácio do Planalto, condena de fato os escassos resultados que estados e municípios estão obtendo para conter a progressão da doença.

Na mídia eletrônica, o JN é o que mais se empenha em dramatizar a situação por si só dramática, com cenas de mortos, caixões e covas mortuárias e a insistência com os tristes relatos de pessoas que não conseguem internar ou já perderam seus parentes mais queridos. Faz o que antigamente se chamava jornalismo marrom ou mundo cão, achando que com isso pode transferir o poder da pandemia (que nenhum governo nas condições brasileiras conseguiu enfrentar com um mínimo de eficácia) para o presidente em exercício.

Quem vê o apresentador William Bonner, posando todas as noites de professor ou doutor na bancada do telejornal, não haverá de se surpreender, se conhecer o apreço que o jornalista tem pelos seus telespectadores. Anos atrás, ao receber um grupo de docentes, Bonner explicou o nível da linguagem e do conteúdo do noticiário. Segundo o jornalista, a audiência é formada por pessoas como o mais idiota dos Simpsons, e é para ela que a TV fala.

Não precisa ser mais claro!

“Isenção” desde a pauta

Reunião de pauta na redação. Qualquer redação. O chefe de reportagem, um chefe qualquer, levanta o assunto. Vocês viram o que fizeram na desocupação daquele prédio abandonado no centro da cidade? Um absurdo! Puseram a polícia lá, armada até os dentes, para retirar famílias pacíficas e inocentes. Violência sem sentido!

Alguém recente na casa, tenta defender a operação: Diz que a polícia foi cumprir mandato judicial e os invasores reagiram com uma tempestade de paus, pedras e objetos diversos, até um vaso sanitário. Conversa mole, meu caro, corta um editor. É limpeza de área para a especulação imobiliária.

O pauteiro põe ordem na conversa. Vamos mandar equipe completa. Produtor de campo, repórter e cinegrafista, para mostrar o lugar depois da operação policial. Em seguida, percorremos as ruas por onde o pessoal se dispersou.

Vamos providenciar para que estejam lá nossas fontes de confiança: o padre que lida com população de rua, o pessoal que defende “soluções alternativas”, os técnicos do governo anterior (“que fazia um trabalho admirável, dando moradia e salário para os sem teto!”), um especialista da universidade federal com “visão científica e progressista” do problema, o combativo deputado da oposição, alguém do ministério público e de um ou dois movimentos sociais.

Também estamos tentando encontrar a representante daquela organização internacional que atrai financiamento europeu para nossas ongs. Ela certamente terá muito o que falar sobre a mudança na política pública para a habitação.

A intervenção é aplaudida. Para jornalistas investigativos e imparciais, as medidas adotadas pelo governo anterior, dependendo do tipo de governo anterior, são sempre melhores do que as do governo atual, dependendo do tipo de governo atual. São melhores sempre, ainda que os problemas persistam e até se agravem. O que vale é a boa intenção.

É melhor recorrer às fontes de sempre, carimba o chefe de reportagem, porque elas têm pontos de vista originais e respeitáveis. Partem do princípio de que a autoridade pública, dependendo do tipo de autoridade pública, é claro, está sempre errada. Sabem o que é melhor para as pessoas e valorizam nossos telejornais. Falam bem e dão boas entrevistas.

Com todos esses cuidados, a cobertura sairá redonda e a matéria esclarecerá a opinião pública. Sem ruídos perturbadores, como a explicação dos responsáveis pela ação, a opinião dos moradores e comerciantes da região (gente intolerante!), o sentimento dos cidadãos que tiveram seus imóveis e negócios desvalorizados pelos invasores (problema deles!). Bobagens que, francamente, não interessam!

Nem se passará perto da discussão sobre a possível existência de uma indústria da ocupação, ou a respeito da exploração daqueles miseráveis, os invasores, pelos profissionais do setor. Afinal, querem moleza? Querem de graça a luz, a água e a net gatunamente fornecidas? Denúncias infundadas, sabemos, contra pessoas que trabalham pelo bem comum. Papo furado para justificar a desumanidade da ação e encobrir a truculência da polícia.

Pronto! Os telejornais da casa apresentarão matérias edificantes. O telespectador comum ficará um pouco confuso, é certo, sem saber exatamente de que lado estamos. Haverá quem desconfie que defendemos as invasões e o vandalismo, em oposição ao cumprimento da lei. Mas, por outro lado, o lado que interessa, ficaremos bem com a inteligência avançada e o pensamento bonzinho.

O que confunde mais?

Prezo demais a família Covas, mas o prefeito Bruno parece tão perdido quanto todas as autoridades envolvidas nesta desgraceira, aqui e fora. Depois de suspender o antigo rodízio, de estabelecer bloqueios locais e voltar atrás, ele criou uma restrição mais rigorosa (de 24 horas, dia sim, dia não, placas pares e ímpares, fins de semana incluídos) para a frota de veículos no município.

O objetivo, em todos os casos, era elevar o nível de recolhimento da população, que já superou 60% em abril, mas hoje fica permanentemente abaixo de 50%. As experiências deram errado. Não atingiram seus propósitos e mostraram cabalmente que nada têm de científico.

Foram apenas boas tentativas, que pareciam fazer algum sentido. Mas não fizeram. Tanto que a última delas foi suspensa neste domingo, por decisão do prefeito, voltando o rodízio tradicional a partir da segunda-feira. A doença cresce na cidade e no país, sem que a famosa curva se achate e deixe de colocar o sistema de saúde em risco de colapso. O que confunde mais a população?

A ciência é invocada para calar quem não concorda com as medidas defendidas por grande parte dos governadores brasileiros, no que diz respeito à recomendação para que a população fique em casa e obedeça ao distanciamento social. Igualmente, para convencer as pessoas a não insistirem em trabalhar, sair em busca de renda e, na volta, levar comida para casa.

Na edição deste sábado, o Jornal Nacional, que usa a pandemia em sua feroz oposição ao governo federal, dedicou boa parte do tempo para demonstrar “cientificamente” supostos bons resultados de tais medidas. Desde que o presidente Bolsonaro refutou o confinamento vertical, por entender que ele leva à paralisação da economia e ao empobrecimento da população, a emissora levantou a bandeira contrária.

Os “cientistas” da Globo também não recomendam o uso da cloroquina no combate à covid-19. Têm bons argumentos, mas está claro que o posicionamento também decorre de o presidente defender que ela pode ser um recurso contra o mal, segundo outros médicos e pesquisadores.

A TV veta, mesmo que o Conselho Nacional de Medicina tenha deixado a decisão a critério dos especialistas, com autorização do paciente. E ainda que o comandante paulista da principal frente de enfrentamento ao novo corona vírus, o Dr. David Uip, tenha escapado da doença com o uso da substância.

O fato é que a ciência, nem aqui nem no mundo, deu qualquer resposta concreta ao enorme problema que estamos enfrentando. Como escrevi outro dia, por enquanto existem só discussões e dúvidas. Certezas, infelizmente, só as mortes de todo dia, mesmo nos lugares onde o confinamento foi adotado.

Premonição pandêmica

Esta história não se conecta à vida real nem se baseia em fatos concretos. Se aconteceu, quem ainda lembra? Profecia retroativa, antevisão do passado?

Era uma vez, no tempo impreciso de uma terra distante, ou no tempo distante de uma terra imprecisa, um jovem advogado aprovado em concurso para juiz.

(“É golpe!” – range a fauna corrupta. “É golpe!” – rosna a patuleia dos pântanos.)

Sérgio, vamos chamar assim o nosso personagem, vive longe das maravilhas do centro do poder. Seu tribunal não usufrui das regalias reservadas aos colegas das cortes centrais. Mas Moro, digo, Sérgio, é determinado.

(“É golpe!” – assanha-se a turba informe nas profundezas do pré-sal. “É golpe!” – desespera-se a proteína animal no abatedouro.)

Véspera da nomeação. Moro, digo Sérgio, não dorme. Um enredo inconcebível insinua-se e bloqueia seu sono. Na fantasia, a grande aventura apenas começa. De forma imprecisa, intui a missão redentora cravada em seu destino. Seria ele o encarregado de enfrentar as forças do mal que infelicitam o reino e seu povo? Seria ele nada menos que o salvador?

(“É golpe!” – queixam-se as parasitas nas árvores exauridas. “É golpe!” – repetem em pânico as manadas cabisbaixas.)

Nisso, um sonho põe fim à vigília e atropela a história. A voz tonitruante (como em todo sonho, uma voz tonitruante conduz a narrativa) ordena ao juiz:

– Moro, Moro! Digo, Sérgio, Sérgio! Agarra a Operação que te espera e faz dela a razão de teu trabalho e de tua existência. Investigue a bandalheira, lave esta terra, ataque a jato os vendilhões do reino. Use a força da tua tarefa!

(“É golpe!” – grasnam as aves negras. “É golpe!” – escapam pelos esgotos as ratazanas graúdas.)

– Imploda a indústria da corrupção, derrube os usurpadores do poder do povo, coloque na cadeia o chefe da quadrilha – prossegue o vozeirão.

– Siga nessa trilha. Abra caminho para o Messias que virá e serás recompensado. O Príncipe te fará Ministro. Tenha a certeza!

(“É golpe!”, já mal se ouvem os ganidos em polvorosa. “É golpe!”, distancia-se o mimimi das gralhas na debandada.)

A voz também emudece. O sol clareia a manhã em Curitiba. Moro, digo Sérgio, já não sabe mais o que é sonho e o que é realidade. Curitiba… Nome estranho…

Silêncio. Tenta pensar num discurso de posse. Ficar na praxe de esperar a colaboração de todos? Falar do trabalhão que terá pela frente? Antecipar o futuro brilhante que a todos aguarda?

(“É golpe! Não disse?” – praguejam de volta os abatidos. “É golpe! Não disse? – renascem os derrotados, em busca do sol.)

Um título mundial com a paradinha que o Rei imitou

Dalmo, o terceiro em pé, a partir da esquerda: no time de 1962

 O chute com o pé direito saiu rasteiro, baixo, seco. Nem forte nem fraco. O suficiente para tornar inútil o salto do goleiro milanês. Balzarini não se iludiu com a paradinha e foi para o lado certo, mas não conseguiu evitar o gol.

Seis anos depois, quase no mesmo dia, no mesmo estádio, na mesma meta. O mesmo time de branco, outro adversário, outros protagonistas. A cena é quase um replay, com diferenças em detalhes. Desfecho igual, bola na rede, mas o goleiro quase impediu o sucesso do batedor.

Dizem que Dalmo Gaspar ensinou Pelé a usar a paradinha na cobrança de penalidades máximas. Se é verdade, não foi mera coincidência a semelhança entre os dois gols históricos, no Maracanã.

O segundo desses gols, na noite de 19 de novembro de 1969, contra o Vasco da Gama, foi o milésimo do Rei. O primeiro foi o momento mágico vivido por Dalmo, em 16 de novembro de 1963, e deu o bicampeonato mundial ao Santos.

O lateral esquerdo era um dos nomes menos ilustres de um time que, no terceiro jogo da decisão contra o Milan, desfalcado de Calvet, Zito e Pelé, tinha Gilmar, Ismael, Mauro, Haroldo, Dalmo, Lima, Mengálvio, Dorval, Coutinho, Almir e Pepe. Mas o gol solitário e decisivo foi dele.

Considerado um dos jogadores mais regulares, foi titular nos melhores times santistas da época. Mas, diferente dos companheiros, quase não foi lembrado para as seleções nacionais. Mesmo assim, acumulou uma invejável coleção de títulos, entre 1957 e 1964, período em que permaneceu na Vila.

Além das duas Libertadores da América e dos dois Mundiais Interclubes (1962-1963), foi cinco vezes campeão paulista e quatro vezes campeão brasileiro. Conquistou nove torneios internacionais, entre a Europa e as Américas.

Dalmo nasceu (19 de outubro de 1932) e morreu (2 de fevereiro de 2015) em Jundiaí. Nunca esqueceu o Santos, como mostrou em versos.

Pensar em ti é o que eu faço de bom na vida!

E sentir saudades é o que me resta de bom!

Quem não gostava do seu futebol criativo e brasileiro!

Das belezas das suas jogadas e dos gols tão ligeiros!

A saudade dói em meu peito,

Se para outros não dói, não sei!

Só sei que não verei mais as vitórias que guardei!

Santos FC. Sem você jamais seria o que fui!

Em Orwell, 1984 era futuro. Na nossa TV, é recuo

Para acompanhar o noticiário do dia, prefiro a CNN à Globo News. Acho a TV do pastor mais ágil e informada. À noite, arremato com o JN, o Jornal do Necrotério, comandado por Dr. William Bonner e sua assistente Mortícia, com as intermináveis cenas de caixões e covas fúnebres, depoimentos de pessoas com dificuldades para internar parentes ou que já os perderam para a pandemia e críticas às ações do governo federal, no combate ao corona vírus. Só não faço isso todo dia porque meu nível de depressão não chegou a tanto.

Assim, antes de me entreter com algum filme, termino o dia com sensações estranhas. A primeira é a de que, até março, ninguém morria neste país. De lá pra cá, outra impressão, os brasileiros só morrem infectados por covid-19. Também fico com a certeza de que foi a partir deste ano que nossos hospitais (principalmente os federais) e todo o sistema de saúde deixaram de funcionar e cuidar bem dos pacientes. É inacreditável ver como, a crer no principal noticioso da TV BBB e sem qualquer motivo, um atendimento de primeiro mundo virou digno dos países mais atrasados.

Outro dia, para supostamente se contrapor às autoridades federais, que teriam desdenhado da triste mortandade, o JN (Jornal do Necrotério) achou que daria um tapa com luva mortuária na cara do presidente se passasse a nominar todas as noites os mortos brasileiros da pandemia. Não demorou a perceber a insanidade da coisa. Mesmo esticando ainda mais o “noticiário”, já inflado por absoluta falta de anunciantes e de novas produções para preencher a grade, não haveria espaço para tanto necrológio.

Foi quando surgiu ideia melhor. A partir de ontem, conforme anunciado com a toda a solenidade pelo apresentador, o cenário de fundo do telejornal passou a exibir fotos de vítimas da doença. Trata-se, segundo afirmou, de uma homenagem aos mortos. Uma espécie de túmulo do soldado desconhecido, já que só familiares e amigos mais atentos talvez reconheçam os homenageados. De toda forma, vale a intenção.

O noticioso da Globeleza também nos dá a impressão de que até recentemente vivíamos felizes num país rico e justo, capaz de nos oferecer emprego e prosperidade, igualdade plena e totais condições de crescimento pessoal. Nenhuma fome, nenhum miserável. Mas tudo isso acabou, pela força exclusiva de um governo que, tendo encontrado todas essas condições, fez a nação desandar. Os anteriores 16 anos de corrupção sumiram por desencanto, como na sociedade de 1984 (o livro, não o ano, embora também seja a data que George Orwell, morto em 1950, escolheu para situar o futuro totalitário do Big Brother).

Mais intrigante é que, depois de ver ao longo do dia os mesmos fatos, personagens e locais no noticiário das duas TVs, fiquemos com a impressão de que são coisas absolutamente distintas. Repórteres e comentaristas estariam a tratar de temas diferentes. As descrições e análises não batem. O que nos coloca diante do dilema de ter de decidir em qual acreditar. De ter como verdadeira qual versão, qual narrativa, como se costuma dizer agora.

Como nas situações antagônicas cada qual aposta em fontes de um lado do confronto, talvez o mais prudente seja duvidar das duas. E concluir que o nosso jornalismo morreu, pelo menos na grande mídia. Falta Dr. Bonner informar se de covid-19 ou insuficiência respiratória aguda.

E mostrar o caixão.

Não estou aqui para ilibar ninguém

Vi um vídeo, hoje, em que um senhor português não identificado afirma que não se pode “ilibar” a China pela proliferação da covid-19. O que me encantou foi o uso do verbo. Estamos tão habituados a ouvir/ler chavões e lugares comuns, que muitas vezes nem damos atenção ao sentido das palavras. “Reputação ilibada” passa tão batido que o atestado perde valor.

Mas foi a partir desse “ilibar” que me liguei no que disse o conterrâneo. Segundo ele, antes de a China parar de tentar calar os médicos que alertavam para a gravidade da epidemia e, afinal, determinar o bloqueio, cerca de sete milhões de chineses fugiram da região de Wurhan, em que o vírus surgiu. Teriam ido para vários lugares, e assim o coronavírus “pandemizou” (ops!).

É apenas uma opinião, corroborada por cientistas de outras partes do mundo, mas que não é aceita, por exemplo, pela OMS, que se omitiu gravemente no início da crise. É tema para estudos e estudos, livros e livros, décadas e décadas pela frente, e ainda assim não se chegará a um consenso. O vírus nasceu num mercado popular  de comida na China ou foi criado em laboratório, nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte? Não estou habilitado a responder.

De tudo isso, porém, resta uma certeza. Não foi um brasileiro o criador desse mal, por mais que os oportunistas, resistentes e suspiradores do golpe queiram que tenha sido. Já temos suficientes proezas fantásticas, boas e más. A grande mídia não precisa criar outras lendas. Viu, Estadão?