Reunião de pauta na redação. Qualquer redação. O chefe de reportagem, um chefe qualquer, levanta o assunto. Vocês viram o que fizeram na desocupação daquele prédio abandonado no centro da cidade? Um absurdo! Puseram a polícia lá, armada até os dentes, para retirar famílias pacíficas e inocentes. Violência sem sentido!
Alguém recente na casa, tenta defender a operação: Diz que a polícia foi cumprir mandato judicial e os invasores reagiram com uma tempestade de paus, pedras e objetos diversos, até um vaso sanitário. Conversa mole, meu caro, corta um editor. É limpeza de área para a especulação imobiliária.
O pauteiro põe ordem na conversa. Vamos mandar equipe completa. Produtor de campo, repórter e cinegrafista, para mostrar o lugar depois da operação policial. Em seguida, percorremos as ruas por onde o pessoal se dispersou.
Vamos providenciar para que estejam lá nossas fontes de confiança: o padre que lida com população de rua, o pessoal que defende “soluções alternativas”, os técnicos do governo anterior (“que fazia um trabalho admirável, dando moradia e salário para os sem teto!”), um especialista da universidade federal com “visão científica e progressista” do problema, o combativo deputado da oposição, alguém do ministério público e de um ou dois movimentos sociais.
Também estamos tentando encontrar a representante daquela organização internacional que atrai financiamento europeu para nossas ongs. Ela certamente terá muito o que falar sobre a mudança na política pública para a habitação.
A intervenção é aplaudida. Para jornalistas investigativos e imparciais, as medidas adotadas pelo governo anterior, dependendo do tipo de governo anterior, são sempre melhores do que as do governo atual, dependendo do tipo de governo atual. São melhores sempre, ainda que os problemas persistam e até se agravem. O que vale é a boa intenção.
É melhor recorrer às fontes de sempre, carimba o chefe de reportagem, porque elas têm pontos de vista originais e respeitáveis. Partem do princípio de que a autoridade pública, dependendo do tipo de autoridade pública, é claro, está sempre errada. Sabem o que é melhor para as pessoas e valorizam nossos telejornais. Falam bem e dão boas entrevistas.
Com todos esses cuidados, a cobertura sairá redonda e a matéria esclarecerá a opinião pública. Sem ruídos perturbadores, como a explicação dos responsáveis pela ação, a opinião dos moradores e comerciantes da região (gente intolerante!), o sentimento dos cidadãos que tiveram seus imóveis e negócios desvalorizados pelos invasores (problema deles!). Bobagens que, francamente, não interessam!
Nem se passará perto da discussão sobre a possível existência de uma indústria da ocupação, ou a respeito da exploração daqueles miseráveis, os invasores, pelos profissionais do setor. Afinal, querem moleza? Querem de graça a luz, a água e a net gatunamente fornecidas? Denúncias infundadas, sabemos, contra pessoas que trabalham pelo bem comum. Papo furado para justificar a desumanidade da ação e encobrir a truculência da polícia.
Pronto! Os telejornais da casa apresentarão matérias edificantes. O telespectador comum ficará um pouco confuso, é certo, sem saber exatamente de que lado estamos. Haverá quem desconfie que defendemos as invasões e o vandalismo, em oposição ao cumprimento da lei. Mas, por outro lado, o lado que interessa, ficaremos bem com a inteligência avançada e o pensamento bonzinho.