Premonição pandêmica

Esta história não se conecta à vida real nem se baseia em fatos concretos. Se aconteceu, quem ainda lembra? Profecia retroativa, antevisão do passado?

Era uma vez, no tempo impreciso de uma terra distante, ou no tempo distante de uma terra imprecisa, um jovem advogado aprovado em concurso para juiz.

(“É golpe!” – range a fauna corrupta. “É golpe!” – rosna a patuleia dos pântanos.)

Sérgio, vamos chamar assim o nosso personagem, vive longe das maravilhas do centro do poder. Seu tribunal não usufrui das regalias reservadas aos colegas das cortes centrais. Mas Moro, digo, Sérgio, é determinado.

(“É golpe!” – assanha-se a turba informe nas profundezas do pré-sal. “É golpe!” – desespera-se a proteína animal no abatedouro.)

Véspera da nomeação. Moro, digo Sérgio, não dorme. Um enredo inconcebível insinua-se e bloqueia seu sono. Na fantasia, a grande aventura apenas começa. De forma imprecisa, intui a missão redentora cravada em seu destino. Seria ele o encarregado de enfrentar as forças do mal que infelicitam o reino e seu povo? Seria ele nada menos que o salvador?

(“É golpe!” – queixam-se as parasitas nas árvores exauridas. “É golpe!” – repetem em pânico as manadas cabisbaixas.)

Nisso, um sonho põe fim à vigília e atropela a história. A voz tonitruante (como em todo sonho, uma voz tonitruante conduz a narrativa) ordena ao juiz:

– Moro, Moro! Digo, Sérgio, Sérgio! Agarra a Operação que te espera e faz dela a razão de teu trabalho e de tua existência. Investigue a bandalheira, lave esta terra, ataque a jato os vendilhões do reino. Use a força da tua tarefa!

(“É golpe!” – grasnam as aves negras. “É golpe!” – escapam pelos esgotos as ratazanas graúdas.)

– Imploda a indústria da corrupção, derrube os usurpadores do poder do povo, coloque na cadeia o chefe da quadrilha – prossegue o vozeirão.

– Siga nessa trilha. Abra caminho para o Messias que virá e serás recompensado. O Príncipe te fará Ministro. Tenha a certeza!

(“É golpe!”, já mal se ouvem os ganidos em polvorosa. “É golpe!”, distancia-se o mimimi das gralhas na debandada.)

A voz também emudece. O sol clareia a manhã em Curitiba. Moro, digo Sérgio, já não sabe mais o que é sonho e o que é realidade. Curitiba… Nome estranho…

Silêncio. Tenta pensar num discurso de posse. Ficar na praxe de esperar a colaboração de todos? Falar do trabalhão que terá pela frente? Antecipar o futuro brilhante que a todos aguarda?

(“É golpe! Não disse?” – praguejam de volta os abatidos. “É golpe! Não disse? – renascem os derrotados, em busca do sol.)

Publicado por

Marcão

Jornalista aposentado, casado, duas filhas, um neto, dois poodles e nove irmãos. Santista de mãe, pai, cidade, time e o que mais bem qualifique essa condição. Sem vaidade, só verdade!

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