Perdoando-os desde logo pela pouca idade, é claro que muitos conterrâneos não terão topado com o seresteiro Mauricy Moura cantando sucessos da época em um boteco qualquer da noite santista. “Eu daria tudo o que pudesse…” Nem prestigiaram o restaurante que o ídolo Tite, nosso ponta-esquerda dos anos 1950, predecessor de Pepe, o canhão da Vila, montou no caminho da Ponte Pênsil, onde era atração com seu violão.
Ambos, o calunga Mauricy e o craque Tite, tinham no repertório as canções de Lupicínio e do santista Lúcio Cardim, o autor de Matriz e Filial, magnífica interpretação de Jamelão. Esses de quem falo nem imaginam o que isso seja. Seja lá o que desconheçam: Cardim, Matriz e Filial, Jamelão…
Se não conhecem tais mitos, é claro que nunca foram a uma batalha de confete para ver desfilar as Dengosas do Marapé, os Romanos do Campo Grande, os Chineses do Mercado, a Embaixada de Santa Teresa, o Cordão das Esmeraldas e o Bloco da Cruz de Malta. Porque essa monumental folia é do tempo em que blocos na rua eram a melhor coisa do carnaval.
A proeminência das escolas de samba – com as magníficas X-9, Império e Brasil – viria mais tarde. Como mais tarde ainda veio a União Imperial do sambista Lúcio Nunes. Lúcio também não pôde ver a Bola Alvinegra desfilar com o Rei, não faz tanto tempo assim. Lamento que tantos não receberam o convite dirigido à Dona Dorotéa, mas extensivo a todos: vamos furar aquela onda?
O rei Momo Valdemar Esteves da Cunha e o bonde com reboque
Coisa mais fácil de encontrar na noite da Baixada, qualquer dia da semana, qualquer época do ano, eram os grupos de choro. Os chorões. Tarde da noite, você no ponto, de volta da escola ou da casa da namorada, esperando o ônibus, e lá vinham eles, precedidos pelo som inconfundível que lançavam no ar. Puro enlevo. Ou você entrava no bonde, e dava de cara com eles.
Até na travessia da balsa do Guarujá cheguei a encontrá-los. Violão, cavaquinho, pandeiro, quatro ou cinco músicos que nada falavam, não conversavam entre si, nem cantavam. Só tocavam. Como tocavam! Uns após outros, os grandes clássicos da nossa música saltavam das cordas. De onde vinham ou para onde iam, não faço a menor ideia. Daí que acho que eram criaturas fantásticas cruzando o meu caminho só para me encantar!
Quando troco umas palavras com meu quase contemporâneo Braz Cubas, chegamos à conclusão de que a cidade fundada por ele é um lugar mágico. Algo como o país das maravilhas de Alice. Onde mais poderiam surgir gentes, fenômenos e costumes tão arrebatadores? E, de quebra, um time como o Peixe de reis e príncipes. De malabaristas como Kaneko, Edu, Mané Maria. De poetas da bola como Pagão e Dom Antônio Fernandes! A máquina de fazer gols, versos e canções, quase orações.
Alguns têm a minha idade. Nossas memórias são quase as mesmas. Mas poucos nadaram nos canais que se abriram para a instalação dos tubulões do esgoto nas ruas de terra do Marapé. Não subiram o morro, cataram coquinho brejaúva ou colheram bico de papagaio para vender na feira. Não invadiram quintais para roubar carambolas, pitangas e abricós.
Não mancharam indelevelmente puídas camisas com o roxo do jambolão. Nunca arriscaram a vida, aos oito, dez anos, saltando do bonde em movimento, depois de passar de um estribo a outro, na fuga do cobrador. Nem mudaram a direção dos trilhos, só para ver a fúria do motorneiro e a algazarra dos passageiros, quando o coletivo seguia reto ao invés de virar, ou virava quando devia seguir em frente.
Teriam, como eu e meus irmãos, saboreado os tremoços da patrícia gorda que fazia ponto, todo jogo, sob as sociais de Ulrico Mursa? Teriam ajudado a cobrir de cuspe o infeliz goleiro adversário nas pugnas contra a briosa burrinha? Teriam usado de todos os artifícios para invadir a Vila? Ah, a Vila! Inesquecíveis recitais do Peixe!
Nas tardes de domingo, as famílias já assistiam ao programa Sílvio Santos na tevê. Eu, quando não tinha Peixe na Vila, e avançando no tempo, pegava minha fusqueta azul, a inesquecível Agripina, e fugia para São Lourenço, antes de Boracéia e da divisa com São Sebastião. Na época, Bertioga pertencia a Santos e a praia não tinha sido modificada pelos condomínios.
Levávamos uma caixa de isopor cheia de gelo e latinhas. Estacionávamos na areia, estendíamos a toalha, armávamos as cadeiras de alumínio e o guarda-sol e passávamos o dia ocupados apenas em, vez por outra, ir até o mar e dar um mergulho. Nenhum dinheiro, mas fazíamos daquela praia deserta um lugar mais sofisticado do que qualquer ponto da costa mediterrânea.
Minha namorada era linda, os domingos eram de sol, e eu era o dono do mundo.