Dias de sol, praia e arte

Educação Física não precisava ter na escola. Criança pobre da periferia faz como meus irmãos e eu fazíamos na infância despojada, mas feliz, do Marapé. Subindo e descendo os morros para catar coquinho. Rodando descalço toda a cidade, da nossa pequena rua até o centro, esticando para a Zona Noroeste, bem pra lá do matadouro municipal e dos urubus no céu, passando o cemitério da Areia Branca e o quartel do 2° BC, aquele em que o Rei foi reco, quase chegando a São Vicente por essa via alternativa. Ou seguindo para os lados da Ponta da Praia, beirando o cais do porto, correndo entre os armazéns empoeirados e passando pelos canais do mercado e do Macuco, com a vista bonita das catraias coloridas. Na busca de aventuras que iam muito além da carona no estribo dos bondes da SMTC, enlouquecendo cobradores e motorneiros, ora pois.

Pedalando, quando havia uma magrela disponível, até o canto das Tortugas, no Guarujá, ou até a Praia das Vacas, depois da Ponte Pênsil, em São Vicente. Ou seguindo direto até Praia Grande. Nadando em torno da Ilha Porchat ou atravessando a entrada do canal para chegar à Praia do Góes, Ilha de Santo Amaro, Guarujá, mijando de medo e molhando de toda forma o calção mal ajambrado, porque nadava mal pra caramba, mas não queria fazer feio. Saltando, saltei mesmo ou é fantasia?, do trampolim da Ponta da Praia, da pedra do Tarzan no Itararé, onde tanto moleque da nossa idade morreu.

Mas aí já estou falando de tempos depois, do adolescente que estudava à noite e trabalhava com carteira de menor de segunda a sábado, e tinha fôlego e pernas pra disputar olimpíadas completas todo fim de semana. Onde houvesse uma bola rolando pelas ruas calçadas ou não, campos de terra, areia ou grama, entre Bertioga e Peruíbe. Com tempo para o futebol de salão (era esse o nome do jogo) nas noites de sexta e sábado, para o vôlei e o frescobol nas manhãs de domingo nas areias quentes e para o jacaré de peito na parte mais rasa do mar.

Ah, e nessas quebradas também havia Arte praticada com gosto. Daquela arte que a mãe não recomendava, quando conseguia nos ver escapulir: “Não vão fazer arte por aí!” Arte de invadir quintais em busca de frutas e cacarecos, de afanar gibis nas bancas de revistas, de embolsar balas nos balcões de padarias, mercearias e botecos, de fazer carreto na feira, de transformar em dinheiro jornais velhos, latas de cera e garrafas vazias, de recolher e derreter as sobras de fios das obras da iluminação pública e vender o cobre.

                A carona no estribo do bonde e as gloriosas tardes na Vila

Tudo isso, como dizia o pai, nosso mestre nessas e noutras virações, rendia “uns bons cobres”. Sem redundância. Embora seja justo admitir que a Grande Arte, como no livro do Rúbem Fonseca, a Verdadeira Arte, nos pegava como espectadores, na Vila Belmiro, em cujo gramado Zito, Formiga, Álvaro, Pagão, Coutinho, Pelé e Pepe imperavam. Exclusividade para os nossos sentidos, compunham magistrais sinfonias, criavam indescritíveis balés e escreviam com a bola enredos e poesias como jamais imaginadas.

Não se deve, porém, desmerecer a felicidade dos domingos de praia, num tempo em que o sol era mais brilhante, a água mais verde claro e as ondas mais brancas. De novo Marapé e José Menino, entrando na puberdade, delicia era me deixar levar pelo mar, mirando a garota mais bonita de quantas faziam alarido, saltavam arrepiadas e davam gritinhos assustados ali por perto.

Também cheias de malícia e vontade.

O campo dos sonhos

    Santos nos anos 1950: a capital não capital

Lembrança remota da Vila: novembro de 1956. Faltava pouco para o Natal e, não sei como, o pai conseguiu me colocar nas sociais do estádio. Era assim o Bom Fonseca. Vivia nos filhos as duas grandes paixões: o Santos e o cinema. Como ele teve 12 filhos com minha mãe, é claro que havia uma terceira – primeira, sem dúvida – grande paixão.

Domingo, portanto, era dia de matinê ou de Peixe. Não na mesa, que camarão não é peixe, mas naquele tempo era barato e generoso, pelo menos ali a beira mar. Domingo sim, domingo não, o sete barbas com chuchu seguido da sessão da tarde nos cinemas do bairro. Domingo não, domingo sim, torta e pastéis de camarão antes do jogo. Almoços que vinham das mãos batalhadoras da Bela Dolores; programas garantidos pela esperteza ingênua do meu velho pai, quando o dinheiro sempre curto não sobrava nem para pagar o fiado da padaria.

Entrar no cinema sem ingresso era mais complicado, mas Fonseca sempre dava um jeito de nos colocar para dentro. Às vezes, até ele acabava indo junto, “para acompanhar os mais novos”, menores de 10 anos, nos filmes proibidos, como recomendava o porteiro. Voltávamos depois para casa comentando as aventuras vividas na tela grande, e a gente era ainda mais feliz vendo a alegria dele dizendo que a fita havia sido formidável. Tinha um jeito bonito de falar aquele homem que mal concluíra o primário. Bonito e correto, porque a Bela Dolores policiava o português nos domínios dela, e não perdoava o erro mais insignificante.

Abra-se um parêntesis, aqui, para lembrar da quantidade de salas de cinema que havia na cidade. Só ali pertinho, havia o Marapé, no Canal 1, e o Campo Grande e o Carlos Gomes, no Canal 2. Mais adiante, já pela Vila Mathias, ficava o Bandeirantes. Nem estou falando da Cinelândia santista, do Gonzaga e da praia, com opções mais finas e fartas. A Santos dos anos 1950 era uma espécie de capital não capital brasileira, tal a relevância que alcançara em termos políticos, culturais, econômicos e sociais. Tinha reconhecidamente o melhor sistema de transporte público, o maior número de agências bancárias relativamente à população, a qual também usufruía da maior quantidade de telefones por habitante. Chegava a rivalizar com São Paulo e Rio no jeito metropolitano de ser.

Quanto ao futebol, já era um jovem adulto quando conheci a bilheteria da Vila. Até então, nunca havia comprado um ingresso para ver o Peixe. Pequenos, íamos direto para a fila dos “meninos do Santos Football Club”, que tinham direito a um lance especial de arquibancada, atrás do gol do fundo. Quando a regalia acabou e não éramos mais tão crianças – e já sem a companhia do velho, embora com todo o estímulo dele –, simplesmente invadíamos o estádio, passando sorrateiramente pelas catracas ou escalando o muro baixo da antiga coreia, a arquibancada em geral frequentada pela fauna adversária.

Aí, entretanto, já avanço no tempo. O que quero falar agora é da época em que o pai nos levava até a Vila e, depois de nos colocar lá dentro, voltava para casa. Para a casa de repente vazia das crianças e, suspeito agora, para os braços de Dolores. A ideia me sugere que pelo menos um dos mais novos tenha sido gerado no exato instante de um gol de Pepe, na sossegada tarde de domingo do abafado chalé de madeira da Rua Morvan Dias de Figueiredo, bairro do Marapé.


Um dos primeiros Santos que vi na Vila: o campeão de 1955

Essa época, na minha memória, começa com o dia cinzento de agosto de 1954, do suicídio de Getúlio Vargas. Aos seis anos, nem na escola eu estava, mas lembro do silêncio que cobriu a cidade desde cedo. A Vila já era um lugar familiar, que eu e meus irmãos frequentávamos com alguma sem cerimônia. A lembrança mais viva, porém, é de dois anos depois, novembro de 1956. Naquele domingo, já disse, o pai conseguiu me colocar nas sociais e foi lá de cima, correndo pelos corredores atrás das atuais cabines de rádio, que vi deslumbrado o estádio cheio de gente pela primeira vez. Urbano Caldeira era imenso para os meus nove anos. Guardo o placar da terrível derrota – 0 a 4 – e o nome dos artilheiros inimigos – Zague e Paulo, dois gols cada –, mas no fim estava menos triste do que excitado. Além disso, nada abalava a certeza transmitida pelo pai: o Santos era o melhor e perdia jogos e campeonatos porque os juízes nos roubavam.

Só não foi assim no grande ano de 1935. Daquela vez, lembrava o Bom Fonseca, não houve juiz ou bandeirinha capaz de parar o ataque de Saci, Pereira, Raul, Araken e Junqueirinha. Muito menos as pobres defesas adversárias. Ganhamos o campeonato no campo desse mesmo timinho que agora vinha fazer festa na nossa Vila. Mas eles não perdiam por esperar. Em breve, começariam o doído tabu diante do nosso time e o longo jejum de títulos. Como requinte, compramos o centroavante que começava a virar ídolo deles, o baiano Zague, apenas pelo prazer de repassá-lo em seguida para o futebol mexicano e ganhar na transação. A partir de 1957, eles passariam onze anos a pão e água contra o Peixe.

O REI DO FUTEBOL – Prólogo II

Porque eu fui/sou o rei do futebol, e a minha majestade teve/tem vários nomes. Santos, você pode resumir. O time e a cidade. Ou Vila Belmiro, o meu melhor cenário, o lugar onde todos os talentos da bola insistimos em jogar. Mas você também pode individualizar. Ramiro, Zito e Formiga. Alfredinho, Del Vecchio e Vasconcelos. Álvaro, Urubatão e Tite. Manga, Hélvio e Ivan. Fui/sou essa turma toda em carne e osso e, com o tempo, aconteceu uma coisa esquisita. De heróis dos títulos de 1955 e 1956, como por encanto viraram/viramos seres mitológicos devidamente documentados com CPF, RG e CEP. Extraordinário!

Sozinho, formei/formo o ataque sobrenatural de Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe, na continuação daquele que escalei com outros nomes. Com Jair e Pagão entre Dorval e Pelé, por exemplo. Antes, fui/sou Omar, Camarão, Siriri, Araken, Feitiço, Evangelista, toda a poderosa linha dos 100 gols do fim dos anos 1920. Como também fui/sou o solitário Antoninho Fernandes, nos tempos difíceis das três décadas seguintes. Eu era/sou cada linha atacante dessas e fui/sou cada um desses craques. Provavelmente, estava a não mais de um quilômetro de Urbano Caldeira, quando Pablo Neruda escreveu, na amurada do navio atracado no cais santista: “Falam de Pelé. Será que ele joga tão bem?”. Um verso perdido do fim daquela década, um poema que o chileno dedicou à cidade.

"Fui/sou o time campeão de 1935. Fui/sou Pelé e Coutinho"

Sim, poeta! Posso responder porque fui/sou ele. Joguei muito e sempre estive na boa companhia de mim mesmo no Santos. Sendo também Gilmar, Cláudio, Cejas, Lima, Carlos Alberto, Mauro, Marçal, Calvet, Ramos Delgado, Joel Camargo, Orlando, Djalma Dias, Marinho Peres, Dalmo, Geraldino, Rildo, Clodoaldo, Negreiros, Nenê, Léo, Orlando Lelé, Pitico, Abel, Edu, Manoel Maria, Jair da Costa, Toninho Guerreiro, Douglas, Alcindo, Euzébio e Cláudio Adão. Outras lendas que encarnei/encarno, outras histórias que a magia do futebol tornou fantasias.

Pode crer que, nos primórdios, também fui os assombrosos Arnaldo Silveira, Tuffy e Athié. Garanto a você que, no corpo atarracado de uns e na figura esguia de outros, todos foram/fomos nada menos que isso: assombrosos. E que, desde aqueles tempos tão antigos quanto eu, demos ao Peixe a marca inconfundível. O Santos, meu filho, nasceu para encher de gols o mundo da bola. Quantas vezes eu disse isso a vocês, os mais velhos, extasiados com os ataques avassaladores dos anos 1950 e 1960. E quantas vezes repeti para os mais novos, deslumbrados com os títulos que vieram dos pés de Aílton Lira, Pita, Batata, Juary e João Paulo. E de Rodolfo Rodrigues, Dema e Serginho Chulapa.

Ao lado de todos vocês, e na versão Giovanni dentro de campo, chorei o roubo de 1995 e revivi a epopeia do Peixe quase centenário na síntese da redentora tarde de 15 de dezembro de 2002, quando aquela nova fornada de Meninos da Vila nos recolocou de cabeça altaneira. Vencidas as sete pragas e superada a travessia do deserto, porque não há glória sem dor, cumpria-se o que está escrito: jamais houve ou haverá nada igual entre as linhas dos campos abençoados. E, naquela tarde, eu era o menino endiabrado, com suas pedaladas e tudo o mais.

O que você lerá/leu aqui é apenas resumo. Algumas das formas que assumi nestes cem anos, em múltiplos cenários por toda parte e no meu reino preferido. A Vila Encantada. Mas o mundo gira e a bola não para. Daqui a 30 anos, suas filhas poderão dizer: eu vi Robinho e Diego, eu vi Neymar. Poderão resumir: eu vi o melhor do futebol. Porque assim foi. Assim é. Assim será.

(Fim)

O REI DO FUTEBOL – Prólogo I

Não pergunte como pude saber, filho, mas você vai encontrar/encontrou estes papéis exatamente hoje, 14 de abril de 2012, e vai ler tudo até o fim. Bem antes que o sol deite o último raio do canto dos ingás, que Vicente de Carvalho cantou, você saberá das coisas extraordinárias que aqui estão descritas. Não pergunte nada, por enquanto. As respostas estão aí. Apenas leia. Isso! Pegue a cadeira de alumínio com tiras coloridas de plástico que sempre foi sua. Ela estará/está incrivelmente conservada. Como estava limpo e sem mofo o bangalô que você reabriu esta manhã, depois de tanto tempo. Surpreso? Eu também ficaria, apesar de tudo. Mas, repito, não se questione. Deixe as perguntas para depois, porque então elas não serão mais necessárias.

Encoste a porta, siga a carreira de terra batida entre o mato rasteiro, cruze a areia e instale-se no lugar de sempre. Bem onde as ondas acabam, molhando seus pés e os chinelos de dedo. Daqui, eu o verei/vejo. Ora correndo como o garoto de outrora, descalço, calção folgado, fazendo alarido com os irmãos. Ora como agora. Meio curvado, medindo os passos, estranhando a claridade do sol que ofusca a visão fraca, reclamando da aspereza da areia que arde nos pés através da borracha do calçado (talvez lhe restem bolhas no solado do dedão, como lembrança deste dia especial, minha única incerteza de tudo quanto passo para o papel com tanta antecedência). E, afinal, arrepiando-se no contato com a água salgada e fria desta época.

Antes, não haviam estranhamento, irritação, arrepios. Esta praia, de ponta a ponta, em toda extensão, era a continuidade do nosso ínfimo quintal do Marapé, em Santos. A sua casa e a casa dos seus irmãos. O lugar em que mais ficavam à vontade. Não havia segredos que vocês não desvendassem entre a mata e o mar, os passarinhos e os peixes, as frutas praianas (ah, o azedinho do abricó, a doçura do jambolão…) e os frutos do mar (os suculentos mariscos das pedras do canto direito), os ventos, as ondas e as marés. Foi aqui que os mais novos aprenderam a surfar. Aqui disputamos nossas peladas, vocês sem saber com quem jogavam! Naquelas manhãs e fins de tarde, o que me dava prazer era assistir à vibração de todos. Rir da chacota trocada no drible, da emoção suscitada pelo gol bem marcado, da comemoração das vitórias. Parecia que vocês estavam de branco, no Maracanã. São os melhores momentos das histórias que deixo aos seus cuidados.

Por que você entre tantos filhos? Por que neste chalé esquecido, que seus irmãos compraram para o desfrute da família? Neste encontro com o passado, para você casual? Você sabe, filho, que amei todos vocês do primeiro ao último. Em cada um vi qualidades, que só me deram orgulho, muito mais do que as façanhas que estou prestes a revelar. Todos seriam bons guardiões destas anotações. Mas foi você, junto com a sua mãe, quem mais me entendeu, nestes casos. E quem, sem saber, me ajudou a contá-los. Ou você pensa que me saiu do nada este jeito de colocar as palavras no papel, se o pai que você teve mal foi alfabetizado? Acho que você vai gostar do resultado. Nas outras missões que tive, obras assinadas por diversos autores, você vai ver que me saí bem. Muito bem. Excepcionalmente bem, posso dizer, sem medo de exagerar.

Que bom que você lembrou de trazer a garrafinha de água! As horas passarão/passaram rápidas, e será/foi bom molhar a garganta de quando em quando. Mesmo que o sol do outono nesta praia tenha perdido a força de semanas atrás. Não haverá/não há movimento algum nesta sexta-feira junto ao mar. Nada que possa desviar sua atenção e até o vento que costuma bater do oceano dará/deu um tempo para você manter as folhas em ordem, sem sobressaltos e correrias. Será/é apenas uma brisa, suficiente para levar para longe o alarido dos meninos que, você nem percebe, batem bola à sua esquerda. Nenhum deles será o que eu fui. Nenhum verá ou fará o que eu vi e fiz. Nenhum saberá o que eu sei, filho, e que você, agora, também começará a saber.

(continua)

Imagem de uma infância

 

Braz Cubas

Eram três pequenas salas de aula, ligadas por uma varanda aberta para o tempo, sol e chuva, que terminava em outras duas salas: a da diretoria e a dos professores. A esquerda, nos fundos do terreno, havia um galpão e provavelmente uma cozinha, na qual se preparavam as merendas: frutas, talvez alguma bolacha e um copo de leite.

No espaço da frente fazíamos nossa algazarra antes do início das aulas. Havia ali um mastro com a bandeira brasileira, diante da qual nos perfilávamos nas datas festivas da Pátria para cantar o Hino Nacional. No dia 19 de novembro, cantávamos o Hino à Bandeira: “Salve lindo pendão da esperança, salve símbolo augusto da paz…” Sou Augusto, e me ligava nesse verso.

Nélson, o quinto da nossa fila, um ano depois de mim (as noites santistas eram quentes, e o casal não sossegava), lembra de ter plantado uma árvore no que virou um piso de cimento. “Ali também recitei um verso e perdi todas as bolinhas de gude que o Horácio ganhava da turma dele e me passava quando nos encontramos na troca de horário das aulas. Eu também perdia as figurinhas que ele ganhava no jogo de abafa.” Parece que o Nélson fala de mim, eu igualmente perdedor de bolinhas e figurinhas.

Minha professora do primeiro ano chamava-se Iolanda. Iolanda Paulilo, acrescenta Sílvio, o sexto da turma, também aluno dela. Era bonita, elegante e bondosa. A diretora da escola, Dona Geny, tinha um enteado padre da congregação dos paulinos, o padre Bernardo. Foi dona Geny quem nos encaminhou, o Nélson e eu, para o seminário da Rodovia Raposo Tavares, após conversar comigo no dia seguinte à morte do Papa Pio XII.

Antes, Dona Geny já havia encaminhado o Luiz Antônio, filho da merendeira da escola. Mãe e filho moravam na nossa rua. Luiz Antônio, como Nélson e eu, não concluiu a formação sacerdotal: virou diplomata de carreira. Outra funcionária morava ao lado da escola e era mãe do meu colega de classe Roberto Vilarrúbia. O pai do Roberto trabalhava no Cine Marapé e permitia o nosso acesso gratuito às sessões por uma entrada lateral. Nesse cinema, uma noite, o pai e a mãe assistiram a “Quo vadis”. Ou foi “Ben Hur”?

Seis dos dez filhos vivos da Bela Dolores e do Bom Fonseca fizeram o primário no Grupo Escolar Braz Cubas. Canal 1, avenida Pinheiro Machado, divisa do bairro do Marapé com o Campo Grande. Quase ao lado ficava o cine Marapé, hoje um supermercado. Mais adiante, na mesma quadra, estava o imponente GE Olavo Bilac. À noite, no mesmo prédio, na esquina da Carvalho de Mendonça, funcionava o Instituto Municipal de Comércio de Santos, que me deu o diploma de auxiliar de contabilidade, anos mais tarde.

Os seis da geração Braz Cubas no chalé do Marapé

Albano, o segundo na linha da sucessão familiar, depois do Ouhydes, ou Zinho na intimidade da família, defende que as ruínas do Braz Cubas sejam tombadas. “Eu gostaria que fossem deixadas exatamente como estão, um marco, uma memória. Sempre que passo por ali sinto uma grande emoção, muitas vezes paro e olho de longe, às vezes espio por entre as frinchas. Depois que o colégio mudou para unidade de 2º grau, e de lugar, foi usado por negócios como construção civil, escola particular, academia de ginástica. Cada vez que eu passava por lá e via a escola abandonada, preparava o coração, antecipava a demolição. E a cada vez, lá estava ela, um pouco mais dilapidada, como a me dizer que enquanto ela estivesse por ali eu também estaria por este mundo, mais velho, mais arruinado.”

“Mesmo assim, a ternura retorna, ainda que mais dorida ou nostálgica” – continua Albano. “Tanto a ver com tudo, como o primeiro dia de aulas, levado pelo Zinho. Passei quatro anos lá, de 1951 a 1954, com um interregno de alguns meses em 1953, quando mudamos para o Beiramar, em São Vicente. Fui transferido para o Matteo Bei e depois de volta ao velho Braz Cubas. Faz uns 20 anos que está exatamente do mesmo modo. Viverá para sempre!”

Pelo menos uma de nossas cunhadas fez o primeiro ano lá, a Eliane, casada com o Horácio. Os quatro mais novos – Márcio, Paulo, Marisa e Tonho – percorreram o “Caminho suave” no Visconde de São Leopoldo, da Rua João Guerra, depois que deixamos o Marapé e fomos morar três canais adiante, em direção ao porto. Ficamos bem perto do Instituto Adolfo Lutz, a repartição em que o pai trabalhou como servente, junto ao Centro de Saúde de Santos. Cercada de armazéns de café, era uma região digamos mais urbana do que nosso antigo bairro no pé do morro, então com ruas de terra, mal iluminadas à noite.

O hino inglês do Santos

Durante anos, o jornalista Osvaldo Martins correu atrás do verdadeiro hino do Santos, time do seu coração. Ele estranhava o fato de o hino oficial ter surgido apenas na década de 1960, com o Peixe já cinquentenário. Argumentava o Osvaldinho que todo clube, ao ser fundado, ganhava nome, cores, distintivo, bandeira e hino. Tudo isso remetia à segunda década do século passado.

A busca não foi em vão. Pouco antes do centenário do Santos, em 2012, ajudado por outro santista ilustre, o ex-deputado Arnaldo Madeira, ele encontrou o que lhe pareceu ser o hino original, que ouvia em sua meninice, nos programas esportivos das rádios da cidade. Ou o mais próximo disso.

Confiando na memória, e na do amigo, ele conseguiu recuperar música e letra, entregues ao maestro Roberto Sion, também santista, com o perdão da insistência, para arranjos (coral e orquestra) e gravação. O que foi feito às vésperas do centenário do Peixe, com autorização dos presidentes Laor e Odílio. Foram gravadas uma versão só orquestrada e outra com coral e orquestra.

“Nosso clube foi sempre forte / desde o tempo do União / Duvidamos que alguém suporte / seu valor de campeão … são os primeiros versos.

O trabalho ficou belíssimo, mas nem todos gostaram. A própria diretoria relutou em levar adiante o projeto, que incluía a edição de um vídeo. Na época, conselheiro do Peixe, insisti para que fosse copiado pelo menos um CD. Poucos tiveram acesso às cópias e membros do Conselho Deliberativo nem se interessaram.

Anos depois, assistindo à série britânica Peaky Blinders (BBC/Netflix), ouvi  a música no início da segunda temporada. Ela é tocada por uma banda marcial, no hipódromo de Birmingham, Inglaterra. Ali, os Peaky Blinders, uma gangue que atuou entre o fim do Século 19 e os anos 1930, manipulavam apostas e corridas de cavalo, entre crimes e contravenções a que se dedicavam.

De forma que o suposto hino do Peixe de original só tem a letra. O que em nada o diminui. Sabe-se, por exemplo, que o famoso hino norte-americano The Star-Spangled Banner é originalmente uma canção popular. Espécie de Leva, meu samba, que os bebuns ingleses cantavam alegres nas tavernas da antiga Londres.

A letra, que os norte-americanos cantam hoje com tanto fervor e orgulho, foi escrita por Francis Scott Key, em 1814. Ah, e recomendo muito a série, disponível  na Netflix, para quem ainda não assistiu.

Saudades do barbeiro

Nunca fui de me preocupar muito com os cabelos. Importa que não deem muito trabalho. Mas agora, por saber que a barbearia está interditada, eles incomodam. Sinto falta de uma aparada. Daí lembrei de um texto publicado aqui no blog.

Assembleia da greve de 1979: muito cabelo ruim

Beleza e preconceito

Olho para trás e fico pensando que meus cabelos sempre foram brancos e poucos. Quando muitos, vejo nas fotos do time da redação e de uma assembleia da greve de 1979, eram desgrenhados. Jovem adulto, tentei alisá-los com um produto e a orientação da namorada. O resultado provocou o comentário de um negro famoso: “O jornalista tem um pé na cozinha!”

Acho difícil, mas talvez houvesse em mim algum vestígio de sangue índio, como assegurava a madrinha, irmã de meu pai, para desgosto de minha mãe. Incrível, mas a Bela também carregou algum preconceito no coração bonito. E quem não?

O Velho Bondade em Pessoa, por exemplo. Sua cisma eram os pretinhos, que ele achava mascarados, quando jogavam no juvenil do Peixe. E, aqui entre nós, os carinhas eram metidos mesmo. Entojados.

Um deles chamava-se Luís Cláudio. Chegava na entrada do ginásio Athié Jorge Cury, mal olhava para meu pai e, na maior, ia entrando. Mas o velho barrava: “Ingresso, por favor!” O rapaz, surpreso: “Como assim, ingresso? Não me conhece?”. E o velho inflexível: “Não conheço. Ingresso, por favor!”.

Talvez tenha sido ali, recolhendo os bilhetes dos jogos de vôlei e basquete, que ele exerceu alguma autoridade na vida. Especialmente diante de quem, na avaliação dele, era mascarado.

Naquela viagem com o maior time do mundo, achei legal o Rei me considerar da raça dele. Apesar de isso também significar cabelo desgrenhado, ruim, como se dizia. Mas a negritude estava em alta no mundo, com Ali, Hendrix e Marley. No Brasil também, com Simonal, Elza e o próprio. Ele, Pelé!

Uma guerra de vida ou morte

É pela vida a guerra que a Globo trava contra o presidente. Guerra do dragão contra o dragão, pois não há santo guerreiro nessa história. Mal contra o mal, e o bem fica muito bem escondido, porque entre os apoiadores de lado a lado não há em quem confiar.

Para a emissora que teve o mérito de introduzir o BBB por aqui, a questão parece ser mesmo de sobrevivência, a julgar pelo pífio desempenho comercial que se observa em seus chamados horários nobres.

Nos intervalos do Jornal Nacional, a globo é agro, a globo é tech, a globo é pop, com o apoio de um banco e de uma montadora. Deve render uns pichulecos, mas é só. Há duas semanas, também tentando colocar o nariz acima do nível da água, a TV Zorra Total liberou seu jornalístico, que passou a mencionar o nome de empresas nas reportagens.

Rompeu uma tradição de décadas sem chamar, por exemplo, as equipes Red Bull de Red Bull, nas transmissões esportivas, principalmente o automobilismo. Para Galvão Bueno, a escuderia chama-se RBS, entenda quem puder. E o telespectador que se dane.

O pretexto atual é estimular a iniciativa privada a ampliar a ajuda humanitária no combate ao covid-19. Surgiu até uma vinheta criativa: “solidariedade S/A”. Mas a ajuda que se espera, e que ainda não apareceu com força, é de fato o incremento da publicidade paga nos canais do Bozo.

A situação é tão triste que, na noite de domingo, num intervalo do Fantástico, foi visível a absoluta ausência de inserção comercial de porte. Entre chamadas da programação global, o que apareceu foi um único e escasso reclame (como é bom ser antigo, para poder usar expressão tão saborosa!) de construtora local, na retransmissora de Sorocaba.

O que poderia salvar a lavoura seriam verbas irrigadas por ministérios, bancos públicos e estatais de variados setores. Ah, como fazem falta o adubo de uma Petrobrás, os insumos do Banco do Brasil, a chuvinha boa das leis de incentivo bancadas pelo dinheirinho da União! Mas o capetão malvado cortou tudo isso.

A saída é derrubar o causador de tanto mal. Fora, obscurantista inimigo da democracia, da cultura e da imprensa livre e sua gangue de milicianos rancorosos! Que venha alguém mão aberta no uso dos recursos públicos, como os governantes anteriores!

Afinal, que mal tem gastar rios de dinheiro na propaganda de empresas monopolistas, dispensadas de seduzir consumidores compulsórios? Por que não dar estímulos a ações meritórias como as da FRM? Como ser contra o financiamento de obras primas da sétima arte, como as impagáveis comédias produzidas pela Globo Filmes?

A pancadaria dos últimos dias nos canais das Organizações Tabajara é mais do que justa e merecida. E não se cobre coerência desse jornalismo com causa. Se até a semana passado o candidato a presidente defendido era o Botafogo (codinome do presidente da Câmara dos Deputados na planilha de propinas da Odebrecht), não há de haver espanto se agora ele perdeu espaço e foi substituído.

Eis que uma voz mais alta se alevanta e a vitória, com ela, parece estar próxima. Mais do que nunca, a salvação justifica os meios empregados. No desespero, a emissora usa tudo o que tem, das distorções ao direcionamento do noticiário, e abandona de vez o respeito à boa conduta jornalística.

Lamento pelos bons profissionais envolvidos nisso.

Uma noite em Caracas

Lembrei outro dia da excursão que o Santos fez em 1970 pelas Américas, com um time praticamente reserva, pois metade dos titulares estava com a seleção no México. A estreia aconteceu em 7 de maio, em Caracas, Venezuela, contra o Vitória de Setúbal, numa noite surreal.

A capital venezuelana estava sob greve geral e os estudantes ocupavam a Cidade Universitária, em cujo estádio se realizaria o jogo. As ruas no entorno estavam bloqueadas com galhos de árvores e, por toda a cidade, piquetes de trabalhadores impediam a circulação do transporte coletivo.

Orlando, Djalma Dias e Abel na excursão de 1970

Quando entramos na Cidade Universitária, fomos recebidos pelos estudantes com uma chuva de pedras. Pânico, todos se jogando no corredor do ônibus, cobertos de estilhaços de vidro. As janelas que sobraram foram em seguida quebradas a pau pelos rapazes, que nos cercavam.

Não houve feridos e, no meio da negociação que acabou assegurando a continuação da nossa viagem até o estádio, uma voz inconfundível e insistente se destacou do nosso lado: “Calma. Párem. Yo soy brasileño”. Era o zagueirão Ramos Delgado, tão apavorado quanto os companheiros.

Os portugueses do Setúbal receberam o mesmo tratamento mas, ao contrário do Santos, decidiram voltar ao hotel e fazer uma série de exigências para participar do jogo. Cobraram inclusive o pagamento antecipado de sua cota. Com tudo isso, o jogo atrasou mais de uma hora.

Quando finalmente entraram em campo, meio time exibia vistosas bandagens na cabeça, braços e pernas. Parecia um exército que chegava batido da guerra. Pura encenação, como pudemos ver a partir do momento em que o juiz apitou o início.

Os portugueses deram um baile e venceram por 3 a 1, com atuações impressionantes de dois negros. Um deles era o ponta-Jacinto João, que naquela noite estava mais endiabrado que o Garrincha e o Edu juntos.

Lamento a saída, mas Moro errou na despedida

Só fui ouvir falar do juiz Sérgio Moro quando ele passou a cuidar dos casos ligados ao petrolão, escândalo comandado por Lula quando presidente e continuado no governo Dilma. Imediatamente, passei a admirá-lo, pelas atitudes firmes e pela correção com que se conduziu ao longo de todo o processo. A admiração estendeu-se à toda a equipe da Operação Lava Jato, promotores, desembargadores e policiais federais.

Entendi, e continuo entendendo, que as revelações levantadas pela operação e sobretudo a condenação e prisão de dezenas de medalhões, entre empresários, doleiros, autoridades públicas e políticos bem situados transformaram o país em modelo no combate à corrupção. Por isso, fiquei surpreso quando o juiz resolveu aceitar o convite do presidente eleito para assumir o cargo de ministro da Justiça e da Segurança Pública.

Para mim, Moro deu ali um passo errado. Aceitei, contudo, a razão apresentada por ele para abandonar a magistratura em troca de um cargo público. Como ministro, Moro julgava que teria mais força para levar adiante e aprofundar a luta contra a corrupção. Para isso, recebeu garantia de carta branca de Bolsonaro no exercício do cargo.

Pela experiência acumulada e as dificuldades enfrentadas em Curitiba, a estratégia de Moro era dar maior respaldo jurídico à Lava Jato. Daí ter dedicado seus primeiros dias de ministro à formulação do pacote anticrime, apresentado ao Congresso em tempo recorde, no dia 4 de fevereiro do ano passado, um mês depois da posse do novo governo.

O projeto foi retalhado na Câmara e, em seguida, colocado de lado, sem que Bolsonaro saísse em defesa do seu ministro. Ao contrário, o presidente estimulou inclusive alterações no formato do Ministério, entre elas a retirada da Coaf de sua jurisdição. Moro engoliu os primeiros sapos e seguiu no cargo.

Em agosto, o ministro de novo ameaçou sair do governo, diante da possibilidade de o Planalto substituir o delegado da PF no Rio de Janeiro. Bolsonaro recuou e repetiu juras de amor a Moro, que se sentiu prestigiado. Assim, entre tapas e beijos, a relação foi levada até a última sexta-feira, dia 24 de abril.

De forma que lamento a saída de Moro, como uma perda para o País. Mas não posso deixar de assinalar um erro do ex-ministro no anúncio da renúncia. Ele não tinha o direito de trazer a público conversas pessoais com o presidente, uma vez que elas se deram dentro de uma relação de confiança entre os dois.

Minha opinião se baseia na experiência que tive como assessor de imprensa de empresas privadas e órgãos públicos. Nessa situação, o profissional de comunicação tem compromisso ético claro com o cliente. Deve manter estrito sigilo sobre informações obtidas no contato privilegiado com ele. É algo semelhante à relação do advogado com o cliente e do padre com o confessor.

Moro fez como o vigário que, no sermão de domingo, conta detalhes da confissão de um paroquiano. Ou como o defensor que denuncia o crime narrado pelo cidadão que lhe pede ajuda profissional. As informações que Moro divulgou não mais lhe pertenciam, mas sim ao ministro de Bolsonaro, o que já não era.