Não pergunte como pude saber, filho, mas você vai encontrar/encontrou estes papéis exatamente hoje, 14 de abril de 2012, e vai ler tudo até o fim. Bem antes que o sol deite o último raio do canto dos ingás, que Vicente de Carvalho cantou, você saberá das coisas extraordinárias que aqui estão descritas. Não pergunte nada, por enquanto. As respostas estão aí. Apenas leia. Isso! Pegue a cadeira de alumínio com tiras coloridas de plástico que sempre foi sua. Ela estará/está incrivelmente conservada. Como estava limpo e sem mofo o bangalô que você reabriu esta manhã, depois de tanto tempo. Surpreso? Eu também ficaria, apesar de tudo. Mas, repito, não se questione. Deixe as perguntas para depois, porque então elas não serão mais necessárias.
Encoste a porta, siga a carreira de terra batida entre o mato rasteiro, cruze a areia e instale-se no lugar de sempre. Bem onde as ondas acabam, molhando seus pés e os chinelos de dedo. Daqui, eu o verei/vejo. Ora correndo como o garoto de outrora, descalço, calção folgado, fazendo alarido com os irmãos. Ora como agora. Meio curvado, medindo os passos, estranhando a claridade do sol que ofusca a visão fraca, reclamando da aspereza da areia que arde nos pés através da borracha do calçado (talvez lhe restem bolhas no solado do dedão, como lembrança deste dia especial, minha única incerteza de tudo quanto passo para o papel com tanta antecedência). E, afinal, arrepiando-se no contato com a água salgada e fria desta época.
Antes, não haviam estranhamento, irritação, arrepios. Esta praia, de ponta a ponta, em toda extensão, era a continuidade do nosso ínfimo quintal do Marapé, em Santos. A sua casa e a casa dos seus irmãos. O lugar em que mais ficavam à vontade. Não havia segredos que vocês não desvendassem entre a mata e o mar, os passarinhos e os peixes, as frutas praianas (ah, o azedinho do abricó, a doçura do jambolão…) e os frutos do mar (os suculentos mariscos das pedras do canto direito), os ventos, as ondas e as marés. Foi aqui que os mais novos aprenderam a surfar. Aqui disputamos nossas peladas, vocês sem saber com quem jogavam! Naquelas manhãs e fins de tarde, o que me dava prazer era assistir à vibração de todos. Rir da chacota trocada no drible, da emoção suscitada pelo gol bem marcado, da comemoração das vitórias. Parecia que vocês estavam de branco, no Maracanã. São os melhores momentos das histórias que deixo aos seus cuidados.
Por que você entre tantos filhos? Por que neste chalé esquecido, que seus irmãos compraram para o desfrute da família? Neste encontro com o passado, para você casual? Você sabe, filho, que amei todos vocês do primeiro ao último. Em cada um vi qualidades, que só me deram orgulho, muito mais do que as façanhas que estou prestes a revelar. Todos seriam bons guardiões destas anotações. Mas foi você, junto com a sua mãe, quem mais me entendeu, nestes casos. E quem, sem saber, me ajudou a contá-los. Ou você pensa que me saiu do nada este jeito de colocar as palavras no papel, se o pai que você teve mal foi alfabetizado? Acho que você vai gostar do resultado. Nas outras missões que tive, obras assinadas por diversos autores, você vai ver que me saí bem. Muito bem. Excepcionalmente bem, posso dizer, sem medo de exagerar.
Que bom que você lembrou de trazer a garrafinha de água! As horas passarão/passaram rápidas, e será/foi bom molhar a garganta de quando em quando. Mesmo que o sol do outono nesta praia tenha perdido a força de semanas atrás. Não haverá/não há movimento algum nesta sexta-feira junto ao mar. Nada que possa desviar sua atenção e até o vento que costuma bater do oceano dará/deu um tempo para você manter as folhas em ordem, sem sobressaltos e correrias. Será/é apenas uma brisa, suficiente para levar para longe o alarido dos meninos que, você nem percebe, batem bola à sua esquerda. Nenhum deles será o que eu fui. Nenhum verá ou fará o que eu vi e fiz. Nenhum saberá o que eu sei, filho, e que você, agora, também começará a saber.
(continua)