Um dia especial

Perto do fim do ano de 1957, olhando o cais santista da amurada de um navio de passagem para a Europa, o poeta faz um verso casual. “Dizem que Pelé joga muito. Será verdade?” – pergunta o chileno. Pablo Neruda estava a mais ou menos quatro ou cinco quilômetros distante da Vila Belmiro, onde Pelé talvez treinasse com o Santos.

O verso-indagação fazia sentido para o forasteiro chegado do outro lado do continente, da beira do outro oceano. Ele queria saber de um jogador que completara 17 anos por aqueles dias e sequer jogara fora do país. Mas que, meses antes, ainda aos 16, marcara dois gols contra a Argentina e fizera o Brasil ganhar a Copa Rocca, em jogos no Rio e em São Paulo.

O Rei Menino, no templo da Vila Belmiro, em Santos

A molecada do Marapé e adjacências também não conhecia Neruda, nunca ouvira falar, mas sabia que Pelé era o Rei do Futebol. O Marapé, pra quem não sabe, é o bairro-estado que possui um balneário (a praia do José Menino), sua própria cordilheira (que vai do morro de Santa Terezinha ao Monte Serrat da Padroeira) e o Vaticano ou a Meca do futebol, que é a Vila Belmiro. Não há nada igual no mundo.

Territorialmente, o Marapé estende-se, de sul a norte, da Ilha Comprida a Paraty, já ultrapassando a divisa com o Rio de Janeiro. Isso correspondia também aos domínios do Bom Fonseca e da Bela Dolores, cuja união o Peixe e Pelé ajudaram a tornar mais feliz e abençoada. O que pode ser melhor do que nascer em Santos, ter o melhor time do mundo para torcer e um Rei menino para cortejar (como o infante que, décadas antes, o santista José Bonifácio pajeou)? Pois era assim, poeta, que se sentiam os dez fonsequinhas, alguns ainda por nascer! E foi ali que alguém muito poderoso escolheu para depositar tanta bênção.

Nos anos seguintes, Neruda teria as suas respostas. Algumas dadas em sua própria terra, no palco do Estácio Nacional de Santiago do Chile, nos recitais que o Santos de Pelé ofereceu aos chilenos. O estádio que depois serviu de cárcere para os adversário da ditadura militar. Estádio que mais tarde o próprio Peixe exorcizaria, já sem Pelé, ao massacrar por 5 a 0 a seleção de Pinochet, diante do ditador, na comemoração da classificação espúria do país para a Copa do Mundo.

Com um admirador, no Estádio Nacional do Chile

Numa das passagens de Pelé pelo Chile, eu estava junto. Foi no início de 1970, quando o Santos ganhou mais um torneio internacional, meses antes do tri da seleção no México. Na viagem com o maior time de todos os tempos, achei legal o Rei me acolher. Ele disse que eu parecia ter um pé na cozinha. A voz do pastor King ainda se ouvia forte e a negritude estava em alta no mundo, com Ali, Ella, Marley e os Panteras. E aqui, com Cartola, Elza, Simonal, os livros de Machado de Assis e a maioria negra daquele time inesquecível!

Por essas histórias e as outras que você viria a conhecer com mais detalhes, poeta, nunca mais foi necessário perguntar se é verdade que Pelé joga muito. Ele joga mais ainda. Por isso é Rei. Eterno Rei!

Outubro, 17

Hoje esqueço o boné

Com que me cubro.

Pois é outubro

E o verão já se insinua

No céu, na rua.

No ar, até!

 

Apogeu vermelho das pitangas!

 

Outubro do sangue

Rubro, remoto na neve,

Que aqui não ferve.

E lá abunda.

Revés do nosso sol

De alma branda.

 

Revolta amável dos de tanga!

 

De novo outubro.

E se a cabeça ora descubro,

Quisera liberar igual

Os pés das vestes,

Para pisar o mal sem dor,

Subir mil everestes!

 

São Paulo, 17/10/2017

Variações em torno de uma fraude chamada VAR

O que os comentaristas de futebol da grande mídia enchem a boca para chamar de “tecnologia” nada mais é do que o dedo do operador de vídeo na cabine do VAR. Seja ele um técnico ou um juiz treinado para exercer a função. Pois é essa figura quem determina, nos casos de impedimento, por exemplo, a posição da bola, a posição do atacante e o momento exato em que o passe sai do pé do jogador que dá o penúltimo toque. Assim, se o varista antecipar ou retardar o congelamento da imagem, voluntária ou involuntariamente, o lance será ou não invalidado. Com o aplauso dos comentaristas e dos entendidos.

Ou seja, nada há de tecnológico nisso, apenas a mais normal ação de alguém que tanto pode acertar quanto errar. Não há infalibilidade, tanto quanto não havia na alegada prescrição “científica” da Globo e do Mandetta para o combate à pandemia, seguida por prefeitos e governadores. Com mais de 120 mil mortos, não dá para dizer que a estratégia foi bem sucedida. Como não se pode afirmar que o juiz eletrônico veio para eliminar os erros de arbitragem e instituir a justiça no futebol, depois das clamorosas (com licença, mestre Cláudio Carsughi!) manipulações que se verificam, rodada após rodada.

Domingo passado, a vítima do VAR foi o Santos e o beneficiado, mais uma vez, foi o Flamengo. No primeiro gol anulado, mesmo contando com a imagem da câmara lateral, a equipe de juízes eletrônicos demorou cerca de cinco minutos para decretar que o atacante santista tinha um ombro em posição irregular. Una cabeza  seria mais apropriado, mas não. Um ombro. Um frame antes, ele poderia estar em posição legal. Quem pode garantir, tecnologicamente, que a imagem foi parada no momento certo, ou se avançou um pouco mais, até o alegado impedimento? Pois é, nunca se saberá. E nem adianta depois, com base nessa manipulação (no melhor sentido da palavra), vir com linhas traçadas artificialmente sobre a imagem real para provar o que não passa de suposição.

No caso, o mais escandaloso foi o tempo que os três juízes eletrônicos levaram para decidir, em lance tão simples, se havia ou não impedimento, mesmo contando com a filmagem mais elucidativa possível. Por que a demora? O que os levou a vacilar tanto? Que artes fizeram nesse tempo? Ressalte-se que a decisão foi exclusivamente deles, pois o juiz de campo só cumpriu o que lhe foi recomendado: anulou o gol santista e assinalou impedimento. Curioso é que grande parte dos comentaristas considerou essa decisão acertada, por ser mais fácil de julgar. Fácil como, se os caras atrasaram tanto o jogo?

Já no segundo gol santista anulado, há uma confluência de responsabilidades do juiz de campo com os colegas eletrônicos. É claro que o lance foi muito mais complexo, já que era preciso determinar em primeiro lugar o momento exato em que o pé esquerdo de Marinho toca a bola na cobrança da falta. Em segundo lugar, os árbitros deveriam precisar a posição do meia Jobson nesse mesmo instante, se adiantada ou não. Outra necessidade: conferir se o santista tocou ou não a mão na bola. Finalmente, caberia ao juiz de campo decidir se a movimentação de Jobson teria prejudicado o goleiro do Flamengo.

Mais uma vez com o auxílio da “tecnologia digital”, aquela que usa o dedo do operador de vídeo, decidiu-se que Jobson estava adiantado. Mas, com a imagem correndo, viu-se que ele não toca com o braço nem interfere de alguma forma na trajetória dela. O juiz de campo vai, então, conferir tudo na telinha do VAR.

Detalhes. O juiz havia validado o gol, não contestado por nenhum flamenguista. Nem mesmo queixou-se o goleiro, supostamente o prejudicado pela participação passiva de Jobson no lance. O comentarista de arbitragem da Globo (nada me convence de que não haja contato direto entre ele e a cabine eletrônica) tenta encontrar uma saída e dar uma força ao Flamengo. Primeiro, fala do possível impedimento. Depois, vem com a história do braço de Jobson na bola. Finalmente, com a demora do VAR, já não sabe mais o que falar. Para sua salvação, o juiz de campo vai conferir o lance. Anulado o gol, após outros cinco minutos de paralisação, os globais confraternizam. Decisão acertada!

Ao longo do jogo, haveria ainda mais duas participações ou omissões importantes do VAR, sempre a favor do Flamengo. Inicialmente uma falta violenta do rubro-negro Bruno Henrique em Marinho, perto do quarto árbitro, foi ignorada pelos quatro juízes (seria expulsão direta ou no mínimo cartão amarelo para o flamenguista). Mais adiante, o mesmo Marinho ganhou de Gustavo Henrique na velocidade e foi derrubado nas proximidades da área pelo zagueiro. Apontado impedimento do santista, o VAR é acionado para verificar se houve ou não pênalti a favor do Santos. A imagem mostra com clareza que Marinho partiu de posição legal, não havendo impedimento, e foi derrubado por trás pelo zagueiro, fora da área. Não foi pênalti, mas a falta deveria render a Gustavo Henrique o cartão vermelho. O juiz, entretanto, preferiu manter a marcação do impedimento que não existiu.

Ano passado, contra o Cruzeiro no Mineirão, Gustavo Henrique ainda no Santos cometeu infração idêntica aos cinco minutos de jogo. O juiz nada marcou, mas o VAR interferiu e, além de determinar a marcação da falta, levou o juiz a expulsar o zagueiro. A questão principal, assim, nem é discutir a indisfarçável manipulação dos juízes eletrônicos, seus conluios com os árbitros de campo ou a parcialidade dos comentaristas de arbitragem da Globo. A questão é a falta de critério. Tal distorção leva à marcação, por exemplo, dos pênaltis duvidosos que evitaram derrotas do Flamengo, já nos acréscimos do segundo tempo, em jogos sucessivos. E à absurda anulação dos gols santistas na Vila.

A língua que se fala

Você sabe como se chama aquela peça ora branca, ora metálica, ora vermelha ou de outra cor qualquer, com mais ou menos um palmo de comprimento por um palmo de altura, que você liga na tomada (atenção para a voltagem!), encaixa nela duas fatias de pão de forma, regula o termostato e liga deslizando uma chave para baixo? Isso mesmo, aquela que às vezes até assusta com o salto das fatias quando chegam ao ponto desejado.

Sabe mesmo? Pois é! Eu também achava que sabia, ao sair esta manhã para comprar uma dessas geringonças no comércio das proximidades. Meu primeiro engano foi imaginar que peça tão pouco desenvolvida tecnologicamente seria encontrável até na banca do Sílvio, aqui na esquina. O Sílvio, atualmente, vende de tudo, de alimentos e bebidas a cabos para celular, de brinquedos a revistas. Tinha um banco querendo que ele vire salão de beleza, mas parece que a ideia dos espertinhos não colou. Sílvio prefere vender jornal para pet fazer xixi.

É claro que a outrora banca de jornais não tinha o produto que eu procurava. Surpresa foi não encontrá-lo nas três lojas de utilidades em que entrei. No entanto, não é para falar do sumiço de alguns produtos das prateleiras, talvez vitimados pelo covid-19, que alugo a sua atenção. Minha intenção é outra. Quero falar de como as pessoas utilizam nomenclatura própria, com nomes diversos para coisas iguais ou nomes iguais para coisas diversas.

Entrei na primeira loja e fiz o pedido à moça que me atendeu:

– Preciso de uma torradeira. Que opções você tem?

– Claro! Temos uma linha muito interessante de sanduicheiras. Venha comigo.

– Espere! Sanduicheira é aquela maquininha na qual o pão vai deitado? Na que eu preciso, as fatias vão em pé, sem recheio.

– Ah, entendi! Sei qual é. O que o senhor procura é uma tostadeira. Não temos. Está em falta.

Na loja seguinte, já familiarizado com o assunto, fui direto ao ponto.

– Por favor, quero uma tostadeira. Você tem?

– Temos sanduicheiras de algumas marcas muito boas. Venha ver.

– Desculpe, mas eu preciso de uma tostadeira. Aquela com duas fendas em cima, pra gente colocar as fatias de pão de forma e fazer torradas. Você tem?

(Parêntesis para “colocar versus inserir”. Já repararam como no comércio o cartão tem de ser “inserido” nas maquininhas de compra? Colocar é palavrão. Eu, de sacanagem, às vezes pergunto: posso enfiar?)

– O senhor deveria ter dito logo que quer uma torradeira. Essa não temos mais.

Na terceira loja, a moça me explicou que tanto faz dizer torradeira ou tostadeira. Ela entende os dois nomes. É o mesmo produto, mas infelizmente está em falta.

Outra façanha de Giovanni. Ele nos deu Diego e Robinho

Como nossos dias não são apenas de recolhimento, por causa da pandemia, mas também de muita reprise na grade de programação das emissoras de TV, aproveito para repostar uma ficção escrita originalmente para a seção Tesoura Afiada, que mantive no Portal do Santista Roxo, na primeira década deste século. Era o relato de um certo Argemiro da Veiga, oficial de barbearia, salão montado no Macuco, junto ao cais, com base em devaneios do freguês Nicácio Pinto. Qualquer semelhança com pessoas e fatos reais é, portanto, só coincidência. Neste texto, Nicácio faz uma reverência ao craque Giovanni.

De terça pra cá, Nicácio não apareceu no salão. “Está de molho, com um princípio de gripe”, explicou a Izilda, que veio pegar o jornal emprestado. Por isso, fiquei meio sem assunto e resolvi recordar uma história envolvendo a dispensa do Giovanni, o Messias, do Santos, em 2006. Foi o dia em que o China e o Neves, meus fregueses, quase se pegaram. China ficou a favor da dispensa e o Neves, contra.

O China achava que a decisão tinha sido do Luxemburgo e o Neves culpava o presidente Marcelo Teixeira. O China dizia que o Giovanni nem deveria ter voltado, porque não ganhou nada com o Peixe, e o Neves não se esquecia de 1995, “quando a gente voltou a andar de cabeça erguida, graças a ele”. Enfim, discordaram em tudo, como sempre.

Eu, ouvindo aquele bate-boca, não sabia o que pensar. Uma hora achava que o Neves tinha razão e, na outra, dava a mão à palmatória pro China. Fui de um lado pro outro, que nem público em jogo de tênis. Como uma coisa puxa outra, lembrei de uma discussão quente do China com o Neves, no início de 2003, depois da estreia do Peixe na Libertadores. Aquele jogo em que o Robinho fez o time colombiano de gato e sapato. Com a garotada campeã brasileira, parecia que os anos dourados estavam de volta, para alegria da nossa torcida.

– Quem vivia criticando, dizendo que o Marcelo Teixeira só gosta de contratar medalhões, agora, tem de bater palmas pra ele. O presidente trabalhou em silêncio e o resultado está aí. Libertadores, mundial interclubes, vamos buscar todas as estrelas que Pelé e companhia ficaram devendo – disse o China, antecipando prazeres. Nem era indireta. Ele olhava bem nos olhos do Neves.

– Sai pra lá, China. Esse aí não fez nada. O que ele fez foi gastar o dinheiro que o Santos tinha e o que não tinha, com um monte de jogadores em fim de carreira. Quando a grana acabou, entregou o time ao Leão e rezou. Pra sorte dele e nossa, tinham sobrado o Diego, o Robinho e outros garotos bons de bola descobertos pela diretoria anterior – respondeu o Neves, com o rosto gordo mais vermelho que o normal.

Eu estou reproduzindo só o que me lembro e tirando as partes mais pesadas, porque logo os dois começaram a trocar ofensas. Estavam chegando às vias de fato quando, de repente, ouviu-se a voz do Nicácio, que parecia entretido com a leitura da Tribuna.

– Vocês dois estão falando bobagem. Se existe um grande responsável pelo aparecimento desses meninos, esse alguém é o Giovanni. É, o Giovanni, que fez aquela coisa ridícula de pintar o cabelo de vermelho, mas jogava muita bola.

Com o salão em silêncio, o velho continuou:

– O Marcelo nunca deu bola pras divisões de base. Tanto que desmontou o trabalho iniciado pelo Samir e pelo Pelé. O que ele queria era ganhar um título com jogadores de nome, como o pai dele fez em 1984.

– Robinho e Diego só puderam surgir no Santos por causa da construção do centro de treinamento ali do lado da Santa Casa. É claro que foram o Pelé e o Samir que construíram o CT. Mas com que dinheiro? Com o dinheiro da venda do Giovanni para o Barcelona.

Nesse momento, o velho já caminhava em direção à porta do salão. Antes de sair, porém, voltou-se de novo para o China.

– Em vez de ficar aí batendo boca, vocês deviam mais é agradecer ao Giovanni.

Negócios da bola (fim)

Tentativa de roteiro “baseado em fatos reais”, para série de TV. Os fatos que se seguem, datados de décadas atrás, envolvem um time de futebol e pessoas já mortas, cujos nomes foram modificados. Testemunhas ouvidas pelo autor narraram estas histórias, que nada são mais do que pura ficção e galhofa.

 Temporada 1, episódio 3

Saguão do aeroporto de uma capital do sul do país. Fininho, auxiliar técnico de Paco no comando do time de futebol, caminha de um lado para outro. Parece desorientado, enquanto espera pela chamada do voo que o levará de volta. Desorientado a ponto de, frustrada a primeira parte da missão, decidir voltar sem cumprir a segunda.

Dois dias antes.

Enquanto observam o treino coletivo dos titulares contra os reservas, Paco e Fininho conversam ao lado do campo. Paco fala ao assistente:

– Sabe aquele meia do time da fronteira, que a gente gostou? Pois é! Eles vão jogar domingo. Quero que você vá lá observar. Vê se vale a pena comprar.

– Claro, chefe! O cara parece ser muito bom. Aproveito e dou uma olhada no goleirinho, também.

– Ah, mas tem uma coisa que eu preciso que você faça pra mim.

– O quê? É só mandar.

– Lembra da nossa última viagem ao exterior? De lá de fora eu despachei um baú com algumas coisinhas. Pensei que ia pegar aqui, com o nosso pessoal da alfândega. Só que o avião fez escala no Sul e lá ficaram as bagagens desacompanhadas.

– Deu ruim, chefe?

– É, atrapalhou. Mas, tudo bem, vamos resolver isso. Falei com um amigo lá. Você chega no aeroporto, procura por ele, mostra este recibo e ele te ajuda a desembaraçar o baú. Na volta, uma perua do clube vai te buscar. Feito?

Dois dias depois.

Apesar do cansaço e do nervosismo, Fininho evita ficar parado. Olha para todos os lados para ver se alguém se aproxima. Sai do saguão e vai pro estacionamento em frente. Volta. Entra e sai do banheiro. Caminha de um lado ao outro do corredor dos balcões das companhias aéreas. Aguarda ansioso a chamada para embarque.

Só se acalma quando o avião começa a levantar voo. Mourão, o contato do Paco na alfândega do Sul, foi muito claro quando procurado. Disse que avisou o treinador para deixar a poeira baixar, porque o conteúdo do baú chamou a atenção do pessoal da Receita. Já tinham calculado a multa e estavam loucos para pegar o espertalhão que fosse buscar a muamba. Seria pagar ou passar alguns dias na cela da PF, ali mesmo.

– Se manda, porra. Não estou entendendo este encontro. O Paco ficou louco de te mandar aqui. Vaza. Pega o avião de volta. Se te pegarem, não diz que me conhece. Tchau, adeus…

A 10 mil metros de altura, Fininho só pensa em vingança. Filho da puta! Sabia no que estava me metendo e nem ligou. Paco filho da puta!

Negócios da bola (segunda parte)

Tentativa de roteiro “baseado em fatos reais”, para série de TV. Os fatos que se seguem, datados de décadas atrás, envolvem um time de futebol e pessoas já mortas, cujos nomes foram modificados. Testemunhas ouvidas pelo autor narraram estas histórias, que nada são mais do que ficção e galhofa.

 Temporada 1, episódio 2

Quarto de hotel cinco estrelas em cidade de um país alpino. O técnico Paco reúne o time para resolver um problema grave, que ameaça não só a reputação dos jogadores e do time, mas a do próprio país que representam. O clima é tenso.

Cinco horas antes.

O comércio local está fechado ao público por causa de um feriado nacional. A pedido da Embaixada, um alto funcionário de prestigiada joalheria abre a loja para atender o elenco e os dirigentes do clube. Armado da maior boa vontade, o rapaz destrava as estantes envidraçadas e coloca os mostruários de joias e relógios à disposição dos estrangeiros.

De volta ao hotel, o chefe da delegação recebe uma ligação da Embaixada. Uma joia valiosa havia sumido e a polícia só não será acionada se não for devolvida até aquela noite. O treinador é chamado para resolver rapidamente o problema, já que o escândalo seria enorme, caso vazasse. Paco diz “deixem comigo”, e chama o elenco para a reunião no quarto dele.

Agora, estão todos acomodados diante do técnico e de uma mesinha. Paco dirige-se aos jogadores no tom que a gravidade do momento exige:

– Um de vocês fez merda. Um puto de vocês pegou uma peça muito cara, colocou no bolso e saiu da joalheria sem pagar. Os caras descobriram e ameaçam avisar a polícia. Precisamos devolver a joia, caralho.

Suspense. Os jogadores se entreolham, tentando adivinhar quem foi capaz de fazer aquilo. O sentimento geral é de vergonha.

– Está claro que um de vocês pegou a joia. Mas não quero humilhar ninguém. Vou dar uma chance ao malandro. O (massagista) Marinho vai apagar as luzes e o filho da puta terá tempo de colocar a joia nesta mesa sem ser visto.

– Apague a luz, Marinho!

O silêncio só não é maior do que a escuridão do quarto. Ninguém percebe qualquer movimento, até que Paco autorize Marinho a acender a luz de novo.

Então, como num conto do detetive Hercule Poirot, espantosamente a joia brilha no meio da mesa. Paco elogia a honestidade dos jogadores e dispensa o grupo.

Com açúcar e com afeto

Da primeira vez que falei palavrão em casa, tinha 7 ou 8 anos de idade. Só repeti, me achando adulto pra caramba, uma frase que ouvi na escola: “O Dudu é fresco”. Ia rir da minha fala, quando levei uma chapuletada. Foi a única vez que o Bom Fonseca bateu em mim ou em qualquer dos outros nove filhos. O velho era todo carinho e só perdia as estribeiras quando azucrinávamos demais a vida da amada Bela Dolores, nossa mãe.

É claro que depois, na rua e em casa, eu iria descobrir legítimos e cabeludos palavrões, entre os quais um sinônimo para o inofensivo fresco da primeira bofetada. Mais sonoro e potente, perobo foi contribuição do Albano, leitor ávido, mano que abriu os horizontes do nosso vocabulário, inclusive o profano. Nessa época, já entoávamos o encantador refrão “um, dois, três, pau no cu do português!”, embora lusitanos fôssemos, os santistas e os Fonseca.

Dizia-se que eram palavras de baixo calão, mas hoje elas cabem no sermão do padre da querida paróquia de São Judas Tadeu, sem escandalizar os fiéis de tão ingênuas. Agora, existe arsenal mais pesado e devastador à disposição dos bocas sujas. Não, não falo das eruditas sentenças dos juízes da corte, um manancial incrível. Falo de outras palavras mas feias que as do Celso de Mello. Além dos palavrões tradicionais, que enriquecíamos com os impropérios da torcida da Burrinha em Ulrico Mursa, temos as expressões modificadas nos laboratórios da militância ideológica. Letais como vírus chinês.

Reacionário, retrógrado, fascista, palavras que moleque sadio do Marapé jamais usou, são afrontas que se dirigem a torto e a direito, muitas vezes sem que o autor da injúria e o próprio injuriado tenham noção do significado. Mas machucam e podem terminar em tragédia. Basta que de um lado esteja um pensamento, palavra de ordem ou orientação central e, do outro, o oposto disso, um adversário ou inimigo. Um membro da elite exploradora do povo.

Nos dias que correm, pesado mesmo é chamar alguém de bolsonarista, com justa ou nenhuma razão. Da mesma forma que, na resposta, os defensores reais ou supostos do ex-presidente condenado, preso e temporariamente solto são genericamente apodados de ladrões. Nas hostes da esquerda, recente contribuição da proveta linguística é “cancelamento”. Nesse processo, antigos e leais companheiros, com vasta contribuição às causas, sejam elas quais forem, são implacavelmente triturados. Apenas por terem sem querer elogiado o porte do cavalo montado há dias pelo “criador” da covid-19. Outra aberração é atribuir sentimentos de ódio a alguém. Ou melhor… veja bem… quer dizer…

A palavra ódio não teve o significado alterado, como tantas outras. Narrativa, por exemplo, tornou-se em geral sinônimo de ficção. História inventada, mentira, para falar mais claro. Fake news, para ser moderninho. Mas ódio não. Ódio continua sendo um sentimento reprovável, que rebaixa quem é tomado por ele, conformeos dicionários. O diferente é que atualmente se pode exprimir ódio profundo contra alguém, desejar-lhe a mais dolorosa das mortes, e não ser condenado moralmente por isso. Pois, depende. A quem essa ira incontida se dirige? Quem a expressa?

Pois é! Nossos cientistas sociais/colunistas da mídia conseguiram relativizar o ódio. Inventaram o ódio do bem, na linha dos criminosos em favor do interesse comum (diferentes dos reles batedores de carteira e, portanto, defensáveis), dos democratas do porrete ativo (os antigos vândalos, na versão de democracia mais aceita nas escolas progressistas atuais), da censura que jornalistas e intelectuais defendem, quando a livre expressão aprisionada é a dos outros.

Para os combatentes situados nas confortáveis e bem remuneradas trincheiras dos departamentos de ciências sociais das universidades públicas, o ódio está liberado, desde que empregado contra adversários políticos. O fim justifica o meio, como explicou um deles em coluna que, logo, servirá de forro para o xixi dos meus poodles. O ódio vale quando pode ajudar a mudar “tudo isso que está aí”, dizem, mesmo quando o “tudo isso que está aí” é um governo cujas propostas foram legitimadas pelo voto popular. Típico equívoco da democracia, lamentam.

Assim, por esse exercício admirável de pensamento político, é justo desejar a morte física de quem não se conseguiu bater nas urnas e que, lamentavelmente, o maluco incompetente não foi capaz de abater na faca. Por que esperar tanto pelo voto redentor, posto que incerto, como se viu em outubro de 2018? Não seria melhor antecipar a solução que o eleitor não vê a um palmo do nariz e poupá-lo dos males que o eleito já fez e ainda fará?

Um desses que remuneramos e pensa pior do que escreve nem se dá ao trabalho de teorizar e buscar fundamentos “científicos” para justificar a explosão de ódio. De tempos em tempos, nos espaços que lhe concedem gazetas desvairadas, ele ameaça com a revolução popular que, implora, virá desbancar as elites econômicas e políticas e entregar o poder aos cidadãos. Democracia direta, é o que diz querer, despreocupado de questões práticas como de que forma auscultar tantas pessoas sobre tudo. Preocupação que, de fato, não existe, pois a “manifestação popular”, ele sabe, está restrita e é exclusiva dos comitês amigos.

No grosso, as ideias que lança têm pelo menos dois séculos de atraso, mas o doutor está certo de que representam o futuro. Um dia, provavelmente vingarão. Ele imagina, como muitos dos camaradas, que viram no PCC uma aposta interessante e acreditou nos black blocs e nos caminhoneiros em greve, que se diziam dispostos a afundar o país. Tais frustrações, no entanto, são sempre compensadas pela certeza de que um dia os sem terra e os sem teto de Stedile e Boulos cumprirão a ameaça dos líderes e atearão fogo no país.

Com muito afeto e plenos de ódio bondoso no coração.

Negócios da bola (primeira parte)

Tentativa de roteiro “baseado em fatos reais”, para série de TV. Os fatos que se seguem, datados de décadas atrás, envolvem um time de futebol e pessoas já mortas, cujos nomes foram modificados. Testemunhas ouvidas pelo autor narraram estas histórias, que nada são mais do que pura ficção e galhofa.

 Temporada 1, episódio 1

Quarto de hotel cinco estrelas em uma capital sul-americana. Paco, o treinador do time, interfona para o massagista Marinho.

– Você comprou um “3 em 1” em Nova York, não foi? Quanto pagou? Ainda está com ele?

– Sim, chefe. Paguei 100 dólares.

– Então, vem aqui. E traz o aparelho, que eu quero comprar.

Paco explica ao massagista que estava encrencado com um freguês, a quem havia prometido vender uma daquelas maravilhas. Trouxera cinco dos EUA, mas naquela manhã outros compradores apareceram e levaram todos.

Naquele tempo, quem viajava para o exterior trazia na bagarem alguma bebida, cigarros, perfumes, lenços de seda, suéteres de cashmere inglês, relógios e brinquedos elétricos. Esses produtos ficavam mais baratos quando comprados livre de impostos nas zonas francas de Lima e da Cidade do Panamá, escalas das viagens entre o Sul e o Norte do continente.

Na América do Sul, o que podia ser comprado em um país para ser vendido em outro era algumas roupas de lã no Peru e na Bolívia, cashmere de padrão inferior na Argentina, também produtora de um bronzeador, o Rayito de Sol, muito apreciado nas praias e piscinas brasileiras. Havia também alguma bebida, como o rum e o pisco, que podia interessar nas vizinhanças. Nas andanças do time pelo continente, Paco estudava bem o roteiro e avaliava os negócios possíveis.

Sonhos de consumo de maior valor agregado eram pequena TV de cinco polegadas, ainda em preto e branco, e um auto rádio chamado GoldStar, de seis válvulas, além do recém lançado “3 em 1”, equipamento que reunia toca discos, rádio e gravador de fita cassete numa só peça. Era de uma dessas novidades que o treinador precisava para não deixar o freguês na mão.

No quarto do chefe, Marinho encontra o comprador à espera. Sem ação, acompanha a rápida sequência da história. O sujeito passa 150 dólares em dinheiro para Paco, que entrega a encomenda ao novo dono. Em seguida, Paco coloca uma nota de 50 dólares no bolso e paga o subordinado com os outros 100.

– Tudo certo? Obrigado, Marinho!