Com açúcar e com afeto

Da primeira vez que falei palavrão em casa, tinha 7 ou 8 anos de idade. Só repeti, me achando adulto pra caramba, uma frase que ouvi na escola: “O Dudu é fresco”. Ia rir da minha fala, quando levei uma chapuletada. Foi a única vez que o Bom Fonseca bateu em mim ou em qualquer dos outros nove filhos. O velho era todo carinho e só perdia as estribeiras quando azucrinávamos demais a vida da amada Bela Dolores, nossa mãe.

É claro que depois, na rua e em casa, eu iria descobrir legítimos e cabeludos palavrões, entre os quais um sinônimo para o inofensivo fresco da primeira bofetada. Mais sonoro e potente, perobo foi contribuição do Albano, leitor ávido, mano que abriu os horizontes do nosso vocabulário, inclusive o profano. Nessa época, já entoávamos o encantador refrão “um, dois, três, pau no cu do português!”, embora lusitanos fôssemos, os santistas e os Fonseca.

Dizia-se que eram palavras de baixo calão, mas hoje elas cabem no sermão do padre da querida paróquia de São Judas Tadeu, sem escandalizar os fiéis de tão ingênuas. Agora, existe arsenal mais pesado e devastador à disposição dos bocas sujas. Não, não falo das eruditas sentenças dos juízes da corte, um manancial incrível. Falo de outras palavras mas feias que as do Celso de Mello. Além dos palavrões tradicionais, que enriquecíamos com os impropérios da torcida da Burrinha em Ulrico Mursa, temos as expressões modificadas nos laboratórios da militância ideológica. Letais como vírus chinês.

Reacionário, retrógrado, fascista, palavras que moleque sadio do Marapé jamais usou, são afrontas que se dirigem a torto e a direito, muitas vezes sem que o autor da injúria e o próprio injuriado tenham noção do significado. Mas machucam e podem terminar em tragédia. Basta que de um lado esteja um pensamento, palavra de ordem ou orientação central e, do outro, o oposto disso, um adversário ou inimigo. Um membro da elite exploradora do povo.

Nos dias que correm, pesado mesmo é chamar alguém de bolsonarista, com justa ou nenhuma razão. Da mesma forma que, na resposta, os defensores reais ou supostos do ex-presidente condenado, preso e temporariamente solto são genericamente apodados de ladrões. Nas hostes da esquerda, recente contribuição da proveta linguística é “cancelamento”. Nesse processo, antigos e leais companheiros, com vasta contribuição às causas, sejam elas quais forem, são implacavelmente triturados. Apenas por terem sem querer elogiado o porte do cavalo montado há dias pelo “criador” da covid-19. Outra aberração é atribuir sentimentos de ódio a alguém. Ou melhor… veja bem… quer dizer…

A palavra ódio não teve o significado alterado, como tantas outras. Narrativa, por exemplo, tornou-se em geral sinônimo de ficção. História inventada, mentira, para falar mais claro. Fake news, para ser moderninho. Mas ódio não. Ódio continua sendo um sentimento reprovável, que rebaixa quem é tomado por ele, conformeos dicionários. O diferente é que atualmente se pode exprimir ódio profundo contra alguém, desejar-lhe a mais dolorosa das mortes, e não ser condenado moralmente por isso. Pois, depende. A quem essa ira incontida se dirige? Quem a expressa?

Pois é! Nossos cientistas sociais/colunistas da mídia conseguiram relativizar o ódio. Inventaram o ódio do bem, na linha dos criminosos em favor do interesse comum (diferentes dos reles batedores de carteira e, portanto, defensáveis), dos democratas do porrete ativo (os antigos vândalos, na versão de democracia mais aceita nas escolas progressistas atuais), da censura que jornalistas e intelectuais defendem, quando a livre expressão aprisionada é a dos outros.

Para os combatentes situados nas confortáveis e bem remuneradas trincheiras dos departamentos de ciências sociais das universidades públicas, o ódio está liberado, desde que empregado contra adversários políticos. O fim justifica o meio, como explicou um deles em coluna que, logo, servirá de forro para o xixi dos meus poodles. O ódio vale quando pode ajudar a mudar “tudo isso que está aí”, dizem, mesmo quando o “tudo isso que está aí” é um governo cujas propostas foram legitimadas pelo voto popular. Típico equívoco da democracia, lamentam.

Assim, por esse exercício admirável de pensamento político, é justo desejar a morte física de quem não se conseguiu bater nas urnas e que, lamentavelmente, o maluco incompetente não foi capaz de abater na faca. Por que esperar tanto pelo voto redentor, posto que incerto, como se viu em outubro de 2018? Não seria melhor antecipar a solução que o eleitor não vê a um palmo do nariz e poupá-lo dos males que o eleito já fez e ainda fará?

Um desses que remuneramos e pensa pior do que escreve nem se dá ao trabalho de teorizar e buscar fundamentos “científicos” para justificar a explosão de ódio. De tempos em tempos, nos espaços que lhe concedem gazetas desvairadas, ele ameaça com a revolução popular que, implora, virá desbancar as elites econômicas e políticas e entregar o poder aos cidadãos. Democracia direta, é o que diz querer, despreocupado de questões práticas como de que forma auscultar tantas pessoas sobre tudo. Preocupação que, de fato, não existe, pois a “manifestação popular”, ele sabe, está restrita e é exclusiva dos comitês amigos.

No grosso, as ideias que lança têm pelo menos dois séculos de atraso, mas o doutor está certo de que representam o futuro. Um dia, provavelmente vingarão. Ele imagina, como muitos dos camaradas, que viram no PCC uma aposta interessante e acreditou nos black blocs e nos caminhoneiros em greve, que se diziam dispostos a afundar o país. Tais frustrações, no entanto, são sempre compensadas pela certeza de que um dia os sem terra e os sem teto de Stedile e Boulos cumprirão a ameaça dos líderes e atearão fogo no país.

Com muito afeto e plenos de ódio bondoso no coração.

Publicado por

Marcão

Jornalista aposentado, casado, duas filhas, um neto, dois poodles e nove irmãos. Santista de mãe, pai, cidade, time e o que mais bem qualifique essa condição. Sem vaidade, só verdade!

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