Outra façanha de Giovanni. Ele nos deu Diego e Robinho

Como nossos dias não são apenas de recolhimento, por causa da pandemia, mas também de muita reprise na grade de programação das emissoras de TV, aproveito para repostar uma ficção escrita originalmente para a seção Tesoura Afiada, que mantive no Portal do Santista Roxo, na primeira década deste século. Era o relato de um certo Argemiro da Veiga, oficial de barbearia, salão montado no Macuco, junto ao cais, com base em devaneios do freguês Nicácio Pinto. Qualquer semelhança com pessoas e fatos reais é, portanto, só coincidência. Neste texto, Nicácio faz uma reverência ao craque Giovanni.

De terça pra cá, Nicácio não apareceu no salão. “Está de molho, com um princípio de gripe”, explicou a Izilda, que veio pegar o jornal emprestado. Por isso, fiquei meio sem assunto e resolvi recordar uma história envolvendo a dispensa do Giovanni, o Messias, do Santos, em 2006. Foi o dia em que o China e o Neves, meus fregueses, quase se pegaram. China ficou a favor da dispensa e o Neves, contra.

O China achava que a decisão tinha sido do Luxemburgo e o Neves culpava o presidente Marcelo Teixeira. O China dizia que o Giovanni nem deveria ter voltado, porque não ganhou nada com o Peixe, e o Neves não se esquecia de 1995, “quando a gente voltou a andar de cabeça erguida, graças a ele”. Enfim, discordaram em tudo, como sempre.

Eu, ouvindo aquele bate-boca, não sabia o que pensar. Uma hora achava que o Neves tinha razão e, na outra, dava a mão à palmatória pro China. Fui de um lado pro outro, que nem público em jogo de tênis. Como uma coisa puxa outra, lembrei de uma discussão quente do China com o Neves, no início de 2003, depois da estreia do Peixe na Libertadores. Aquele jogo em que o Robinho fez o time colombiano de gato e sapato. Com a garotada campeã brasileira, parecia que os anos dourados estavam de volta, para alegria da nossa torcida.

– Quem vivia criticando, dizendo que o Marcelo Teixeira só gosta de contratar medalhões, agora, tem de bater palmas pra ele. O presidente trabalhou em silêncio e o resultado está aí. Libertadores, mundial interclubes, vamos buscar todas as estrelas que Pelé e companhia ficaram devendo – disse o China, antecipando prazeres. Nem era indireta. Ele olhava bem nos olhos do Neves.

– Sai pra lá, China. Esse aí não fez nada. O que ele fez foi gastar o dinheiro que o Santos tinha e o que não tinha, com um monte de jogadores em fim de carreira. Quando a grana acabou, entregou o time ao Leão e rezou. Pra sorte dele e nossa, tinham sobrado o Diego, o Robinho e outros garotos bons de bola descobertos pela diretoria anterior – respondeu o Neves, com o rosto gordo mais vermelho que o normal.

Eu estou reproduzindo só o que me lembro e tirando as partes mais pesadas, porque logo os dois começaram a trocar ofensas. Estavam chegando às vias de fato quando, de repente, ouviu-se a voz do Nicácio, que parecia entretido com a leitura da Tribuna.

– Vocês dois estão falando bobagem. Se existe um grande responsável pelo aparecimento desses meninos, esse alguém é o Giovanni. É, o Giovanni, que fez aquela coisa ridícula de pintar o cabelo de vermelho, mas jogava muita bola.

Com o salão em silêncio, o velho continuou:

– O Marcelo nunca deu bola pras divisões de base. Tanto que desmontou o trabalho iniciado pelo Samir e pelo Pelé. O que ele queria era ganhar um título com jogadores de nome, como o pai dele fez em 1984.

– Robinho e Diego só puderam surgir no Santos por causa da construção do centro de treinamento ali do lado da Santa Casa. É claro que foram o Pelé e o Samir que construíram o CT. Mas com que dinheiro? Com o dinheiro da venda do Giovanni para o Barcelona.

Nesse momento, o velho já caminhava em direção à porta do salão. Antes de sair, porém, voltou-se de novo para o China.

– Em vez de ficar aí batendo boca, vocês deviam mais é agradecer ao Giovanni.

Adeus, querido!

(Leitura para este tempo de dores e despedidas)

O rosto caiu para o lado contrário da janela e ele se foi sem qualquer outro sinal. Nenhum ruído ou súbito silêncio. Nada. Apenas a falta de movimento sob o lençol. Há tempos que a respiração fraca mal se percebia e não havia lamento. Só o rosto sereno, menos carrancudo, já que os sulcos na testa ampla haviam desaparecido. Ficava mais bonito sem as marcas produzidas pela contração da face, tentativa de compensar as dificuldades de visão e os problemas com as lentes de contato. O esforço havia se tornado desnecessário desde que os olhos, também dispensáveis, se fecharam e assim permaneceram – isso há um mês e meio, um pouco mais –, cumprindo outra etapa do fim.

Foi melhor assim, porque me afligiam suas mudas indagações, quando se fixavam em algum ponto aquém da parede, além do lençol, e em mim principalmente. O passeio eventual das órbitas opacas pelo quarto era, então, o grande acontecimento do dia e me colocava em estado de alerta. Nesses instantes, porque achava que seria necessário entrar em ação ou só para controlar a tristeza, eu falava alguma coisa sem importância sobre o tempo, dava notícias de alguém ou fazia perguntas bobas – quer que abra a persiana? –, sabendo que não haveria respostas e que elas, de toda forma, eram inúteis.

Felizmente, tinham se acabado as inspeções do mundo que lhe restara: o quarto, eu e, vez por outra, um personagem qualquer de branco. Do meu ponto de vista, o quarto e ele, com o horizonte estendido nas conversas de corredor sobre providências que podiam ser adiantadas e nas idas ao restaurante do terceiro andar, para o café seguido do cigarro. No limite, ele e eu, porque nem de cenário servia mais o espaço físico em que nos despedíamos a cada dia. Nas últimas semanas, tampouco isso. Só o tempo passando, das noites para as manhãs, depois as tardes, indiferente à chuva ou ao sol, à claridade do dia e ao silêncio quase absoluto das madrugadas.

Quando aqui chegamos e ainda fazíamos planos para os anos que estavam por vir, tudo atraía a nossa curiosidade. Brincávamos com os controles da cama, observávamos o gotejar dos remédios pelos tubos transparentes, descobríamos do que eram feitas as tardes na televisão. Depois, quando ele parou de andar e se imobilizou na cama, pedia-me que ficasse junto à janela e descrevesse o movimento na rua, divertindo-se com o relato que eu fazia das pessoas que passavam e com as histórias que, a partir delas, eu ia inventando.

Às vezes, invertia o jogo. Ele criava os personagens e eu só tinha que encontrá-los a partir de meu ângulo de visão, fazendo pequenos ajustes quanto à cor de um detalhe qualquer da roupa ou ao corte do cabelo. Se o retoque alterava demais o tipo imaginado – “não me parece tão alto esse seu coronel, senhor, a julgar pelo rápido movimento das perninhas, as quais mal conseguem movê-lo” –, ele fingia enfurecer-se e fazia observações sobre a incapacidade das mulheres de enxergar um pouco mais do que as aparências. Voltavam, então, as antigas provocações, no seu jeito de referir-se a mim falando das mulheres em geral, temendo uma conversa direta que nos levasse afinal ao ponto. A um ponto nunca proposto e ao qual nunca teríamos coragem de chegar.

 

Sempre foi assim e assim foi até o último dia em que nos falamos. Veio depois o tempo em que só eu falava, tentando adivinhar necessidades ou desejos, e em que as janelas foram se fechando, para que a penumbra se antecipasse ao silêncio do quarto. Depois, o olhar também se apagou, tornando indiferentes a claridade e os ruídos e ainda assim me levando a tornar mais discreta a minha presença. Entrava e saía com cuidado, jogava toda a luz sobre o livro e relia os mesmos trechos só para evitar o sobressalto de virar a página. Sentia mais do que observava aquele fim de vida.

Agora, nem isso. E o pior é que a imobilidade do lençol não funcionava como a senha de tudo o que eu tinha programado fazer a partir daquele instante. Só me ocorreu levantar e contemplar, da distância do pé da cama à cabeceira, o rosto querido. Não sei quanto tempo se passou até que a ajudante de enfermagem entrasse – “nossa, moça, meus pêsames” – e eu me afastasse na direção da janela. Para esconder as lágrimas ou dissimular a falta delas. Pelas frestas, olhei a rua pela última vez do ângulo do quarto, quase me vendo passar ao lado das pessoas, novamente como elas. Talvez sendo observada de outra janela, por outra testemunha de outro fim.

Os funcionários entraram e me explicaram que poderia deixar tudo por conta do hospital. Eles acionariam a funerária, avisariam os parentes e amigos, cuidariam do anúncio nos jornais. Eu só precisava ir para casa e esperar, mas demorei-me um pouco rearranjando as roupas dele na pequena valise, há tempos preparada para a volta sem o dono. Ficariam apenas o terno azul marinho com a camisa branca, a gravata de listras em tons bordô, os sapatos e as meias pretas, que ele usaria na despedida.

O blazer cinza guardei para mim, para usá-lo como manta nas noites mais frias, ouvindo as músicas de que ele gostava e lendo os livros que ele me deu.