Perto do fim do ano de 1957, olhando o cais santista da amurada de um navio de passagem para a Europa, o poeta faz um verso casual. “Dizem que Pelé joga muito. Será verdade?” – pergunta o chileno. Pablo Neruda estava a mais ou menos quatro ou cinco quilômetros distante da Vila Belmiro, onde Pelé talvez treinasse com o Santos.
O verso-indagação fazia sentido para o forasteiro chegado do outro lado do continente, da beira do outro oceano. Ele queria saber de um jogador que completara 17 anos por aqueles dias e sequer jogara fora do país. Mas que, meses antes, ainda aos 16, marcara dois gols contra a Argentina e fizera o Brasil ganhar a Copa Rocca, em jogos no Rio e em São Paulo.
O Rei Menino, no templo da Vila Belmiro, em Santos
A molecada do Marapé e adjacências também não conhecia Neruda, nunca ouvira falar, mas sabia que Pelé era o Rei do Futebol. O Marapé, pra quem não sabe, é o bairro-estado que possui um balneário (a praia do José Menino), sua própria cordilheira (que vai do morro de Santa Terezinha ao Monte Serrat da Padroeira) e o Vaticano ou a Meca do futebol, que é a Vila Belmiro. Não há nada igual no mundo.
Territorialmente, o Marapé estende-se, de sul a norte, da Ilha Comprida a Paraty, já ultrapassando a divisa com o Rio de Janeiro. Isso correspondia também aos domínios do Bom Fonseca e da Bela Dolores, cuja união o Peixe e Pelé ajudaram a tornar mais feliz e abençoada. O que pode ser melhor do que nascer em Santos, ter o melhor time do mundo para torcer e um Rei menino para cortejar (como o infante que, décadas antes, o santista José Bonifácio pajeou)? Pois era assim, poeta, que se sentiam os dez fonsequinhas, alguns ainda por nascer! E foi ali que alguém muito poderoso escolheu para depositar tanta bênção.
Nos anos seguintes, Neruda teria as suas respostas. Algumas dadas em sua própria terra, no palco do Estácio Nacional de Santiago do Chile, nos recitais que o Santos de Pelé ofereceu aos chilenos. O estádio que depois serviu de cárcere para os adversário da ditadura militar. Estádio que mais tarde o próprio Peixe exorcizaria, já sem Pelé, ao massacrar por 5 a 0 a seleção de Pinochet, diante do ditador, na comemoração da classificação espúria do país para a Copa do Mundo.
Com um admirador, no Estádio Nacional do Chile
Numa das passagens de Pelé pelo Chile, eu estava junto. Foi no início de 1970, quando o Santos ganhou mais um torneio internacional, meses antes do tri da seleção no México. Na viagem com o maior time de todos os tempos, achei legal o Rei me acolher. Ele disse que eu parecia ter um pé na cozinha. A voz do pastor King ainda se ouvia forte e a negritude estava em alta no mundo, com Ali, Ella, Marley e os Panteras. E aqui, com Cartola, Elza, Simonal, os livros de Machado de Assis e a maioria negra daquele time inesquecível!
Por essas histórias e as outras que você viria a conhecer com mais detalhes, poeta, nunca mais foi necessário perguntar se é verdade que Pelé joga muito. Ele joga mais ainda. Por isso é Rei. Eterno Rei!