A compra do cassino foi um erro. Mas Nicácio não condena o turco

Esta é uma ficção. Relato de Argemiro da Veiga, oficial de barbearia, salão montado no Macuco, junto ao cais, com base em devaneios do freguês Nicácio. Qualquer semelhança com pessoas e fatos reais é coincidência

Para o velho Nicácio, a compra do hotel-cassino foi um divisor de águas na história do clube. De vez em quando, comentando algum fato atual, o portuário aposentado lembra daquele passo errado e suas conclusões, como sempre, ficam muito além da minha capacidade de entender as coisas.

Não há dúvida de que, na opinião do velho, o negócio foi uma das maiores besteiras já feitas. E ele não vacila em apontar o responsável pelo “tresloucado gesto”: o presidente do clube na época.

O que não entra na minha cabeça é que, com tudo isso, o meu amigo garanta que esse é o melhor presidente que já tivemos. Na verdade, a admiração nunca foi abalada. “É preciso entender os homens, Argemiro. Ele teve um motivo que eu respeito para fazer o que fez.”

Foi nesse dia que o Nicácio me falou da paixão que o antigo presidente teria alimentado por uma primeira-dama do país. Segundo o velho, o turco nunca falou disso com ninguém e nem teve como levar o romance adiante. Seria risco de vida para ele.

“O general-ditador pertencia à linha dura e o nosso presidente era também deputado da oposição. Diante da mínima desconfiança, o turco iria parar no forte do coronel feroz ou no Raul Soares. Lembra do Raul Soares, Miro? De quanto preso sofreu lá, sem saber por quê?”

Eu era garoto naquele tempo, mas às vezes ia até a faixa do cais com um tio da Polícia Marítima e via o navio-prisão fundeado no meio do canal do porto. Sabia o que estava acontecendo em Santos e no país, porque ouvia as conversas dos adultos e passava por muros pichados com nomes de sindicalista, político, estudante: “Fulano é comunista”.

A moda era dedurar. Um nome que ficou gravado na minha cabeça: “Manente é comunista”, li numa parede. Esse Manente era jornalista.


Parque Balneário, hotel-cassino
semelhante ao desta história

O clube não comprou o imóvel para entrar no ramo hoteleiro. Queria era explorar o famoso cassino após a reabertura do jogo. Dizia-se que era questão de tempo, porque a primeira-dama defendia a liberação. Mas a igreja foi contra, a ditadura não quis comprar mais essa briga com os padres, e o Peixe ficou com o mico.

É uma história interessante, que explica o começo da decadência do clube. Mas minha imaginação não vê nela a comprovação de um amor.

“Pense junto comigo, Miro. O cara deu certo em tudo. Jogador de futebol, foi um grande goleiro. Cartola, o time não teve outro igual. Político, ganhou todas as eleições que disputou. Moço, era um rapaz bonito. Homem feito, não houve alguém mais distinto. Fino, elegante, rico e sedutor. As mulheres não resistiam. Teve uma cantora famosa que, dizem, tentou o suicídio por causa dele. Mas fracassou no amor. Sabe por que? Porque seu grande amor, único de uma vida, o verdadeiro – esse amor foi impossível.”

Foi uma de nossas conversas mais longas. E, se querem saber, foi também a mais emocionante. Fiquei feliz de ver o amigo, enternecido, falando bem de alguém, ele que em geral só falava mal.

“O turco costumava dizer que no seu coração só cabia o clube. Mas eu sei que houve outra grande paixão. Ele teria dado metade do passe do Rei para conduzi-la pelo menos uma noite ao imenso salão dourado. Junto dela, suspenderia a respiração enquanto os dados rolassem no pano verde. Apertaria levemente os amados ombros na virada das cartas e ousaria até mais, durante o giro da roleta. Provocador, fixaria o olhar despudorado no generoso decote. Que homem poderá condená-lo por isso, Miro?”

Quando o velho pisava a calçada, o fim da conversa não era para ser ouvido. “Eu sei como são essas coisas, amigo. Também estive a ponto de fazer loucura por uma mulher!”

Publicado por

Marcão

Jornalista aposentado, casado, duas filhas, um neto, dois poodles e nove irmãos. Santista de mãe, pai, cidade, time e o que mais bem qualifique essa condição. Sem vaidade, só verdade!

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