Conversa ao pé do Monte Megido*

“Ele prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o diabo, Satanás, e o acorrentou por mil anos. Lançou-o no abismo, fechou-o e pôs um selo sobre ele, para assim impedi-lo de enganar as nações, até que terminassem os mil anos. Depois disso, é necessário que ele seja solto por um pouco de tempo.” Apocalipse 20:1-3

O senhor de meia idade, atarracado e acima do peso, aproximou-se do homem que parecia comandar os trabalhos.
– Tem alguma coisa para eu fazer por aqui?
Calçava sapatos italianos de bico fino, impróprios para aquele chão, e as roupas ostentavam marcas que a crise depreciou e fez desaparecer. O agricultor não deixou de reparar nos modos afetados do homem. No desconforto e no pouco jeito com que se movia por ali.
– O senhor não é o doutor Alfredo, que tem casa nas terras do outro lado do rio? Veio a pé? É uma caminhada e tanto!
Alfredo incomodou-se por ser reconhecido, mas não teve como negar. Disse que havia conseguido manter a propriedade, onde agora morava com a família. Fora levado a isso ao perder todas as posses e atividades rendosas que tinha na capital: a advocacia privada e um bem remunerado cargo público, que lhe valia participação em dois conselhos de administração de empresas estatais.
Os imóveis foram vendidos a preço de banana, as aplicações no mercado financeiro derreteram e pouco restava das reservas em ouro e moeda estrangeira com algum valor. Logo, não haveria de onde tirar o sustento.
– Pode me chamar de Alfredo, sem doutor. Mas me diga senhor… senhor… Desculpe, esqueci seu nome.
– Antônio Ricci, ao seu dispor, mas não faça cerimônia. Pode me chamar de Tonhão, como todos.
O agricultor voltou a avaliar o homem que havia sido importante, admirado e temido na região. Pensou nas voltas que o mundo dá. Conhecia histórias de famílias que perderam tudo na pandemia. Na verdade, todas que tinham o que perder. Sabia das mudanças que abalaram o mundo sobrevivente da doença, mas via pela primeira vez, à sua frente, em carne e osso, um efeito da tragédia global.
– Preciso esclarecer algumas coisas, senhor Alfredo. Pode não parecer, mas não sou dono deste lugar nem chefe de ninguém. Apenas ajudo a organizar os serviços, porque fui capataz de fazenda e tenho experiência. Mas também pego no pesado, para fazer jus à cota semanal de comida, proporcional ao tamanho da minha família. De forma que todos aqui ganham igual.
Tonhão explicou mais. Do jeito dele, disse que ali não há departamento de recursos humanos. As pessoas chegam, escolhem um canto para erguer a casa e, imediatamente, passam a ajudar na produção. Cada um tem mais talento para certas tarefas, é claro. Alguns sabem abrir e preparar um roçado, outros têm mãos boas para semear ou são mais rápidos na colheita, e assim por diante. Quem chegou com porco, vaca e galinha passou a cuidar da produção comunitária de carne, leite e ovos.
– De modo que o senhor pode escolher uma ferramenta ali e se juntar a nós. Não tem burocracia, registro em carteira, nem se exige diploma. Cada um faz o que sabe. O que o amigo sabe fazer?
Alfredo notou a ironia, mas esperava a pergunta.
– Não penso num cargo muito elevado, que corresponda às minhas qualificações. Posso cuidar da contabilidade, produzir relatórios de produção, fazer análises de mercado, indicar rumos. Coisas assim. Posso trabalhar de casa mesmo e vir aqui de vez em quando.
O agricultor ouviu em silencia e em silêncio ficou por um tempo. Isso animou Alfredo a avançar em suas ideias para o negócio. Aliás, ele via até o horizonte daquelas terras grandes oportunidades de negócio, como diziam os amigos. Aproveitou a brecha e foi em frente:
– Minha filha, a Belinha, é formada em propaganda e marketing. É muito criativa. Trabalhou nas maiores agências. Pode ajudar a criar uma marca e fortalecer a imagem da produção. Vai ser um sucesso.
– Quem sou eu para contrariar o senhor, seu Alfredo, um homem tão vivido e tão bem sucedido. Não duvido da importância disso aí que o senhor está falando, mas, por enquanto, o que precisamos é produzir mais. Garantir a alimentação da nossa gente e ter sobras para a central do sistema. Eles vêm buscar nossa comida e deixam tecidos, remédios e outros artigos que não fazemos. É o velho e bom escambo.
Alfredo tremeu, mas pensou que ainda podia escapar daquele destino. Nunca se imaginou pondo a mão na terra, desde quando era levado pelos pais ao balneário do litoral norte e brincava de fazer castelos de areia na praia. Agradeceu, despediu-se com um aperto de mão e a promessa de voltar depois de conversar com família. Distante alguns metros, ainda ouviu:
– Vai com Deus, seu Alfredo! Se entre os desempregados da sua empresa houver interessados, pode mandar para cá. Precisamos de mão-de-obra.
O caminho de casa pareceu mais longo e cansativo. Mais do que os pés, doía a alma. É inadmissível essa mudança de ordem. Como aceitar que a pirâmide secular tenha se invertido tanto em tão poucos meses? E o que pensar da perda total de referências e valores? Quer dizer, então, que agora um capiau de poucos estudos se dá ao desplante de desprezá-lo daquele jeito!
Deve ter sobrado algum lugar para as pessoas de fino trato. Um reduto onde ainda se aprecie um bom vinho, uma tela de Van Gogh, uma sinfonia de Beethoven, um prato elaborado, um texto de Pessoa, uma cidade como Paris. Não é possível que todo o gênio humano, da Grécia antiga ao time do Santos, tenha se perdido de ontem pra hoje.
Não é possível que eu, Alfredo, virei descartável!

* Lugar em que, de acordo com estudiosos da Bíblia, se dará o fim do mundo, o armagedom.

Publicado por

Marcão

Jornalista aposentado, casado, duas filhas, um neto, dois poodles e nove irmãos. Santista de mãe, pai, cidade, time e o que mais bem qualifique essa condição. Sem vaidade, só verdade!

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