Há 63 anos, Elvis conheceu Lenny

Noite destas, assisti ao documentário sobre Leny Eversong (“Leny, a fabulosa”, de Ney Inácio), num canal da TV por assinatura. Reencontrei-me assim com a cantora santista que foi sucesso mundial, nos anos 1950/1960, mas não é valorizada por aqui. A fama internacional aconteceu na minha meninice. Leny cantava em inglês, espanhol, italiano e francês.

Quando foi para os Estados Unidos, era criticada no Brasil por causa do repertório internacional. Mesmo assim, desde o início dos anos 1950 já havia gravado Lupicínio, Adoniran e Tom Jobim. Em janeiro de 1957, depois de shows em Las Vegas, Paris e Nova York, participou do programa de TV de Ed Sullivan (rede CBS), ao lado do jovem Elvis Presley.

Nos Estados Unidos, suas plateias incluíam Count Basie, Frank Sinatra e Sammy Davis Jr. Em determinado momento, vejam só, foi considerada a melhor cantora dos EUA. Era comparada a Billie Holiday pela crítica local.

Confesso que também não me liguei muito na carreira da cantora santista. Mesmo quando ela voltou ao Brasil, morrendo de saudades daqui e desejando ficar ao lado do marido, que não a acompanhou nas temporadas norte-americanas. Vi alguma coisa de suas apresentações na TV brasileira, mas desconheci totalmente o drama que ela vivia.

O Brasil estava sob a ditadura militar. Entre o fim dos anos 1960 e o início dos 1970, o marido Francisco Luís Campos Soares da Silva desapareceu (teria sido sequestrado) e nunca mais se soube dele. Leny adoeceu, abandonou a carreira e aproveitou as últimas aparições na TV para pedir publicamente informações sobre Francisco.

O marido foi considerado desaparecido, o que a impediu de usufruir suas posses. Era casada em regime de comunhão universal de bens e, pelas leis da época, tudo o que tinha ficou bloqueado. Quando o dinheiro acabou, vendeu troféus e foi viver na casa de amigos. Anos depois, legistas teriam identificado Francisco junto às ossadas de quatro sindicalistas.

Este texto não pretende fazer a biografia, nem mesmo traçar um perfil de Leny Eversong. É só a lembrança de uma artista que teve seus anos de glória e acabou esquecida. Hilda Campos Soares da Silva, seu nome verdadeiro, nasceu no dia 1º de setembro de 1920, em Santos, onde começou cantando na Rádio Clube, aos 12 anos de idade. Morreu de diabetes em São Paulo em 29 de abril de 1984. Tinha só 64 anos.

O fim do Jornal da República e de uma época do jornalismo

Há quarenta anos, na noite deste dia, fechamos a edição de 8 de janeiro de 1980 do Jornal da República e fomos para o Spazio Pirandelo, restaurante que Vladimir Soares e Antonio Maschio inauguravam num casarão da Rua Augusta. O jornal agonizava, mas vivíamos o verão da anistia, como dizia Nirlando Beirão. O retornado Gabeira desfilava por Ipanema sua sunga de crochê, e a época era de festas. Fomos, portanto, para a festa, que Vlad e Maschio sabiam fazer como ninguém.

Duas semanas depois, na terça-feira 22 de janeiro, circulou a edição final, com um até breve em editorial otimista de Mino Carta. O jornal estaria apenas dando um tempo, e voltaria mais forte. Reconhecido pelas notáveis criações da revista Quatro Rodas e do Jornal da Tarde, Mino não admitiu o equívoco. O Jornal da República não durou cinco meses.

Como comparação, lançado em 4 de janeiro de 1966, o Jornal da Tarde estreou com um furo mundial: Pelé casa no carnaval, dizia a manchete de capa. Possivelmente formado pela mais competente redação brasileira da época, o Jornal da República não teve nada melhor do que uma geladíssima matéria sobre os estertores da carreira de Mané Garrincha para sua capa de 27 de agosto de 1979. O fracasso se anunciava de cara.

Formada em boa parte por demitidos do pós-greve de maio de 1979, a equipe de jornalistas não ficou ao relento. Parte foi absorvida pela revista IstoÉ, do grupo proprietário do jornal, e parte arranjou colocação em outras redações. Eu mesmo saí direto para a Praça Marechal Deodoro, indicado por Raul Bastos e contratado por Valdir Zwetsch, para ocupar vaga de editor de texto no Bom Dia, São Paulo!

Apesar de tudo, entendo que o fechamento do Jornal da República representou o ocaso de uma das melhores fases do jornalismo paulista, iniciada com a resistência à ditadura militar, que uniu alguns empresários da comunicação e redações submetidas a presença física de censores, e reforçada pelo aparecimento de uma combativa imprensa alternativa. Também contribuiu fortemente para precipitar o fim dessa era a reação desproporcional dos patrões diante da greve dos jornalistas. As demissões debilitaram o sindicato e levaram os jornalistas de maior prestígio a procurar soluções individuais para suas carreiras.

Ano Bom!

A passagem do ano era a grande data do calendário do nosso pai. Desde o chalé de dois cômodos de madeira do Marapé, início das minhas lembranças, comemorar a chegada do Ano Bom, como se dizia, era obrigatório na nossa família. A exceção foi o ano em que o Albano deu de querer fugir de casa, junto com o amigo João Cachorro, que na nossa imaginação parecia destinado a uma vida de aventurosa marginalidade, mas virou um pacato criador de porcos.

A dupla foi localizada na manhã do dia primeiro de um ano qualquer da década de 1950, dormindo num barco atracado aos pés do Monte Cabrão. Não se sabe se arrependidos, e nem ao menos aonde queriam ir. Estavam inteiramente comidos pelos vorazes mosquitos do Canal da Bertioga.

Já nos sobrados da Emílio Ribas e da João Guerra, a festa cresceu, primeiro pelo aumento natural do clã formado pela Bela Dolores e pelo Bom Fonseca. O caçula Antônio Carlos, o último dos dez filhos vivos; nasceu em 1960 e encerrou a produção. Em seguida, contribuiu para a ampliação da festa a entrada em cena dos primeiros agregados: nossos amigos, os amigos dos nossos amigos e, sobretudo, as primeiras namoradas.

No apartamento do Embaré, a uma quadra da praia, nossa menor distância do paraíso, a festa virou superprodução. O pai, driblando a persistente dureza, comprava as bebidas e as castanhas portuguesas aos poucos, com antecedência de pelo menos três meses, muitas vezes avançando perigosamente no endividamento junto aos fornecedores. No fim, dava tudo certo e valia muito a pena. Fazia o velho abrir o seu melhor sorriso, a cada pacote ou engradado que levava para casa.

A mãe seguia produzindo suas especialidades, como as tortas de camarão e as rabanadas, mas foram as noras que colocaram nosso cardápio do Ano Novo em patamar superior, com as contribuições que trouxeram. Numa dessas noites, fomos honrados com a paella valenciana da cunhada Eliane, que também introduziu na família seu inigualável antepasto de berinjela. Parte da comilança era preparada na tarde de 31 de dezembro, ao tempo em que, na praia em frente, se disputava a mais espetacular pelada já vista nas areias santistas.

Iguais aos blocos “vai quem quer” dos desfiles de Dona Dorotéa, vamos furar aquela onda?, nossos embates começavam com, digamos, 8 contra 8 e terminavam com até 15 para cada lado, à medida que o pessoal ia chegando. Parentes, amigos e desconhecidos nem esperavam convite. Olhavam o time em minoria e entravam na roda. Acabava com todo mundo caindo no mar e prosseguia noite afora, nas conversas em torno das cervejas e dos assados.

Nas últimas festas, ainda com o pai vivo, no início dos anos 1980, chegaram os primeiros netos, completando a felicidade geral. O Bom Fonseca, que jovem participou de pelo menos uma Corrida dos Garçons, profissão que também exerceu como bico, fazia questão de assistir à São Silvestre, na época dominada por atletas portugueses e chilenos e corrida bem perto da passagem do ano.

Quando Carlos Joel Neli, o diretor de A Gazeta Esportiva começava a entregar os troféus para vencedoras e vencedores, o mano Ouhydes pegava a vassoura e varria a casa em direção à porta de saída. A gente ia atrás gritando “põe o (ano) velho pra fora”, os rojões cresciam de intensidade, nos abraçávamos e ríamos, com uma alegria que nunca mais eu sentiria.

Só risos. Nenhuma lágrima, como as que agora me rolam pelo rosto.

Que mãe! Que casal!

A praia: paixão comum ao Bom e à Bela

 

As tarefas eram bem distribuídas entre o casal que morava no humilde chalé de madeira do lado ímpar da Rua Morvan Dias de Figueredo, Marapé, Santos. O pai cuidava do que se situava além do portão: padaria, açougue, quitanda, vendinha e todo o pequeno comércio que abastecia a casa. A mãe era a rainha do lar, ou talvez seja melhor chamá-la gata borralheira, tantas e tão cansativas eram as atribuições de criar a crescente ninhada, fazer a comida, cuidar da casa e produzir na máquina Singer as camisas, calças e calções que nos vestiam.

Também eram divididos pelos gostos. O pai adorava cinema, futebol e livrinhos de bolso com histórias de faroeste. E não dispensava a leitura diária de A Tribuna. A mãe era amarrada no rádio: ouvia música e acompanhava as novelas, desde a ancestral O direito de nascer, da personagem Mamãe Dolores (ops!). No fim da tarde, antes da bênção do padre Donizete, de Tambaú, trocava ideias sobre as tramas com Dona Helena, a vizinha que morava com o pai, o feirante Ciço. Seus comentários tinham um bordão inicial: “Eu pra mim…”, dizia, introduzindo vaticínios sobre os próximos capítulos.

Outra diferença! O pai queria que começássemos a trabalhar desde logo, o mais cedo possível, para ajudá-lo nas despesas. E tinha razão, pois mesmo reforçado por inúmeros bicos (faxineiro, garçom, cobrador, bilheteiro e toda obra que pedisse um pau), o salário mínimo de servente público, não dava conta da missa. Já a mãe preferia nos ver na escola, e nisso teve sucesso. Além disso, ela corrigia os nossos erros de português e zelava pelo bom tratamento do idioma em seus domínios. E amava antúrios.

Mas havia traços fortíssimos de união: como a família que construíram, a praia com as crianças, os passeios a dois pela cidade – de bonde, ônibus circular ou a pé – e a paixão pelo Peixe. Além, é claro, do amor que os uniu até a morte dele e que deve perdurar até hoje, nos planos em que estão a Bela Dolores e o Bom Fonseca!

A gravata que o pai tatuou em nós

O bom Fonseca nasceu em Santos, no dia 19 de abril de 1911, um ano antes do Santos, e criou com Dolores uma feliz família santista.

Centro de São Paulo,1936: no peito, um orgulho só nosso

 

No início de 1936, tendo de ir a São Paulo, o jovem Fonseca, então com 24 anos,escolheu cuidadosamente a gravata que usaria na capital. Naquela época, os homens vestiam terno com gravata e chapéu. O rapaz trabalhava na alfaiataria do pai em Santos, sua cidade natal, e naturalmente seguia a moda masculina. Não se sabe se a gravata foi uma produção caseira ou teve outra origem.

Também não se sabe o fim do adorno, já que ele não estava entre as roupas que Fonseca levou para sua união com Dolores, três anos depois. Mas ficou a foto, batida por um lambe-lambe, fotógrafo de rua muito comum nas cidades brasileiras até os anos 1960.

Fonseca nasceu em 19 de abril de 1911, um ano antes do Santos FC. Quando se interessou pelo jogo da bola, naturalmente virou torcedor do Peixe. Torcia pelo Brasil, por São Paulo (alistou-se na Revolução de 1932), por Santos e pelo Santos. A essas paixões juntaria, nos anos seguintes, o amor pela família de dez filhos construída em parceria com Dolores (100 anos no próximo 5 de maio), a santista que conheceu em Xiririca (hoje Eldorado Paulista).

O time campeão de 1935

Não garoava naquela manhã da Pauliceia, e Fonseca estava particularmente feliz. Ainda saboreava a conquista do dia 17 de novembro de 1935, quando Ciro, Neves e Agostinho; Ferreira, Marteleti e Jango; Saci, Mário Pereira, Raul, Araken e Junqueirinha deram ao Peixe o primeiro título paulista. Raul e Araken marcaram, na vitória de 2 a 0 sobre o Corinthians, no Parque São Jorge.

Daí a escolha da gravata alvinegra que, bem no centro, trazia o escudo do Peixe. Fonseca caminhava orgulhoso entre os paulistanos e curtia uma espécie de vingança. Nem os juízes safados nem as tramoias da Federação tinham conseguido impedir que o título de campeão paulista, afinal, descesse a Serra. O Santos era o melhor, e não se discutia mais isso.

Neste 19 de abril de 2019, não poderei usar a gravata do velho Fonseca, que morreu em 16 de junho de 1983. Mas ela nunca deixou de estar no meu peito.

Santos, 1950-60 – Parte V

Educação física na escola foi luxo que nunca tive. E pra que? Criança pobre da periferia faz como meus irmãos e eu fazíamos na nossa infância despojada, mas feliz do Marapé. Subindo e descendo os morros, pra catar coquinho. Rodando descalço toda a cidade, da nossa rua ao centro, esticando para a Zona Noroeste, bem pra lá do matadouro municipal e dos permanentes urubus, passando o cemitério e o quartel do 2° BC, quase chegando a São Vicente por essa via alternativa. Ou seguindo para os lados da Ponta da Praia, beirando o cais do porto, correndo entre os armazéns empoeirados e passando pelos canais do mercado e do Macuco, com a vista bonita das catraias coloridas. Na busca de aventuras que iam muito além da carona no estribo dos antigos bondes da SMTC, enlouquecendo cobradores e motorneiros, ora pois.

Pedalando, quando havia uma magrela disponível, até o recanto das Tortugas, no Guarujá, ou até a Praia das Vacas, depois da Ponte Pênsil, à esquerda, em São Vicente. Nadando em torno da Ilha Porchat ou atravessando a entrada do canal para chegar à Praia do Góes, Ilha de Santo Amaro, Guarujá, mijando de medo e molhando de outra forma o calção mal ajambrado, porque nadava mal pra caramba, mas não queria fazer feio. Saltando, ídem, do antigo trampolim da Ponta da Praia ou da pedra do Tarzan, no Itararé, onde tanto moleque da nossa idade morreu.

Estudando à noite e trabalhando com carteira de menor de segunda a sábado, e ainda com fôlego e pernas pra disputar olimpíadas inteiras todo fim de semana, onde houvesse uma bola rolando pelas ruas, campos de terra ou grama, entre Bertioga e Peruíbe, com tempo para o futebol de salão (era esse o nome do jogo) nas noites de sexta e sábado, para o vôlei nas manhãs de domingo nas areias quentes e para o jacaré de peito na parte mais rasa do mar. Ali onde as ondas terminam.

Ah, e nessas quebradas também havia Arte praticada com gosto. Arte de invadir quintais em busca de frutas e cacarecos, de afanar gibis nas bancas de revistas, de embolsar balas nos balcões de padocas e botecos, de fazer carreto na feira, de transformar em dinheiro jornais velhos, latas de cera e garrafas vazias, de recolher e derreter as sobras de fios das obras da empresa municipal de luz e vender o metal. Tudo isso, como dizia o velho, sem redundância, rendia “uns bons cobres”. Embora seja justo admitir que a Grande Arte, a Verdadeira Arte, nos pegava como espectadores, na Vila Belmiro, em cujo gramado Zito, Formiga, Álvaro, Pagão, Coutinho, Pelé e Pepe compunham magistrais sinfonias, criavam indescritíveis balés e escreviam jogando bola enredos jamais imaginados.

Não se deve, porém, desmerecer a felicidade dos domingos na praia, num tempo em que o sol era mais brilhante, a água mais verde claro e as ondas abundantes mais brancas. Já entrando na puberdade, era delicioso me deixar levar pelo mar, mirando a garota mais bonita de quantas faziam alarido e davam gritinhos assustados ali perto, por certo adivinhando minhas deliciosas intenções.

Dois gigantes: um afundou, o Santos é eterno

Meninos para sempre: Pepe, Mengálvio, Pelé, Dorval e Coutinho

Presume-se que todos vestissem terno. Escuro, com certeza, como os chapéus que cobriam comportadas cabeleiras ou nenhum cabelo. É improvável que algum participante da reunião se imaginasse protagonista de um acontecimento histórico, no domingo, 14 de abril de 1912. Nada que se comparasse, por exemplo, ao alarde mundial em torno do Titanic, orgulho da indústria naval britânica e de Sua Majestade, que naquela mesma noite cruzava o Atlântico Norte, no rumo de Nova York. Antes que o sol iluminasse a segunda-feira, porém, o navio indestrutível, aquele que “nem o próprio Deus poderia afundar”, conforme dizia a imprensa inglesa, abreviaria seu curso no fundo do mar.

Os homens de gravata e chapéu só saberiam da tragédia nos dias seguintes. Agora, encerrado o encontro convocado por Raymundo Marques, Mário Ferraz de Campos e Argemiro de Souza Júnior, os 39 jovens deixam cheios de sonhos e esperanças o casarão da antiga Rua do Rosário, no centro da cidade. Sabem que o barquinho recém-lançado às águas é ainda muito pequeno para tanto mar. Sabem que não merecerão mais do que notas de rodapé nos jornais locais os acontecimentos daquela noite no remoto porto do Atlântico Sul. Mas também sabem que, ao contrário do Titanic, a viagem está apenas começando para os primeiros meninos da Vila e para o Santos.

A Bela e o Bom

Ele adorava cinema e futebol. De assistir e de jogar.

Ela gostava de música. De dançar e de cantar.

A praia era o denominador comum dos dois. Mas é claro que havia outros prazeres, dos quais nasceram doze fonsequinhas. Dois não vingaram, mas os outros dez continuam por aqui.

A Bela entra na contagem regressiva dos 100 anos exatamente hoje. Fecha o centenário no próximo 5 de maio. Nasceu em 1919, no fim da primeira grande guerra. Trouxe a paz e a alegria.

Já não dança, mas canta como ninguém. Brejeira, feliz e maliciosa. Ouçam A casta Suzana, marchinha dos anos 1940, na voz dela. Ou Quixabeira do meu Acaré. Ou, ainda, a lindíssima Prece ao vento, com todos os versos.

Essa menina é demais!

E o que dizer do Bom Fonseca, que nasceu em 19 de abril de 1911 e nos deixou em 16 de junho de 1983? Esta parte fica para o aniversário dele, daqui a duas semanas.

O claro mês das garças forasteiras

Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras;
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro:
E as leves garças, como folhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas…

Em Palavras ao mar, Vicente de Carvalho canta o mês de abril, das garças forasteiras. O mês que também é do meu pai, o Bom Fonseca, 1911, dia 19. Ambos santistas, o poeta num 5 de abril de 1866. Ainda menino escreveu seus primeiros poemas e aos 16 anos, com uma licença especial, entrou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, para concluir o curso aos 20, em 1886.

Vicente de Carvalho participou das campanhas abolicionista e republicana. Atuou na advocacia, na política, no jornalismo e nos negócios. Colaborou com os jornais O Estado de S. Paulo e A Tribuna. Em 1889, fundou o Diário da Manhã e, mais tarde, O Jornal, ambos em Santos. Publicou em 1902 Rosa, rosa de amor, livro que o tornou conhecido como o poeta do mar.

Em Poemas e canções, surgem os temas sociais, como a escravidão (Fugindo ao cativeiro) e a miséria (A voz do sino). Vicente de Carvalho morreu em Santos, no dia 22 de abril de 1924. Chegou e partiu na “primavera de ouro”, como preferiu falar dos seus outonos.

O cronista que cantou o Santos e Pelé

O jornalista De Vaney, nascido em Ribeirão Preto e criado no Rio de Janeiro, mudou-se para Santos em 1939. Quando passou a trabalhar em O Diário, na Rua do Comércio, endereço em que funcionou depois o Cidade de Santos (ambos extintos), De Vaney já havia assistido a duas Copas do Mundo: a de 1934, na Itália, e a de 1938, na França. O jornalista apaixonou-se prontamente pela cidade e, com seus textos maravilhosos, fez também os santistas apaixonarem-se por ele.

Não é exagero afirmar que, durante quase três décadas na imprensa santista, Adriano Neiva da Motta e Silva, seu nome de batismo, foi o mais brilhante e premiado cronista esportivo do País. Como colaborador, trabalhou para os principais jornais brasileiros, foi correspondente de veículos da América do Sul e da Europa e influenciou várias gerações de jornalistas. Ganhou todos os concursos de que participou – entre eles o promovido pelo jornal O Globo, do Rio, que deu a Santos o título de município mais esportivo do Brasil – e escreveu diversos livros, como a série História Oficial dos maiores clubes de São Paulo.

De Vaney foi o primeiro jornalista a entrevistar Pelé, pouco depois da chegada do menino de Bauru ao Santos, em 1956. A partir dali, acompanharia toda a carreira do Rei, ajudando a criar a mística em torno do maior jogador de futebol de todos os tempos. Entre o fim dos anos 1960 e o início dos 1970, porém, algo  fez o jornalista desentender-se com o jogador. Tornou-se, então, o maior crítico de Pelé, especialmente da decisão dele de abdicar da seleção brasileira, em 1971.

De Vaney nasceu em 22 de fevereiro de 1907 e morreu em 29 de janeiro de 1990, em Santos. Em 1971, em entrevista ao jornal Notícias Populares, de São Paulo, ele contou como se construiu o mito Pelé, segundo registrado pela antologia A crônica esportiva, publicada pela prefeitura santista. A seguir um trecho da narrativa do jornalista:

Recordemo-nos, por exemplo, de uma irradiação feita por Geraldo José de Almeida: “Gol de Pelé! Gol do craque café! Só Pelé faria um gol assim!” Nisso, o locutor de campo interrompeu: “Olha, Geraldo, o gol foi de Coutinho!” Geraldo não se perturbou: “Só Pelé daria um passe assim!” Nova interrupção do repórter de campo: “Olha, Geraldo, o passe foi de Dorval!” Mas Geraldo saiu-se com esta: “Um gol assim só com Pelé dentro do campo!” O repórter de campo completou: “Só Pelé perderia um gol com essa elegância, com essa majestade de rei do futebol!”.

Na sequência, o entrevistador pergunta a De Vaney se para ele, então, Pelé é só mística: De maneira alguma. Pelé foi o maior jogador que vimos jogar. Mas os senhores hão de convir de que também jogaram muito por ele.