A passagem do ano era a grande data do calendário do nosso pai. Desde o chalé de dois cômodos de madeira do Marapé, início das minhas lembranças, comemorar a chegada do Ano Bom, como se dizia, era obrigatório na nossa família. A exceção foi o ano em que o Albano deu de querer fugir de casa, junto com o amigo João Cachorro, que na nossa imaginação parecia destinado a uma vida de aventurosa marginalidade, mas virou um pacato criador de porcos.
A dupla foi localizada na manhã do dia primeiro de um ano qualquer da década de 1950, dormindo num barco atracado aos pés do Monte Cabrão. Não se sabe se arrependidos, e nem ao menos aonde queriam ir. Estavam inteiramente comidos pelos vorazes mosquitos do Canal da Bertioga.
Já nos sobrados da Emílio Ribas e da João Guerra, a festa cresceu, primeiro pelo aumento natural do clã formado pela Bela Dolores e pelo Bom Fonseca. O caçula Antônio Carlos, o último dos dez filhos vivos; nasceu em 1960 e encerrou a produção. Em seguida, contribuiu para a ampliação da festa a entrada em cena dos primeiros agregados: nossos amigos, os amigos dos nossos amigos e, sobretudo, as primeiras namoradas.
No apartamento do Embaré, a uma quadra da praia, nossa menor distância do paraíso, a festa virou superprodução. O pai, driblando a persistente dureza, comprava as bebidas e as castanhas portuguesas aos poucos, com antecedência de pelo menos três meses, muitas vezes avançando perigosamente no endividamento junto aos fornecedores. No fim, dava tudo certo e valia muito a pena. Fazia o velho abrir o seu melhor sorriso, a cada pacote ou engradado que levava para casa.
A mãe seguia produzindo suas especialidades, como as tortas de camarão e as rabanadas, mas foram as noras que colocaram nosso cardápio do Ano Novo em patamar superior, com as contribuições que trouxeram. Numa dessas noites, fomos honrados com a paella valenciana da cunhada Eliane, que também introduziu na família seu inigualável antepasto de berinjela. Parte da comilança era preparada na tarde de 31 de dezembro, ao tempo em que, na praia em frente, se disputava a mais espetacular pelada já vista nas areias santistas.
Iguais aos blocos “vai quem quer” dos desfiles de Dona Dorotéa, vamos furar aquela onda?, nossos embates começavam com, digamos, 8 contra 8 e terminavam com até 15 para cada lado, à medida que o pessoal ia chegando. Parentes, amigos e desconhecidos nem esperavam convite. Olhavam o time em minoria e entravam na roda. Acabava com todo mundo caindo no mar e prosseguia noite afora, nas conversas em torno das cervejas e dos assados.
Nas últimas festas, ainda com o pai vivo, no início dos anos 1980, chegaram os primeiros netos, completando a felicidade geral. O Bom Fonseca, que jovem participou de pelo menos uma Corrida dos Garçons, profissão que também exerceu como bico, fazia questão de assistir à São Silvestre, na época dominada por atletas portugueses e chilenos e corrida bem perto da passagem do ano.
Quando Carlos Joel Neli, o diretor de A Gazeta Esportiva começava a entregar os troféus para vencedoras e vencedores, o mano Ouhydes pegava a vassoura e varria a casa em direção à porta de saída. A gente ia atrás gritando “põe o (ano) velho pra fora”, os rojões cresciam de intensidade, nos abraçávamos e ríamos, com uma alegria que nunca mais eu sentiria.
Só risos. Nenhuma lágrima, como as que agora me rolam pelo rosto.