Uma noite em Caracas

Lembrei outro dia da excursão que o Santos fez em 1970 pelas Américas, com um time praticamente reserva, pois metade dos titulares estava com a seleção no México. A estreia aconteceu em 7 de maio, em Caracas, Venezuela, contra o Vitória de Setúbal, numa noite surreal.

A capital venezuelana estava sob greve geral e os estudantes ocupavam a Cidade Universitária, em cujo estádio se realizaria o jogo. As ruas no entorno estavam bloqueadas com galhos de árvores e, por toda a cidade, piquetes de trabalhadores impediam a circulação do transporte coletivo.

Orlando, Djalma Dias e Abel na excursão de 1970

Quando entramos na Cidade Universitária, fomos recebidos pelos estudantes com uma chuva de pedras. Pânico, todos se jogando no corredor do ônibus, cobertos de estilhaços de vidro. As janelas que sobraram foram em seguida quebradas a pau pelos rapazes, que nos cercavam.

Não houve feridos e, no meio da negociação que acabou assegurando a continuação da nossa viagem até o estádio, uma voz inconfundível e insistente se destacou do nosso lado: “Calma. Párem. Yo soy brasileño”. Era o zagueirão Ramos Delgado, tão apavorado quanto os companheiros.

Os portugueses do Setúbal receberam o mesmo tratamento mas, ao contrário do Santos, decidiram voltar ao hotel e fazer uma série de exigências para participar do jogo. Cobraram inclusive o pagamento antecipado de sua cota. Com tudo isso, o jogo atrasou mais de uma hora.

Quando finalmente entraram em campo, meio time exibia vistosas bandagens na cabeça, braços e pernas. Parecia um exército que chegava batido da guerra. Pura encenação, como pudemos ver a partir do momento em que o juiz apitou o início.

Os portugueses deram um baile e venceram por 3 a 1, com atuações impressionantes de dois negros. Um deles era o ponta-Jacinto João, que naquela noite estava mais endiabrado que o Garrincha e o Edu juntos.

Tantos Santos!

Um site perguntou aos seus blogueiros, que eu saiba nenhum deles santista, qual é o melhor time brasileiro da história da Libertadores. Deu Santos por larga margem, na verdade a quase unanimidade, e não poderia ser diferente.

Se o Santos do bi continental e do bi mundial já era, e ainda é, o maior time do planeta em todos os tempos, como algum dos entendidos poderia indicar, por exemplo, o Flamengo? O representante carioca é dono de uma mísera Copa, diferente de São Paulo, do Grêmio e do próprio Peixe, que colecionam três cada?

Além de tudo, um título ilegítimo, conquistado após resultados fraudados pela arbitragem, nas fases classificatórias. E obtido em três jogos contra um tal Cobreloa (?) chileno. Pois um blogueiro solitário votou no clube que revelou Toró. Dá para entender: nas folgas, ele vai fantasiado torcer pelas cores do seu coração.

O episódio me leva a entrar na moda e, aproveitando a recessão do futebol, escalar os melhores times que vi jogar. Times do Santos, que acompanho desde metade da década de 1950, e que são imbatíveis inclusive diante das melhores seleções brasileiras, as de 1958 e 1970, ambas uma espécie de Peixe desfalcado.

Então, lá vai o melhor que vi jogar: Cejas, Lima, Joel Camargo, Marinho Peres e Léo; Clodoaldo, Pita e Giovanni; Dorval, Pagão e Robinho.

Ops, me enganei. Na verdade, esse é o que antigamente se chamava segundo quadro. O primeiro é o seguinte: Gilmar, Carlos Alberto, Mauro, Calvet e Edu; Zito e Mengálvio; Neymar, Coutinho, Pelé e Pepe.

O truque de escalar o ponta Edu na lateral esquerda, para não cometer o crime de deixá-lo fora, é do Tostão. E eu acompanho.

O legal é que dá para formar um terceiro time, quase tão genial quanto os dois primeiros: Rodolfo Rodrigues, Ramiro, Ramos Delgado, Alex e Dalmo; Dema, Antoninho Fernandes, Diego e Aílton Lyra; Chulapa e Abel.

Vejam que ficaram de fora o goleiro Cláudio, os zagueiros Formiga, Orlando Peçanha e Djalma Dias, os laterais Geraldino, Ismael, Rildo, Danilo e Alex Sandro; os meias Álvaro, Brecha e Ganso; e os atacantes Nilton Batata, Manoel Maria, Odair Titica, Vasconcellos, Del Vecchio, Juary, Toninho Guerreiro, Cláudio Adão, Eusébio e João Paulo.

Além dos muitos que certamente esqueci, ou não vi jogar, como Athié, Arnaldo Silveira, Feitiço, Ary e Araken Patusca. Entre estes estão os santistas das primeiras seleções brasileiras, na segunda década do século passado; a mitológica linha dos 100 gols, de 1927; e os campeões de 1935, ídolos gigantes de um passado mais distante.

Falando sério, o Santos dos esquecidos seria suficiente para encarar o primeiro quadro de todos os tempos de qualquer outro time ou seleção.

A maior torcida do Brasil

Santistas na noite mágica do tri

Tempos atrás, um programa esportivo, produzido e apresentado no Rio de Janeiro, recuperou uma pesquisa nacional feita pelo jornal carioca O Globo, no início de 1969, para medir a paixão dos brasileiros pelos seus times. Talvez tenha sido a primeira pesquisa do gênero, e o resultado é inquestionável. O Santos ficou em primeiro lugar, com 49%, seguido muito de longe por Flamengo (menos da metade), Corinthians (ainda mais distante) e um grupo composto por São Paulo, Vasco, Palmeiras, etc.

Do segundo colocado para baixo, todos somados não alcançaram a votação do Peixe. Uma vantagem tão grande, que o insuspeito jornal foi levado a admitir: o Santos é o time mais popular do Brasil!

Mesmo assim, os comentaristas cariocas da mesa tentaram relativizar. A pesquisa não perguntou pra que time os brasileiros torciam, alegaram. Quis simplesmente saber de que time os brasileiros mais gostavam. Papo furado. A grande “torcida” que o Flamengo sempre teve no Norte-Nordeste é formada por torcedores de times locais, os quais também simpatizam com o clube que revelou Toró, Fabão e Júnior Baiano.

Coisa pior, entretanto, estava por vir. E veio. Foi quando o apresentador mostrou uma escalação do Santos daqueles anos e perguntou: dá pra cravar que esse foi o melhor time brasileiro? A resposta óbvia é: “Não, Pedro Bó, esse não foi o melhor time brasileiro. Esse é o melhor time de todos os tempos no mundo!”

Mas os botafoguenses, foram rápidos: Não, não dá para cravar o Santos como melhor time brasileiro, disseram. “Jogador por jogador…”, começou um. “O Santos conquistou mais títulos, é verdade…”, emendou o outro. “Mas o Botafogo teve Garrincha, Didi, Nílton Santos…”, concordaram ambos, chegando afinal ao ponto. O que eles queriam era nivelar o Peixe ao seu grande freguês. Então, combinaram, ganhar mais títulos não seria critério para se medir superioridade, ainda que o Santos tenha conquistado todos os títulos e nada tivesse deixado para o suposto rival. E ainda que alguns desses títulos tenham decorrido de surras homéricas aplicadas justo nesse adversário. Foi muita cara de pau!

No quesito escalação, no qual os botafoguenses se consideravam em vantagem, a comparação é ainda mais risível, e cruel. O Santos anos 1960 teve Gilmar, Carlos Alberto, Mauro, Calvet e Dalmo; Zito (Clodoaldo) e Mengálvio; Dorval, Coutinho (Toninho), Pelé e Pepe (Edu). Com exceção de Dalmo, todos campeões com a seleção, todos detentores de títulos mundiais. Cada um muito mais vitorioso do que o mais vitorioso botafoguense. Nenhum deles, incluindo seus maiores ídolos, tem os títulos locais, nacionais, sul-americanos e mundiais que os santistas têm, inclusive Dalmo. E vários dos nossos “reservas”, os irmãos Ramiro e Álvaro Valente, Pagão e Lima entre eles.

Botafogo, além de ser hoje codinome de político corrupto, para mim é sinônimo de alegria. Desde a primeira vez em que vi os dois em confronto direto na Vila. Rio-São Paulo, 1957. O Santos de Dorval, Álvaro, Pagão, Del Vecchio e Tite enfiou 5 a 1 no time de Nílton Santos, Didi e Garrincha. Pelé entrou no fim. Tinha 16 anos e nem precisou marcar.

A visão regional da mídia esportiva sempre produziu ideias bizarras. Talvez, naquela mesa da TV, os comentaristas quisessem estabelecer a seguinte maluquice: o Santos foi o melhor time do mundo, mas na mesma época o Botafogo foi o melhor time do Brasil. Interessante! O problema é que o Botafogo, naquele tempo e em nenhum outro, sequer foi o segundo melhor por aqui. Já então, o Palmeiras tinha mais time e ganhava mais títulos do que o time carioca, que, como diz seu hino, é campeão de 1910.

“Não sabia quem era Pelé e quem era Coutinho!”

Bolero, zagueiro rubro-negro nos anos 1960, sofreu com as tabelinha e os dribles da dupla na noite em que o Santos fez 7 a 1 no Flamengo no Maracanã

Pelé, Coutinho e Dorval: quem é quem?

Bolero foi um zagueiro do Flamengo nos anos 1950/1960. Jogava com mais frequência nos aspirantes, entrava às vezes no time titular, era reserva. Em 1984, carreira já encerrada, Bolero trabalhou como motorista do jornal O Dia.

Reservado, caladão, Bolero tinha no entanto muitas histórias para contar. Quando resolvia ia recordando levado pela saudade do tempo de jogador. Histórias que nem sempre eram de “mocinho”, como aquela em que enfrentou o Santos de Pelé, Coutinho & Cia. no Torneio Rio-São Paulo de 1961.

Era um tempo em que os zagueiros ficavam, de véspera, apavorados ao saber que teriam de marcar Pelé. O jogo entre Flamengo e Santos, no Maracanã foi no dia 11 de março de 1961. Bolero não estava relacionado para a partida. Como o zagueiro titular havia se contundido, e fora vetado, Bolero foi convocado às pressas para se concentrar e escalado para jogar.

Bolero entrou em campo preocupado. Não era para menos – afinal teria pela frente Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe, o famoso ataque santista. Só não podia imaginar que naquela noite viveria o pior dos seus pesadelos, como ele começou a recordar de maneira bem-humorada.

– Eu ainda não tinha botado o pé na bola, e o Santos já estava vencendo por 2 a 0 – contou.

Bolero não perdia por esperar. Pelé estava em noite inspirada, driblando a quem lhe aparecia pela frente.

– Teve um gol em que eu caí sentado com o drible que ele me deu. Quando eu virei, a bola já estava na rede.

O time do Flamengo (e a defesa) quase não pegava na bola. Pelé e Coutinho iam fazendo das suas, através de tabelinhas que deixavam tontos os zagueiros rubro-negros. Em um desses lances, outra vez Bolero tentou entrar em ação. Não conseguiu, de novo, achar Pelé. Ou Coutinho.

– Eles entraram tabelando e saiu outro gol. O time do Santos não parava de atacar. No final, não sabia mais quem era Pelé, quem era Coutinho, na velocidade eles se pareciam. Tinha também o Dorval, que ajudava a confundir ainda mais. Só sei que eles não paravam de fazer gol.

Pelé fez quatro, Pepe fez dois e Dorval completou. O Santos goleou o Flamengo por 7 a 1, diante da sua torcida, no Maracanã. O Flamengo jogou com Fernando, Joubert, Bolero, Nelinho (Jadir) e Jordan; Carlinhos e Gérson; Joel, Henrique (Luís Carlos) Dida e Babá (Germano). Henrique marcou para o Flamengo, que devolveu a goleada vencendo depois o Santos por 5 a 1, no Pacaembu, e terminou campeão do Rio-São Paulo de 1961.

 (https://www.cbf.com.br/selecao-brasileira/torcedor/jogos-inesqueciveis/… Não sabia quem era Pelé e quem era Coutinho!” 01/09/2015 | Assessoria CBF)

 

Que torcedor foi mais abençoado?

Comecei a frequentar a Vila na metade da década de 1950. Era um moleque feliz, vivia descalço pelas ruas de terra do Marapé e fazia do campo do Santos, do alto do morro e das areias do José Menino extensões do minúsculo quintal do nosso chalé de madeira de dois cômodos na Rua Morvan Dias de Figueiredo.

O time de branco começava a se armar para conquistar o mundo e meus deslumbrados olhos só viam craques no Peixe. Era vestir o manto sagrado para virar ídolo. E era incomparável a alegria das tardes de domingo no pequeno lance de geral reservado aos “meninos do Santos FC”. Reparem na data da primeira frase deste texto. Pois é! Acompanhei de perto toda a fase mais vitoriosa do clube que o Bom Fonseca colocou no meu coração. Vi de alguma forma todas as conquistas do maior time da história.

A bombas do Pepe, os lançamentos do Jair Rosa Pinto, o comando do Zito, a classe do Ramiro, as diabruras de Vasconcellos, a força do Del Vecchio. O ataque PPP, Pagão, Pelé e Pepe. Depois, a dupla Pelé-Coutinho, das tabelinhas mortais, e o chamado trio defensivo: Manga, Hélvio e Ivã. Mas o principal eram as goleadas, as chuvas de gols. Quatro num jogo era pouco para aqueles ataques, que podiam ter Dorval e Tite nas pontas.

Cresci e fiquei mais exigente. Durante anos não engoli Toninho Guerreiro, em suas primeiras temporadas no Peixe. Para mim, ele usurpava a camisa 9 tão finamente vestida por Pagão e Coutinho. Até que, encerradas as carreiras desses dois príncipes, tive de me render aos dotes do goleador que veio de Bauru para ajudar na conquista de nosso tricampeonato paulista de 1967, 1968 e 1969. Toninho não era o fino da bola, mas foi um grande jogador e merecia mais respeito.

Durante aquela década, acompanhei todos os jogos que pude, em Santos e em São Paulo. Muitas vezes, faltava grana para subir a Serra, mas na Vila sempre se dava um jeito de entrar de graça. Impossível era ir mais longe e o Peixe era cada vez mais um time do mundo, levado pelo brilho de Pelé e companhia e, também, pela clarividência da diretoria da época.

Athié, Roma e Moran tinham outra cabeça. Logo, perceberam que o negócio do Santos era o fantástico time de futebol. Viram que só alargando seus horizontes seria possível mantê-lo sempre forte. Daí que fomos decidir os nossos maiores títulos no Maracanã e fizemos de Paris, Roma e Madrid, entre outras capitais, palcos cativos de nossos espetáculos. O Peixe exportação não perdeu um pingo de sua identificação com a cidade e com a torcida. Pelo contrário, nos dava orgulho ver a multidão de cariocas, franceses, italianos e espanhóis brigando por um lugar nos estádios que reverenciavam o nosso time.

Segui esse Santos em parte pelas imagens em preto e branco da televisão da época, pela empolgada narração dos locutores de rádio e, principalmente, pelo texto maravilhoso dos cronistas de A Tribuna. De Vaney, Chico Sá, Ary Fortes, Gilberto Bezerra e J. Lima transformavam as excursões do time em epopeias, narrativas de Marco Polo, contos das Mil e uma noites.

Até que virei jornalista, também, e fui cobrir o Santos, ainda de Pelé, Carlos Alberto, Ramos Delgado, Clodoaldo, Joel Camargo e Edu, mas já na pré decadência do início dos anos 1970. Acompanhava os treinos, entrevistava diretores, técnicos e jogadores. Ia aos jogos e participei, como membro da delegação, de várias viagens ao exterior.


O Bom Fonseca em 1936, na Pauliceia, com
o distintivo do campeão paulista na gravata.

A convivência profissional com o clube me transformou em outro torcedor. Provisoriamente, em não-torcedor. Os tempos também eram outros, o futebol se modificava, com a implantação de um profissionalismo algo exagerado e frequentemente equivocado. Terminavam os tempos românticos que ligavam o jogador ao time e à camisa. Por justiça, devo dizer que, até o fim, o nosso Corró foi exceção.

Passaram a prevalecer os interesses individuais, num esporte até então considerado coletivo. Surgia o “jogador maior que o clube, a cidade e a torcida”. Carlos Alberto, por exemplo. De repente, no pior momento, quis porque quis voltar para o Rio. Achou que as coisas por aqui estavam ruins, mas, ao ver que lá podiam ser piores, voltou. Por pouco tempo.

Além de perder jogadores para a idade e incapacitado de fazer as reposições necessárias, porque a infeliz compra do Parque Balneário Hotel exauria suas finanças, o Peixe ainda sofreu perdas precoces de jogadores vítimas de contusões e acidentes. Um câncer nos levou o goleiro Cláudio, batidas de carro praticamente encerraram as carreiras de Joel Camargo e Mané Maria, enquanto um joelho problemático levava Djalma Duarte, jovem promessa vicentina, a parar com o futebol.

Uma grave fratura também nos tirou Cláudio Adão, sem impedi-lo de seguir jogando. Passou por todos os grandes do Rio, foi várias vezes campeão carioca, mas nunca mais chegou à seleção, numa época em que ser titular de qualquer time da Cidade Maravilhosa era meio caminho andado. O Santos continuou grande, no mínimo o maior do Brasil, mas a supremacia dos Meninos da Vila e dos times de Chulapa, Giovanni, Diego, Robinho e Neymar nunca mais foi tão avassaladora.

DE ARAKEN A NEYMAR, SEMPRE O MELHOR

Há oito anos, na quinta-feira, 19 de abril de 2012, desci a Serra bem cedo, mas não foi só para ver o Peixe na Vila. Fui passar o dia perto do mar, lembrando do pai que me legou a paixão pelo Santos e que estaria fazendo 101 anos. Serão 119 em duas semanas. Acho até que o vi pular uma onda, feliz ao lado da Dolores e da filharada

Para mim, o Santos é o melhor do mundo desde a metade dos anos 1950, quando passei a ver com meus próprios olhos de garoto do Marapé, na Grande Vila Belmiro, o que o time de branco era capaz de fazer com a bola e com os adversários. Mas também sei que o Santos é o melhor desde muito antes, porque meu pai falou que era, ele que viu jogar os lendários times de Arakén, Feitiço, Athié e Antoninho Fernandes. Ele garantia que já naquelas épocas nada havia de parecido no mundo do futebol – e o velho Fonseca nunca mentiu.

Não sei se todos sabem, mas nós somos Peixe desde antes do Peixe, porque o mais Fonseca de todos nós veio ao mundo exato um ano antes do time, em abril de 1911, na mesma cidade de Brás Cubas e de Nossa Senhora do Monte Serrat. É bastante provável que antes do fim daquela década o Fonsequinha – como mais tarde ficou conhecido da Vila Mathias à Ponta da Praia, da Praça dos Andradas ao José Menino – botasse banca com os feitos santistas. Colocou, por exemplo, três atletas, incluindo o capitão Arnaldo Silveira, na seleção que conqauistou a Copa Roca de 1914 e do Sul-Americano de 1919.

Pois, é! Meu pai dizia que o Santos foi formidável também nesses primórdios e só não conquistou os títulos que viriam aos montes na segunda metade do centenário porque era invariavelmente prejudicado pela arbitragem. Já naquela época, os donos do futebol, os times da capital e seus empertigados torcedores, sofriam por ter de engolir a supremacia forasteira. Ainda mais vinda de um lugar que ousava concorrer com a metrópole em relevância política e cultural, sem falar nas praias inexistentes no alto da Serra e na desenvoltura da gente santista. O Santos era o máximo e a cidade, também.

Mas essa é só a primeira parte da mais bela história escrita dentro de um campo de futebol. A primeira e a menos conhecida. A segunda parte, que tive a felicidade de acompanhar e que continua enchendo de felicidade os corações alvinegros, dispensa relatos e adjetivos. Está fartamente documentada e, no conjunto da obra, é comemorada onde quer que haja um amante da arte da bola. Onde quer que estejam os craques de ontem e de hoje. Onde quer que pulse um sentimento praiano e vibre uma alma fonseca.

CONVERSA COM O CAPITÃO (III)

Caro Zito,

Você, mais do que ninguém, sabe que o Santos é universal. Nas nossas eleições, vem gente de todo lugar. Do Mato Grosso, do Norte do Paraná, do Nordeste, de Brasília. Alguns nem podem votar. Vêm para viver um momento importante do clube. Outros, nos mais distantes pontos do mundo, ficam na internet, ávidos por notícias. É impressionante o que esse time faz com a gente, não importando se santistas recentes ou antigos, de perto ou de longe.

É por isso que eu não me conformo quando vejo santista que se considera mais santista do que os outros só porque, além de tudo, teve a sorte de nascer cercado pela moldura maravilhosa das praias e dos morros santistas. Esse santista, como eu e os demais filhos da Bela Dolores e do Bom Fonseca, tem o privilégio de ser santista em todos os sentidos, o que inclui as mais nobres marcas do caráter e molda nossa personalidade.

Em outras palavras, tivemos a felicidade de nascer nesse lugar bendito e no momento certo. Justo a tempo de ver se cumprir aqui o desígnio divino. O berço de Bartolomeu de Gusmão, dos sonhos libertários dos Quilombos, dos irmãos Andrada, dos movimentos sindicais, da arte de Wega Nery, dos sonhos de Pagu, da inspiração de Martins Fontes e Vicente de Carvalho, da genialidade de Plínio Marcos e do maestro Gilberto Mendes – esse berço embalaria também o maior espetáculo da Terra. Como não ser duplamente santista em tais condições?

E, além de tudo isso, Santos, para quem não sabe, é também a terra da liberdade e da caridade. Pois é porto, símbolo maior da hospitalidade da nossa gente. O que quero dizer, Zito, é que foi muito fácil, para nós, tão generosamente abençoados, sucumbirmos de corpo e alma a essa atração mágica, a essa paixão desenfreada pelo Peixe. Não temos méritos. Apenas tiramos o bilhete premiado.

Já o Santos que você ajudou a construir atraiu para a nossa cidade milhões de corações. É um incalculável capital de amor, força e competência, que alguns insensatos desprezam. Mas não se preocupe, Capitão. O nosso Santos é suficientemente grande para sobreviver a essa gente.

(fim)

Contra o dinheiro da MSI, o coração de Geílson

Não havia santista tranquilo no fim da tarde do domingo, 12 de fevereiro de 2006. Ainda em formação, o Santos de novo de Vanderlei Luxemburgo ia enfrentar o Corinthians, suposto campeão brasileiro do ano anterior, que já batia bola no Morumbi com Tevez, Nilmar e o recém-contratado Ricardinho, ex-Peixe.

O adversário era amplamente favorito. Além da base campeã, seguia contando com o dinheiro da nebulosa MSI e com a simpatia do STJD, dos árbitros, da CBF e da mídia. Seu título mais recente resultara justamente da inédita união dessas forças.

Entre os 18 jogadores santistas convocados por Luxemburgo estava Geílson. No banco. O jovem atacante estreara dois anos antes no time B, campeão da Copa Federação Paulista de Futebol e, no ano seguinte, foi promovido ao grupo principal pelo técnico Gallo. Em 2006, continuava tentando conquistar a confiança dos treinadores e da torcida.

Nem se precisa falar aqui de seres quase mitológicos, como Feitiço, Pagão e Coutinho. O Santos teve dezenas de centroavantes melhores do que o esforçado Geílson no escalão intermediário em que se encaixam, por exemplo, Paulinho McLaren e Guga.

O garoto, entretanto, embora marcasse pouco, tinha uma característica especial: fazia gols importantes. Meses antes, no dia 26 de outubro, ele abriu o marcador da vitória de 3 a 1 sobre o Vasco, no estádio de São Januário. Gol histórico, o 11.000º do Santos, único clube no mundo a atingir tal marca.

Mas agora, com a bola rolando, não eram boas as perspectivas de Geílson. Se tivesse de ir para o jogo, seria lá pela metade do segundo tempo, em condições adversas. Caso contrário, se o Peixe estivesse em vantagem, o técnico reforçaria a defesa e tentaria garantir o resultado. Ele continuaria no banco.

Tudo mudou, porém, aos 15 minutos, quando o centroavante Reinaldo se machucou. Geílson foi chamado por Luxemburgo e iniciou uma batalha desigual contra a defesa adversária, já que o jogo se concentrava no campo santista e a bola quase não chegava. Foi assim até o fim do primeiro tempo e assim prosseguiu durante quase todo o segundo.

Perto dos 30 minutos finais, o que era ruim piorou. Num escanteio, nosso zagueiro Luís Alberto foi para a área corintiana e sofreu pênalti não marcado pelo juiz. O zagueiro reclamou e foi expulso de campo. O Santos fechou-se ainda mais, já considerando o empate de 0 a 0 um grande lucro. Mas o predestinado Geílson estava em campo e reescreveu a história.

Foi aos 33 minutos. O volante Fabinho desarmou o ataque adversário e deu um chutão. A bola cruzou a linha central do gramado correndo junto à lateral direita. Geílson chegou antes dos zagueiros e, com um corte para o meio, driblou Betão e deixou Marinho para trás. Livre de marcação, foi até a frente da área e bateu de pé esquerdo. Preciso, bem no canto. Inalcançável para o goleiro Marcelo. Santos 1 a 0, placar final.

O momento mágico de Geílson lavou a alma da torcida. O garoto ainda marcaria mais um gol, o da vitória contra o Rio Branco, contribuindo com seis pontos para a reconquista do campeonato paulista. No total, em duas temporadas, disputou 51 jogos com a camisa do Santos e fez 14 gols. Ainda em 2006, sofreu uma contusão no joelho e, após meses de recuperação, foi emprestado ao Al Hasen, da Arábia Saudita. Na volta, foi para o Atlético-PR.

CONVERSA COM O CAPITÃO (II)

Caro Zito,

Imagine se, vindo de Taubaté, no início dos anos 1950, você encontrasse pela frente alguns desses torcedores que dizem: “O Santos é dos santistas. O Santos é de Santos. Não precisa de gente de fora.” Você teria voltado para o seu Vale do Paraíba e logo estaria em qualquer outro time. Não teria escrito uma das mais belas histórias da história do Peixe. Felizmente, aconteceu o contrário.

Você foi bem recebido, enturmou-se rapidamente com o elenco praiano e acostumou-se à cidade. Fez como o mineiro Formiga e associou-se ao clube o mais rápido possível. Anos depois, tornou-se o jogador mais importante do futebol brasileiro, como não canso de dizer, jogando ao lado do melhor jogador do mundo, no mais fantástico time que já se viu. Os provincianos daquela época, se existissem, teriam feito um belo estrago, se o rejeitassem.

E olhe que, de fato, podiam-se formar seleções brasileiras de altíssimo nível, apenas com jogadores da região. Era só ir pegando Gilmar, Olavo, Alfredo, Pavão, os irmãos Valente, Gonçalo, Antoninho Fernandes, Del Vecchio, Odair, Cláudio Cristóvão do Pinho, o cabecinha de ouro Baltazar, o “filé de borboleta” Pagão, o canhão da Vila Pepe… Timaços!

Dava gosto ver os craques incríveis que brotavam na região, como brotam siris nas praias de Cananeia a Paraty, como se reproduzem caranguejos nos mangues do rio Cubatão e do canal da Bertioga, como crescem bananeiras nos contrafortes da Serra do Mar, do Vale do Ribeira ao Vale do Paraíba. Esses eram então os limites da Grande Santos. Para não ir longe, era só atravessar o Canal 2 e selecionar as preciosidades que o velho Papa cultivava no viveiro de Ulrico Mursa. Ou descobrir onde o itinerante Xabuca estava treinando naqueles dias.

A concorrência era enorme, Zito, mas como prescindir de você, do Hélvio Piteira, da experiência do Jair Rosa Pinto, do talento de Vasconcellos, e da turma que chegou depois – Dorval, Coutinho, Mengálvio, Mauro, Calvet, Lima, Dalmo, Geraldino, Carlos Alberto Torres, Cláudio Adão, Abel, Edu, Lyra, Juary, Batata, João Paulo, Dema – para se juntar aos talentos nativos – como o alagoano Clodoaldo, seu sucessor, Negreiros, Pita, Nenê e o senador Joel Camargo. Foi dessa mescla que nasceu e viveu o grande Santos. Você veio, viu e venceu, porque não encontrou um xenófobo pela frente. E, com você, o Peixe conquistou o mundo e uma legião de fãs por onde passou.

Foi assim, da mesma forma, que se fez a nossa torcida, a mais bonita de todas. Dessa comunhão de brasileiros e brasileiras de todos os cantos, alimentada por insondável paixão. Que cresce movida por certezas que não se explicam, apenas existem para nos fazer rir e chorar. Que nos veste com a mesma bandeira imortal, disfarçados de operários do porto, executivos da Avenida Paulista, surfistas e pescadores do imenso e belo litoral brasileiro, caipiras do nosso rico hinterland, estudantes e anciões, trabalhadores da cidade e do campo, camioneirose portuários, homens e mulheres de todos os lugares. Médicos como o Dr. Táki Cordás, artistas como Chorão e Zeca Baleiro, jornalistas como a Bia Andrade, que você conhece, Zito, e também o admira.

(continua)

CONVERSA COM O CAPITÃO (I)

Caro Zito,

Você é meu ídolo desde os inesquecíveis domingos da segunda metade dos anos de 1950, em que meu pai – o Bom Fonseca – conseguia colocar seus pirralhos para dentro da Vila, sem poder curtir com os próprios olhos, por absoluta falta de grana, sua segunda maior paixão. Segunda porque o primeiríssimo lugar era ocupado pela Bela Dolores, mãe de seus doze filhos, alguns deles provavelmente gerados simultaneamente a um gol do Santos.

Com tal produtividade, o casal não podia desperdiçar a súbita calmaria que se instalava no minúsculo chalé do Marapé, enquanto o Peixe dava recitais. De modo que parte da formação da nossa família humilde e feliz sem dúvida se deve à magia do time de branco.

Mas não estou aqui para falar da fonsecaiada. Estou aqui para encher a sua bola, Zito. Você é meu ídolo, o maior da história do Santos, na parte que conheço, a partir da segunda metade dos anos de 1950. Para mim, você está acima do Rei e dos que vêm a seguir. Entre outros, as equipes inteiras daquela época; a trinca de dirigentes formada por Athié, Roma e Moran; os treinadores Lula e Antoninho Fernandes; e os recentes Giovanni, Diego, Robinho e Neymar. Todos eles ajudaram a construir a mística do Peixe. Para mim, porém, você é um pouco mais.

É, por exemplo, o mais importante jogador brasileiro. Não é heresia. Pelé, sem dúvida, é o melhor de todos os tempos. Mas foi sob o seu comando que o menino Gasolina virou Pelé, que o Santos transformou o jogo da bola em fantasia e que a seleção livrou-se do complexo de vira-lata. Daí sua inigualável importância, Zito.

As novas gerações talvez não saibam, mas até o Mundial de 1958 o Brasil não ganhava nada. Jogava bem, empolgava as plateias … e perdia sempre. Aqui mesmo, no sul da América, era freguês de carteirinha de uruguaios e argentinos. Tudo mudou quando você assumiu a liderança do escrete nos campos da Suécia, e fez o que fazia no Peixe: ensinou que era possível jogar bonito e ganhar.

Há quem atribua esse papel a Didi e Nilton Santos, também magníficos futebolistas. Só que eles representavam em linha direta as gerações perdedoras de 1950 e 1954. Aquelas que sucumbiram diante da força de Obdulio Varella e da fantástica equipe húngara. Outros dirão: ah, mas na Suécia tivemos Garrincha e Pelé. E eu responderei que nunca nos faltaram craques. O que faltava era você, Zito. A novidade de 1958 foi o comando do seu espírito vencedor.

(continua)