São Santos

No início dos anos 1960, eu estudava no seminário dos padres Paulinos, no quilômetro 17 da Rodovia Raposo Tavares, antes de Cotia. Cada turma tinha uma sala fixa, na qual passávamos as tardes entre aulas e horários de estudo. Pela manhã, trabalhávamos na gráfica, que imprimia livros, revistas e jornais católicos. De manhã bem cedo assistíamos à missa diária e, à tardinha, rezávamos o terço. Fora isso, três refeições, os recreios depois do almoço e da janta e a cama, para um sono profundo.

Nas classe, cada um tinha sua carteira, onde guardávamos livros, cadernos e o material escolar. Sobre elas, alguns colocavam santinhos. Eu coloquei esse time do Peixe, recortado de A Tribuna nas férias anteriores e colado numa moldura de cartolina. O padre quis saber o que era aquilo. Respondi que eram Santos, mas não colou. Tive de desmontar o altar.

peixe 62

Anos mais tarde, com aquela escalação, fiz estes versos ruins:

Santos nomes

Gilmar dos Santos Neves

Uns mais longos, outros breves,

Como versos deste salmo.

Mauro Ramos de Oliveira,

Uma zaga quase inteira,

De cá Lima, de lá Dalmo.

Raul Donazar Calvet

E mais à frente Zito. Pois é:

José Ely de Miranda.

Mengálvio, e logo Dorval

Na exuberância infernal

De uma agitada ciranda.

Coutinho, Pelé e Pepe,

Ou Pagão, Pelé e Pepe,

Que o produto não se altera

Faça chuva ou faça sol,

Arte, graça e futebol,

Beleza em corpos de fera!

Tudo bem!

Bom dia, Sol! Bom dia, dia!

Omeprazol, Amaryl, Amoxilina!

Espero a noite com alegria,

Nada de estresse nesta rotina

 

Bom dia, taqui taquicardia!

Salve, salve, querida angina!

Nem te ligo, tatibitate arritmia.

Favor ir ver se estou na esquina.

 

Vias aéreas ou baixas.

Tudo certo, tudo Rivotril.

Cadê as lindas caixas

Do inescapável Isordil?

 

Viva bem, viva contente,

Seja smart, seja sagaz

Tenha sempre um bom estente.

Um ou dois ou três ou mais!

Dois Santos: um ganhou o tri no México, enquanto os garotos viajavam pelas Américas

Com a bola parada, se a Globo chama reprise em horário nobre, também posso colocar minhas lembranças neste espaço. Volto 50 anos no tempo, para falar dos meses de maio e junho de 1970, quando a seleção ia para o México ganhar o tri, com decisiva contribuição santista, e o Peixe de Antoninho Fernandes juntava a garotada ao restante do time titular e viajava pelas Américas.

O time campeão da Taça Cidade de São Paulo

O Santos tinha oito titulares na seleção que, em 1969, classificou o Brasil para a Copa do México. No ano seguinte, porém, com a queda de Saldanha e a chegada de Zagallo, três santistas foram cortados: o goleiro Cláudio, já com problemas de saúde (morreria alguns anos depois, vítima de câncer), o lateral-esquerdo Rildo e o zagueiro Djalma Dias. Na verdade, por mérito, todos deveriam ter sido mantidos. Inclusive o goleiro, pois o botafoguense Rogério foi preservado pelo técnico, mesmo machucado. E ainda caberia o centroavante Toninho Guerreiro, em grande fase. Mas Zagallo não engolia o Peixe, que sempre surrava o Botinha dele, e acabou limitando a presença santista na Copa do México aos nossos cinco tricampeões: Joel Camargo, Carlos Alberto, Clodoaldo, Pelé e Edu.

Durante a Copa, sem essas cinco estrelas, o Santos excursionou pelas Américas. Foram mais de 40 dias entre América do Sul, América Central, Caribe e América do Norte (Estados Unidos e Canadá). Eu fui junto, como jornalista de A Tribuna. No dia da abertura da Copa (México x URSS, num domingo), estávamos em Nova York. O Santos jogou e perdeu da Inter de Milão, num Randall Island Stadium lotado pelas colônias italiana, portuguesa e cucaracha.

Teria empatado no fim, se o juiz não invalidasse um golaço de bicicleta do Douglas. O lance motivou uma eufórica invasão do campo pela torcida e acabou encerrando o jogo. Dias depois, em Toronto, demos o troco: 3 a 1. E seguimos por ali, entre EUA e Canadá, com a Copa rolando, sem que tivéssemos chance de assistir aos jogos. Também não sabíamos muito o que acontecia no México, pois na época as comunicações pessoais eram precárias e a imprensa local pouco espaço dedicava ao nosso futebol.

Aqui no Brasil, pela primeira vez uma Copa era transmitida ao vivo, ainda sem as cores, que só chegariam à nossa TV dois anos depois. Na América do Norte, o único jogo a que pudemos assistir foi Brasil e Inglaterra, num cinema de Toronto, repleto de torcedores da esquadra inglesa. Foi tensão do início ao fim e terminou com a belíssima vitória de 1 a 0.

Dois dias antes da final contra a Itália, o Peixe enfrentou o Milan, em Montreal, Canadá, num jogo que foi vendido para a região como uma prévia da decisão da Copa. Ganhamos de 1 a 0. No domingo da final no México, já estávamos na América Central, em San Salvador, onde o Peixe se exibiria contra um time local pouco depois do jogo no estádio Azteca. Ironia do destino, por causa da guerra com Honduras, que havia rolado ali, El Salvador era o único país de todo o continente que não recebia as imagens da TV mexicana. Ouvimos a decisão pelo rádio, transmissão em castelhano, em grupos espalhados pelos quartos do hotel

Só quando a vitória já estava assegurada e aproximava-se a hora de ir para o estádio, nos reunimos e comemoramos juntos. Era visível a decepção de Rildo e Djalma Dias de não estarem no México, àquela hora recebendo as faixas de campeões do mundo. Para piorar, ainda haveria uma partida na Costa Rica, antes da volta ao Brasil. De forma que, quando chegamos a São Paulo, lá pela quinta-feira seguinte, a seleção do Tri já havia voltado e as festas tinham terminado.

Treino no Central Park, em Nova York

O time da excursão tinha como base a equipe campeã de um torneio disputado entre os grandes paulistas, a Taça Cidade de São Paulo, durante a preparação da seleção para a Copa. Os rivais jogaram com sua força máxima, mas o campeão foi o time montado pelo técnico Antoninho Fernandes com vários jovens da equipe de aspirantes. Na viagem pelas Américas estiveram Joel Mendes (Edvar), Orlando Amarelo, Ramos Delgado (Paulo Davoli), Djalma Dias (Marçal) e Rildo (Turcão); Lima, Leo (Pitico) e Douglas; David, Picolé (Djalma Duarte) e Abel.

Também faziam parte dos times da época os meias Negreiros, Fito e Ibrahim, além do meia atacante Alexandre Bueno. Pelo menos um deles participou da excursão. Orlando Amarelo (Orlando Lelé, para os cariocas) e Picolé morreram muito jovens, assim como Djalma Dias, pai do Djalminha que, pra quem não sabe, é santista de nascimento. Djalma Duarte morreu aos 61 anos, em 2011. David era casado com a irmã do Pelé e o técnico Antoninho Fernandes foi um dos maiores craques da história do Peixe.

Tantos Santos!

Um site perguntou aos seus blogueiros, que eu saiba nenhum deles santista, qual é o melhor time brasileiro da história da Libertadores. Deu Santos por larga margem, na verdade a quase unanimidade, e não poderia ser diferente.

Se o Santos do bi continental e do bi mundial já era, e ainda é, o maior time do planeta em todos os tempos, como algum dos entendidos poderia indicar, por exemplo, o Flamengo? O representante carioca é dono de uma mísera Copa, diferente de São Paulo, do Grêmio e do próprio Peixe, que colecionam três cada?

Além de tudo, um título ilegítimo, conquistado após resultados fraudados pela arbitragem, nas fases classificatórias. E obtido em três jogos contra um tal Cobreloa (?) chileno. Pois um blogueiro solitário votou no clube que revelou Toró. Dá para entender: nas folgas, ele vai fantasiado torcer pelas cores do seu coração.

O episódio me leva a entrar na moda e, aproveitando a recessão do futebol, escalar os melhores times que vi jogar. Times do Santos, que acompanho desde metade da década de 1950, e que são imbatíveis inclusive diante das melhores seleções brasileiras, as de 1958 e 1970, ambas uma espécie de Peixe desfalcado.

Então, lá vai o melhor que vi jogar: Cejas, Lima, Joel Camargo, Marinho Peres e Léo; Clodoaldo, Pita e Giovanni; Dorval, Pagão e Robinho.

Ops, me enganei. Na verdade, esse é o que antigamente se chamava segundo quadro. O primeiro é o seguinte: Gilmar, Carlos Alberto, Mauro, Calvet e Edu; Zito e Mengálvio; Neymar, Coutinho, Pelé e Pepe.

O truque de escalar o ponta Edu na lateral esquerda, para não cometer o crime de deixá-lo fora, é do Tostão. E eu acompanho.

O legal é que dá para formar um terceiro time, quase tão genial quanto os dois primeiros: Rodolfo Rodrigues, Ramiro, Ramos Delgado, Alex e Dalmo; Dema, Antoninho Fernandes, Diego e Aílton Lyra; Chulapa e Abel.

Vejam que ficaram de fora o goleiro Cláudio, os zagueiros Formiga, Orlando Peçanha e Djalma Dias, os laterais Geraldino, Ismael, Rildo, Danilo e Alex Sandro; os meias Álvaro, Brecha e Ganso; e os atacantes Nilton Batata, Manoel Maria, Odair Titica, Vasconcellos, Del Vecchio, Juary, Toninho Guerreiro, Cláudio Adão, Eusébio e João Paulo.

Além dos muitos que certamente esqueci, ou não vi jogar, como Athié, Arnaldo Silveira, Feitiço, Ary e Araken Patusca. Entre estes estão os santistas das primeiras seleções brasileiras, na segunda década do século passado; a mitológica linha dos 100 gols, de 1927; e os campeões de 1935, ídolos gigantes de um passado mais distante.

Falando sério, o Santos dos esquecidos seria suficiente para encarar o primeiro quadro de todos os tempos de qualquer outro time ou seleção.

O Santos é o time do céu. Mas o tinhoso vive ciscando

Em 2004, o antigo Portal do Santista Roxo revelou um personagem de ficção, em textos atribuídos a um certo Argemiro da Veiga, que assinava a coluna “Tesoura Afiada” e se dizia proprietário de uma barbearia no Macuco, bairro popular de Santos, próximo ao porto. Ali, uma freguesia variada discutia futebol, especialmente o Peixe. Nos comentários anotados pelo barbeiro, destacavam-se as observações do portuário aposentado Nicácio Silva Pinto. Mas o velho morreu no mesmo dia em que Diego partiu para Portugal, e a coluna parou. Ano e meio depois, em janeiro de 2006, Argemiro relatou uma conversa que teve em sonho com o amigo falecido. O texto faz referência à dispensa do ídolo Giovanni.

A Santos de Santa Terezinha e o Santos do ataque dos deuses

“Tem o Santos que é coisa daqui de cima, Argemiro, feito à imagem e semelhança do Criador. Ou você acha que Robinho surgiu assim, por conta da sabedoria dessa gente aí? Que foi o turco – e você sabe que eu respeito muito o Athié – quem guiou os passos do menino Pelé até a Vila? Claro que não, amigo. Só que também tem o Santos do general Osman, o vice-presidente que “vendeu” Coutinho, Carlos Alberto e meio time do Peixe para um jornalista da Placar, pensando que tratava com um empresário do Marrocos e que o negócio era das Arábias. Caiu num conto de 1º de abril. Esse Santos é coisa do demo.”

Parecia um sonho ver o Nicácio com o jornal dobrado em cima dos joelhos, sentado na cadeira junto à porta do salão, iluminado pelo fiozinho de sol que atravessava a cortina. A conversa sempre começava daquele jeito, como continuação das notícias que ele tinha acabado de ler na Tribuna, mas indo da frente pra trás. Da conclusão para os fatos, da moral para a história, do resumo para a ópera. Eu, que conhecia bem o finado, digo, o velho, conferia com o rabo do olho os assuntos do jornal que chamavam a atenção dele, para depois não boiar. Tava na cara que, naquela manhã, ele ia falar do Giovanni.

Antes de continuar, porém, é importante explicar que foi sonho mesmo, porque eu ainda não dei de ver fantasmas e todo mundo sabe que o Nicácio morreu, coisa de ano e meio, quando o Diego, desamarrou o barco dele do nosso cais e foi pro outro porto, o de Portugal. Além do mais, nunca incorporei espírito e nem acredito nisso, que me desculpe Matilde, a mulata do 47, que diz encarnar um índio velho num terreiro do Golfo. Toda sexta-feira.

De forma que o Nicácio continuou falando, dentro da minha cabeça, enquanto eu dormia, de segunda pra terça. Me entreteve tanto, eu que me agito demais nessas noites quentes de janeiro, que foi uma estirada só, do fim do Big Brother até as seis da manhã. “Acorda, Argemiro. Abre o olho que aí tem coisa … Sol forte na capital da Baixada … Sou Peixe, mas não sou trouxa … ” Ouvi, ou pensei ouvir, antes de pular da cama, sem saber se quem falava era o Nicácio do sonho ou o locutor do rádio despertador.

“O Santos daqui de cima é um time abençoado, que recebe a ajuda divina para resolver as encrencas do pessoal aí de baixo. Mas não é caridade, Miro. Esta turma gosta mesmo do Peixe. Você precisava estar aqui comigo (“eu, heim!”) para ver como a galera se divertiu naquele domingo em que o Robinho e o Leo fizeram gato e sapato dos infelizes, na Vila. Foi 3 a 0, lembra? O Chefe também estava de bom humor, mas no fim do jogo disse uma coisa que me deixou grilado: ‘Aproveitem enquanto é tempo!’”.

Aí o Nicácio explicou como é que funciona. O Cara é Peixe e ponto! Mas tem de ser justo. Não pode ficar favorecendo sempre o time dEle. De vez em quando, deixa a coisa correr frouxa. São aquelas fases tétricas que a gente passa, achando que o Santos de glórias mil (deve estar enturmado com o Plínio Marcos, o velho ranzinza) acabou. Larga a mão só pra dar um gostinho pros que vivem reclamando nas divinas orelhas.

Como o Vicente “benditos os que sofrem” Matheus. “Dizem, porque eu ainda não tinha vindo para cá, que o corintiano fez um escândalo quando viu Robinho e Diego pela primeira vez com as camisas brancas. Justo contra quem? É, isso, naquele 3 a 1 que abriu o mais recente tabu contra o ‘faz-me rir’. Era só um amistoso, mas o marido de dona Marlene pressentiu o que viria pela frente, já que conhece como ninguém as mumunhas de ser um bom freguês do Peixe.”

“Pô, Pai! Por que é que Você só leva esses garotos pra Vila? Já não bastava o Pelé, aquele insuportável? E, agora, esses dois meninos?” – bronqueou. A resposta até hoje é lembrada pelos boleiros daqui: “Do que reclamas, Matheus? Não vês os tipos que coloco na direção do Nosso clube, digo, do clube deles?”

Mas o Nicácio, que duvida de tudo e não aceita explicação simplória, quis saber que história é essa de que Deus não pode ajudar só o Santos, para não ser injusto com os outros? Deus é Deus, pode tudo. Se ele quer, faz e pronto. Conversa daqui, assunta dali, me disse o Nicácio que conseguiu desvendar o mistério.

“Sabe o que é, Miro? Cabeça não é só o lugar por onde as palavras passam, indo da orelha para a boca. Cabeça é pra pensar. Não é para usar que nem esses repórteres que ouvem qualquer coisa e vão correndo transmitir pro povão, se achando muito informados. É por isso que todo dia dizem barbaridades nos jornais, na rádio, na televisão. Furos … n’água. Ou você também acreditou que o Giovanni foi dispensado porque não está nos planos do Luxemburgo?”

Esse era o ponto, mas o Nicácio não falaria do Giovanni. Naquele momento do sonho, ele ainda explicava porque o Homem, que gosta tanto do Santos, não faz logo o time ter sempre os melhores jogadores e ganhar todos os campeonatos. “Se fosse assim, que graça teria? Você não viu o que aconteceu com o Otávio, que papava todas as meninas? Ficou tão fácil que ele mudou de time. Saiu da linha e foi pro gol. Acabou desfilando na Dona Dorotéia com faixa de Rainha da Estiva e tudo o mais.” Tive de concordar com o falecido, digo, com o velho.

“Tem que ter emoção, Argemiro. É por isso que, de vez em quando, você vê são-paulino e corintiano se achando. Palestrino pensando que é mais. Nunca serão, porque isso Ele não vai permitir. No máximo, deixa os caras terem um pouco de alegria, pra depois o sofrimento ser maior e a nossa felicidade, mais completa. O Próprio, contam os hóspedes antigos daqui, percebeu que iria morrer de tédio, se tivesse de passar a eternidade tomando conta do jardim sem pecado. Foi quando teve a ideia genial de transformar o seu melhor assistente no anjo do mal. Inventou o capeta, para animar o pagode aí embaixo.”

“Levanta, Argemiro. Sol forte na capital da Baixada…” Nesse momento, eu acordei e o sonho acabou. Tomei um banho gelado, bebi o café em dois goles e saí andando pro salão com a cara e as palavras do Nicácio rodando na cabeça. Foi assim o dia inteiro, tentando não esquecer nada e querendo voltar logo pra casa pra colocar tudo no papel, à noite. De tanto pensar, acabei escrevendo coisas que ele não disse. Culpa daquele filme do poeta que ensina pro carteiro o significado da palavra metáfora. O Nicácio também era meio poeta, com a prosa cheia de imagens, dando cor às ideias.

Foi desse jeito que ele falou do Santos do céu, que nunca vai ser destruído pelo Santos das trevas, porque é o Santos do Antoninho Fernandes e do Zito, do Balero e do Jair Rodrigues, do Athié e do Lula, do Guilherme e da Nanda, do Rei Pelé e do Canhão, do Toninho Neves e do Márcio, do Ary Fortes e do Abel Neto, do Salu e do Sabuzinho, da Leila e da Laurinha, do Bom Fonseca e da Bela Dolores, do Mário Covas e do Supla, do Osvaldo Martins e do professor Sílvio, do Bob Marley e do Mano Brown, do Jun e do Rafa, da Bia e da Vilminha, do Agostinho e do Serrano, do Taki Cordás e do Bento, do Mengálvio e do Chulapa, do Chadad e do Zelli, do Emicida e do Chorão, da Mari e da Fernanda, dos Setúbal e dos Bracher, do Zé Lúcio e do Lúcio Cardin, dos Oliva e dos Gomes, do Tonico Duarte e do Mauricy Moura, do Luís Álvaro e do Hase, do Manente e do André, da Jovem e da Sangue. O Santos do Renato Teixeira e da Nossa Senhora Aparecida.

Esse time, que é o paraíso dentro dos nossos corações, nos faz aceitar como pequenas provações tristezas como a dispensa do Giovanni.

A cidade e o time

A Santos antiga do Bom Fonseca, com Urbano Caldeira 
à direita e Ulrico Mursa à esquerda

Depois da comemoração dos grandes eventos da semana passada, os 108 anos do Peixe e os 109 do Bom Fonseca, surgiu-me a mensagem abaixo, postada pelo velho não sei por qual via eletrônica. Então, o texto não é meu. Eu só reproduzo

“O certo, meu filho, seria todos virem a este mundo no lugar em que serão felizes e tendo o time certo para torcer. Eu recebi as duas bênçãos. Nasci na beira do mar, na cidade que Braz Cubas fundou para fazer a felicidade de seus filhos, e o meu time chegou no momento exato, quando eu estava por completar um ano de idade. Dois Santos. A cidade e o time.

Meu time foi fundado na noite de 14 de abril de 1912, ano da quinta Olimpíada da era moderna, que Estocolmo realizaria entre junho e julho. E eu nasci um ano menos cinco dias antes, no claro mês das garças forasteiras, das Palavras ao mar de Vicente de Carvalho. Ainda assim, desde que abri os olhos, apressado, já era duplamente santista.

Tão santista quanto eu, só a bela por quem me apaixonei anos depois em Eldorado Paulista, então Xiririca, e com quem casei e fiz família. No meu coração, tenha certeza, o Peixe já existia. E aos pés firmes da Dolores, jamais outro solo assentou-se com tal naturalidade como o destes lugares entre a serra e o mar – sem dúvida, a única e definitiva pátria da Bela Dolores.

Para vocês, você e seus nove irmãos, livres de insignificantes incompatibilidades (cronológicas, geográficas), foi fácil assumir a dupla identidade. Nasceram na cidade abençoada; tiveram desde sempre o melhor time para torcer.”

O Bom Fonseca, como sempre, está coberto de razão.

Um homem simples e bom

Paixões do Bom Fonseca: a Bela Dolores, a família e a cidade

Falou no Bom Fonseca, falou em Santos, Instituto Adolfo Lutz (repartição em que ele foi servente até se aposentar), centro antigo, cinemas de bairro, Marapé e José Menino. Em todos os lugares e cantos da Baixada Santista por onde circulou a pé ou de bicicleta, a trabalho ou lazer. Desde que nasceu na cidade, há 109 dias, no 19 de abril de 1911, ele foi acima de tudo santista.

Falou no Bom Fonseca, falou na Vila Belmiro, também centenária como o time que fez daquele lugar o seu palco preferido. Porque o Bom Fonseca, o Santos e o estádio são da mesma década, a segunda do século passado. Nasceram, sucessivamente, num intervalo de cinco anos, de 1911 a 1916.

Essa conjugação foi que nos fez, os filhos do casal, apaixonados pela cidade e pelo clube. E foi o que também nos tornou frequentadores assíduos da Vila, mesmo sem dinheiro para o ingresso aos jogos.

O curioso é que não recordo uma única vez em que estive com ele em dia de jogo dentro do “campo do Santos”, como então chamávamos Urbano Caldeira. Mas foram inúmeras as vezes que ele nos levou até lá, só pelo prazer de nos colocar no antigo espaço reservado aos “Meninos do Santos Football Club”, como se grafava na época. Missão cumprida, ele voltava para o chalé de madeira e, desconfio, para os braços da Bela Dolores.

Acompanhando a pelada de fim de ano dos filhos na praia

É provável que algum fonsequinha foi gerado na tarde de um daqueles domingos, ao som de um gol de Pepe narrado por Ernani Franco. O Santos da época, como os de hoje e de sempre, não cansava de fazer gols e o casal ia fazendo filhos: doze, contados os dois que não sobreviveram.

Estivemos juntos em vários jogos, mas no Pacaembu e no Morumbi. E aí era eu quem o levava, subindo penosamente a Serra do Mar em meu primeiro fusquinha. O Peixe era a alegria dele, ao lado da família. Era bonito ver sua felicidade na arquibancada, repetindo o adjetivo definitivo: o Santos é formidável. Tardes inesquecíveis.

Hoje, vou lembrar dele tentando me concentrar no seu caráter e no modelo de amor e honestidade que foi. Será difícil, porque foi dele mesmo a ideia de nos fazer tão santistas. No fundo, porém, nem há como separar sentimentos e valores. Pois as lições nos foram legadas pelo mesmo homem simples e bom.

Carlos Alberto fala, e o Brasil começa a conquistar o tri

Falo de acontecimentos de 50 anos atrás, caramba! Falo da manhã do dia 2 de fevereiro de 1970, em Santiago do Chile, quando o técnico Antoninho Fernandes movimentava o time, no intervalo de cinco dias entre a vitória sobre o Universidad local, por 2 a 0, e o confronto seguinte pelo torneio hexagonal, contra o América do México. Falo que nesse dia, quatro meses antes da estreia contra a Tchecoslováquia, em 3 de junho, com goleada de 4 a 1, o Brasil começou a ganhar o tri campeonato mundial de futebol.

O Santos disputou e venceu o torneio chileno duas vezes. Em 1965, também no formato com seis participantes, e em 1968, um octogonal que recebeu o nome do dirigente santista Nicolau Moran, morto durante a competição. Naquela terceira participação, não ia bem. Começou perdendo para o Colo Colo, por 3 a 4, dia 21 de janeiro, e empatou com o Dínamo de Zagreb, por 2 a 2, uma semana depois.

No intervalo, foi a Lima ganhar alguns dólares e goleou o Universitário por 4 a 1. Mesmo na primeira vitória, 2 a 0 sobre o Universidad de Chile, o futebol mostrado não agradara nem aos chilenos nem aos santistas. Havia tensão dentro do grupo. Talvez uma crise estivesse começando.

Não parecia haver motivo para tanto. Pouco mais de dois meses antes, o mundo inteiro acompanhara a festa do Maracanã, no dia 19 de novembro, quando Pelé marcou seu milésimo gol. Vestia a camisa toda branca do Santos no jogo do campeonato brasileiro contra o Vasco da Gama e comemorou pedindo atenção especial para as crianças.

De fato, o ano anterior não fora ruim. O time conquistou o tricampeonato paulista e foi confirmado vencedor da Recopa Mundial ao bater o Inter de Milão na Itália. Em 1968, tinha levado a Recopa Sul-Americana. São dois títulos de expressão internacional, que deveriam merecer estrelas na contagem de nossas conquistas continentais e mundiais.

Nada indicava, portanto, alguma tempestade em futuro próximo. Quase todo o time santista participou em agosto da classificação brasileira para a Copa do México, com seis vitórias no grupo II sul-americano. A seleção jogou primeiro em Bogotá (2 a 0), Caracas (5 a 0) e Assunção (3 a 0), e depois no Rio de Janeiro (6 a 2, 6 a 0 e 1 a 0), e passou fácil por Colômbia, Venezuela e Paraguai. Seis vitórias, 23 gols pró e só 2 contra.

Nada menos que nove jogadores do Santos integraram o time do técnico João Saldanha: Cláudio, Carlos Alberto, Djalma Dias, Joel Camargo, Rildo, Clodoaldo, Toninho, Pelé e Edu. Crise? Com essas feras todas?

No Chile, não estavam três delas. O goleiro Cláudio fora abatido pela doença que o mataria anos depois. Edu estava machucado e Toninho, o Guerreiro, tinha sido vendido ao São Paulo, na virada do ano. Era a primeira vez que o Santos se via obrigado a se desfazer de um titular, ainda por cima reforçando um rival direto na disputa do campeonato paulista, na época a competição mais importante do calendário nacional (o atual campeonato brasileiro só começaria em 1971).

O resultado é que o time do Morumbi, que amargava longo jejum e que havia se reforçado também com o meia Gérson, ganhou dois Paulistas seguidos, proporcionando a Toninho Guerreiro transformar-se no até hoje único penta campeão paulista de forma consecutiva. Em 1967, 1968 e 1969, pelo Santos e, em 1970 e 1971, pelo São Paulo.

Nem com as três ausências se poderia dizer que o Santos estava enfraquecido. Aos 28 anos, Pelé vivia o esplendor de sua forma. Carlos Alberto e Clodoaldo eram titulares inquestionáveis e Joel Camargo, Djalma Dias e Rildo eram aspirantes legítimos à titularidade na seleção que iria ao México. Além disso, o time ainda contava com o experiente zagueiro Ramos Delgado e com o goleiro Joel Mendes, recém contratado.

O ataque sentia mais os desfalques, mas tinha Coutinho de volta, e o companheiro de tabelinhas de Pelé, ainda que bem acima do peso, compensava o lado físico com uma técnica descomunal. E, nas pontas, havia a velocidade e os dribles de Manoel Maria e Abel. Um grande time que, entretanto, não jogava bem. Por isso, naquela manhã de fevereiro de 1970, em Santiago do Chile, Carlos Alberto pediu a palavra.

O capitão estava incomodado com a liberdade que o Santos dava ao Rei, que era autorizado a participar de compromissos comerciais até no exterior. Naqueles dias, gravara alguns filmes para a campanha publicitária de uma empresa de combustíveis, deixando para isso a concentração no hotel El Conquistador, de Santiago. Carlos Alberto não gostava daquilo e suas palavras foram em parte dirigidas ao companheiro.

A crítica indireta a Pelé não era justa (nos poucos anos em que cobri o Santos, testemunhei que, de todo o elenco, ele era o mais empenhado nos treinos), mas a advertência fazia sentido. O lateral, preocupado também com o fraco desempenho no início do torneio chileno, alertou o time para as mudanças que aconteciam no futebol.

Camisa não ganha mais jogo, disse ele. Só talento não basta mais. Os adversários evoluíram. Precisamos ter vontade, garra, determinação. Hoje, se fosse Dunga, o capitão falaria em comprometimento. Se Tite fosse, pediria foco. Todos ouviram em silêncio e, em seguida, o técnico Antoninho Fernandes organizou um rachão.

Entrei na ponta esquerda de um dos times, para completar o grupo, mas fui substituído ao errar o passe no primeiro toque na bola. Perdi minha chance, mas o grupo do Santos, semanas depois, seria decisivo na conquista definitiva da Taça Jules Rimet, no estádio Azteca.

Tudo dentro da normalidade

Há onze dias, em 6 de abril, comentaristas da mídia, pensadores e próceres de vários poderes e níveis deram o governo Bolsonaro por morto e enterrado. Foi aquela segunda-feira tensa, em que o jornal O Globo anunciou a demissão do ministro da Saúde. O afastamento de Mandetta não se confirmou e a desculpa que a oposição encontrou para explicar a barriga foi dizer que o presidente havia recuado, sob pressão dos presidentes da Câmara e do Senado e do STF, de instituições da sociedade civil e de militares do próprio Palácio.

Se destituísse o ministro, seria ele a cair, diziam as ameaças enviadas pelo Congresso e pelo Supremo. Completando a articulação, o lamentável presidente da OAB ameaçava entrar com mais uma ação contra o presidente. A TV Globo e seus analistas vibraram, comemorando a suposta fragilidade de Bolsonaro. O ministro resistente o havia transformado em rainha da Inglaterra. Continuava no cargo, mas não tinha poder. A guerra estava ganha.

A felicidade era tanta que o pessoal se descuidou. Ninguém prestou atenção aos movimentos seguintes de Bolsonaro. Nada por baixo do pano, com exceção de prováveis consultas às lideranças da Forças Armadas. Vários contatos físicos com a população, pelo menos um deles ao lado do ministro da Saúde, encontro com o presidente do Senado e o anúncio de que, se fosse preciso, usaria a caneta. Naquele domingo foi ao ar a entrevista de Mandetta ao Fantástico.

Insuflado por companheiros de partido, sedentos de um impeachment que abra caminho para Botafogo (codinome de Maia, na planilha de propinas da Odebrecht), e envaidecido com o apoio da mídia e de insondáveis pesquisas de opinião, o ministro pagou para ver. A resposta veio quatro dias depois. No momento em que foi demitido, o sucessor Teich já esperava na antessala, pronto para assumir e acompanhar o presidente na coletiva de imprensa.

No dia da vendeta, Bolsonaro ainda afrontou a Globo com uma entrevista exclusiva concedida à concorrente CNN, pouco antes do JN. De quebra, aproveitou o espaço para espicaçar Rodrigo Maia. Na crítica mais amena, disse que o povo brasileiro não merece o que o presidente da Câmara está fazendo. Com tanto desaforo, esperava-se uma edição sangrenta do principal telejornal da emissora hegemônica, tipo versão eletrônica do extinto Notícias Populares. Não foi o que aconteceu. O JN daquela noite foi manso, quase irreconhecível. Esteve perto da isenção, qualidade que há muito desconhece.

O próprio Maia, entrevistado em seguida pela CNN, fugiu da raia. Disse que não iria discutir com o presidente e que preferia falar do que o Congresso tem feito para enfrentar a pandemia, muito em parceria com o governo. Perdeu a Globo a possibilidade de responder à caneta (bola entre as pernas) que levou da emissora concorrente, sem passar recibo. Era só chamar o sempre disponível presidente da Câmara para rebater Bolsonaro. O aliado, porém, recusou o confronto.

Tem-se que as reações à troca no Ministério da Saúde foram protocolares. No geral, representantes da chamada esquerda incluídos, lamentaram a demissão de Mandetta, mas desejaram sucesso ao novo ministro. Até o governador paulista, tão belicoso, preferiu a cautela. O que teria acontecido? Foi só a palavra de Gilmar Mendes, na véspera, afirmando que o presidente podia demitir o ministro. Ou houve algum recado mais claro e explícito, recebido talvez por Alcolumbre na reunião do Palácio? Fato é que mesmo a tropa de choque do STF, tão pressurosa em criar dificuldades para o governo, segurou as caçarolas.

A demissão virou um ato banal, como deve ser. Saiu um ministro indicado pelo presidente e entrou outro, nomeado pelo mesmo presidente. Sem crise, sem traumas, de forma que Bolsonaro recuperou o poder, se é que havia perdido. Só fique muito claro que estas análises são feitas a partir do que leio e ouço na grande mídia, sem juízo de valor sobre acerto e erro na mudança. Antes que me chamem de bolsonarista ou coisa pior.

A maior torcida do Brasil

Santistas na noite mágica do tri

Tempos atrás, um programa esportivo, produzido e apresentado no Rio de Janeiro, recuperou uma pesquisa nacional feita pelo jornal carioca O Globo, no início de 1969, para medir a paixão dos brasileiros pelos seus times. Talvez tenha sido a primeira pesquisa do gênero, e o resultado é inquestionável. O Santos ficou em primeiro lugar, com 49%, seguido muito de longe por Flamengo (menos da metade), Corinthians (ainda mais distante) e um grupo composto por São Paulo, Vasco, Palmeiras, etc.

Do segundo colocado para baixo, todos somados não alcançaram a votação do Peixe. Uma vantagem tão grande, que o insuspeito jornal foi levado a admitir: o Santos é o time mais popular do Brasil!

Mesmo assim, os comentaristas cariocas da mesa tentaram relativizar. A pesquisa não perguntou pra que time os brasileiros torciam, alegaram. Quis simplesmente saber de que time os brasileiros mais gostavam. Papo furado. A grande “torcida” que o Flamengo sempre teve no Norte-Nordeste é formada por torcedores de times locais, os quais também simpatizam com o clube que revelou Toró, Fabão e Júnior Baiano.

Coisa pior, entretanto, estava por vir. E veio. Foi quando o apresentador mostrou uma escalação do Santos daqueles anos e perguntou: dá pra cravar que esse foi o melhor time brasileiro? A resposta óbvia é: “Não, Pedro Bó, esse não foi o melhor time brasileiro. Esse é o melhor time de todos os tempos no mundo!”

Mas os botafoguenses, foram rápidos: Não, não dá para cravar o Santos como melhor time brasileiro, disseram. “Jogador por jogador…”, começou um. “O Santos conquistou mais títulos, é verdade…”, emendou o outro. “Mas o Botafogo teve Garrincha, Didi, Nílton Santos…”, concordaram ambos, chegando afinal ao ponto. O que eles queriam era nivelar o Peixe ao seu grande freguês. Então, combinaram, ganhar mais títulos não seria critério para se medir superioridade, ainda que o Santos tenha conquistado todos os títulos e nada tivesse deixado para o suposto rival. E ainda que alguns desses títulos tenham decorrido de surras homéricas aplicadas justo nesse adversário. Foi muita cara de pau!

No quesito escalação, no qual os botafoguenses se consideravam em vantagem, a comparação é ainda mais risível, e cruel. O Santos anos 1960 teve Gilmar, Carlos Alberto, Mauro, Calvet e Dalmo; Zito (Clodoaldo) e Mengálvio; Dorval, Coutinho (Toninho), Pelé e Pepe (Edu). Com exceção de Dalmo, todos campeões com a seleção, todos detentores de títulos mundiais. Cada um muito mais vitorioso do que o mais vitorioso botafoguense. Nenhum deles, incluindo seus maiores ídolos, tem os títulos locais, nacionais, sul-americanos e mundiais que os santistas têm, inclusive Dalmo. E vários dos nossos “reservas”, os irmãos Ramiro e Álvaro Valente, Pagão e Lima entre eles.

Botafogo, além de ser hoje codinome de político corrupto, para mim é sinônimo de alegria. Desde a primeira vez em que vi os dois em confronto direto na Vila. Rio-São Paulo, 1957. O Santos de Dorval, Álvaro, Pagão, Del Vecchio e Tite enfiou 5 a 1 no time de Nílton Santos, Didi e Garrincha. Pelé entrou no fim. Tinha 16 anos e nem precisou marcar.

A visão regional da mídia esportiva sempre produziu ideias bizarras. Talvez, naquela mesa da TV, os comentaristas quisessem estabelecer a seguinte maluquice: o Santos foi o melhor time do mundo, mas na mesma época o Botafogo foi o melhor time do Brasil. Interessante! O problema é que o Botafogo, naquele tempo e em nenhum outro, sequer foi o segundo melhor por aqui. Já então, o Palmeiras tinha mais time e ganhava mais títulos do que o time carioca, que, como diz seu hino, é campeão de 1910.