Falo de acontecimentos de 50 anos atrás, caramba! Falo da manhã do dia 2 de fevereiro de 1970, em Santiago do Chile, quando o técnico Antoninho Fernandes movimentava o time, no intervalo de cinco dias entre a vitória sobre o Universidad local, por 2 a 0, e o confronto seguinte pelo torneio hexagonal, contra o América do México. Falo que nesse dia, quatro meses antes da estreia contra a Tchecoslováquia, em 3 de junho, com goleada de 4 a 1, o Brasil começou a ganhar o tri campeonato mundial de futebol.
O Santos disputou e venceu o torneio chileno duas vezes. Em 1965, também no formato com seis participantes, e em 1968, um octogonal que recebeu o nome do dirigente santista Nicolau Moran, morto durante a competição. Naquela terceira participação, não ia bem. Começou perdendo para o Colo Colo, por 3 a 4, dia 21 de janeiro, e empatou com o Dínamo de Zagreb, por 2 a 2, uma semana depois.
No intervalo, foi a Lima ganhar alguns dólares e goleou o Universitário por 4 a 1. Mesmo na primeira vitória, 2 a 0 sobre o Universidad de Chile, o futebol mostrado não agradara nem aos chilenos nem aos santistas. Havia tensão dentro do grupo. Talvez uma crise estivesse começando.
Não parecia haver motivo para tanto. Pouco mais de dois meses antes, o mundo inteiro acompanhara a festa do Maracanã, no dia 19 de novembro, quando Pelé marcou seu milésimo gol. Vestia a camisa toda branca do Santos no jogo do campeonato brasileiro contra o Vasco da Gama e comemorou pedindo atenção especial para as crianças.
De fato, o ano anterior não fora ruim. O time conquistou o tricampeonato paulista e foi confirmado vencedor da Recopa Mundial ao bater o Inter de Milão na Itália. Em 1968, tinha levado a Recopa Sul-Americana. São dois títulos de expressão internacional, que deveriam merecer estrelas na contagem de nossas conquistas continentais e mundiais.
Nada indicava, portanto, alguma tempestade em futuro próximo. Quase todo o time santista participou em agosto da classificação brasileira para a Copa do México, com seis vitórias no grupo II sul-americano. A seleção jogou primeiro em Bogotá (2 a 0), Caracas (5 a 0) e Assunção (3 a 0), e depois no Rio de Janeiro (6 a 2, 6 a 0 e 1 a 0), e passou fácil por Colômbia, Venezuela e Paraguai. Seis vitórias, 23 gols pró e só 2 contra.
Nada menos que nove jogadores do Santos integraram o time do técnico João Saldanha: Cláudio, Carlos Alberto, Djalma Dias, Joel Camargo, Rildo, Clodoaldo, Toninho, Pelé e Edu. Crise? Com essas feras todas?
No Chile, não estavam três delas. O goleiro Cláudio fora abatido pela doença que o mataria anos depois. Edu estava machucado e Toninho, o Guerreiro, tinha sido vendido ao São Paulo, na virada do ano. Era a primeira vez que o Santos se via obrigado a se desfazer de um titular, ainda por cima reforçando um rival direto na disputa do campeonato paulista, na época a competição mais importante do calendário nacional (o atual campeonato brasileiro só começaria em 1971).
O resultado é que o time do Morumbi, que amargava longo jejum e que havia se reforçado também com o meia Gérson, ganhou dois Paulistas seguidos, proporcionando a Toninho Guerreiro transformar-se no até hoje único penta campeão paulista de forma consecutiva. Em 1967, 1968 e 1969, pelo Santos e, em 1970 e 1971, pelo São Paulo.
Nem com as três ausências se poderia dizer que o Santos estava enfraquecido. Aos 28 anos, Pelé vivia o esplendor de sua forma. Carlos Alberto e Clodoaldo eram titulares inquestionáveis e Joel Camargo, Djalma Dias e Rildo eram aspirantes legítimos à titularidade na seleção que iria ao México. Além disso, o time ainda contava com o experiente zagueiro Ramos Delgado e com o goleiro Joel Mendes, recém contratado.
O ataque sentia mais os desfalques, mas tinha Coutinho de volta, e o companheiro de tabelinhas de Pelé, ainda que bem acima do peso, compensava o lado físico com uma técnica descomunal. E, nas pontas, havia a velocidade e os dribles de Manoel Maria e Abel. Um grande time que, entretanto, não jogava bem. Por isso, naquela manhã de fevereiro de 1970, em Santiago do Chile, Carlos Alberto pediu a palavra.
O capitão estava incomodado com a liberdade que o Santos dava ao Rei, que era autorizado a participar de compromissos comerciais até no exterior. Naqueles dias, gravara alguns filmes para a campanha publicitária de uma empresa de combustíveis, deixando para isso a concentração no hotel El Conquistador, de Santiago. Carlos Alberto não gostava daquilo e suas palavras foram em parte dirigidas ao companheiro.
A crítica indireta a Pelé não era justa (nos poucos anos em que cobri o Santos, testemunhei que, de todo o elenco, ele era o mais empenhado nos treinos), mas a advertência fazia sentido. O lateral, preocupado também com o fraco desempenho no início do torneio chileno, alertou o time para as mudanças que aconteciam no futebol.
Camisa não ganha mais jogo, disse ele. Só talento não basta mais. Os adversários evoluíram. Precisamos ter vontade, garra, determinação. Hoje, se fosse Dunga, o capitão falaria em comprometimento. Se Tite fosse, pediria foco. Todos ouviram em silêncio e, em seguida, o técnico Antoninho Fernandes organizou um rachão.
Entrei na ponta esquerda de um dos times, para completar o grupo, mas fui substituído ao errar o passe no primeiro toque na bola. Perdi minha chance, mas o grupo do Santos, semanas depois, seria decisivo na conquista definitiva da Taça Jules Rimet, no estádio Azteca.