Estes apontamentos foram preparados para o debate “O movimento de 1964 e a imprensa brasileira”, realizado pela CPFL em Campinas, nos 40 anos do golpe militar. Lá estive ao lado da professora Vera Lúcia Chaia, da PUC-SP, e dos jornalistas Alberto Dines e Jorge da Cunha Lima.
Ao longo dos 21 anos da ditadura militar, não há um comportamento único, linear, lógico, pensado a longo prazo. Nem dos ocupantes do poder com relação à imprensa, nem desta com relação ao significado e à natureza do regime. Mas é claro que o AI-5, promulgado em 13 de dezembro de 1968 (O ano que não terminou, do jornalista Zuenir Ventura), representou a inflexão da quartelada de 1964 para a ditadura de fato, com todos os recursos que caracterizam os regimes de força, inclusive no que toca ao controle dos veículos de informação.
O ato permitiu as demissões sumárias e a cassação de mandatos, suspendeu os direitos políticos, interditou as garantias constitucionais de liberdade de expressão e de reunião e liberou o lado repressivo do regime, ao tornar sem efeito o habeas corpus nos casos de “crimes políticos contra a segurança nacional”. Uma tentativa de organizar o pensamento sobre aquele período da história recente do país é dividi-lo em três fases. A duração de cada uma delas é temporalmente desigual, mas pode-se visualizar nelas algum padrão na atitude de ambos os lados, imprensa e governos, com as naturais exceções e desvios.
Na primeira fase, estão quase todos do mesmo lado. Todos contra Jango: os chefes militares, a alta hierarquia da Igreja, as principais lideranças políticas. Os grandes grupos jornalísticos da época, com os Diários Associados e O Estado de S. Paulo à frente, apoiam o golpe. Teriam até participado da conspiração. As exceções são Última Hora de Samuel Wainer, logo sufocada, e o Correio da Manhã, que especialmente nas crônicas de Carlos Heitor Cony, coloca-se na oposição em seguida ao golpe. Os presidente militares do período são Castello Branco e Costa e Silva.
A segunda fase é a virada do AI 5, que prorroga o regime militar, fecha o Congresso, coloca os partidos políticos na ilegalidade e estabelece-a censura à imprensa. O desencanto com as cassações soma-se à frustração das restrições às atividades políticas, sindicais e corporativas. A imprensa divide-se entre a subserviência e a resistência. Censura prévia (Estado, Veja, Tribuna da Imprensa e alternativos) e autocensura, sob os governos Costa e Silva e Medici.
Na terceira fase, é anunciada a distensão lenta e gradual dos generais Geisel e Golbery. Promessa de abertura política e fim da censura cooptam a grande imprensa. O fim do “milagre”, a crise econômica mundial provocada pelos países produtores de petróleo do Oriente Médio e a derrota da Arena nas eleições legislativas atrapalham o processo. Consequências: a reação da linha dura (assassinato de Vlado, 1975), a Lei Falcão (1976) que emudece a campanha eleitoral, o recrudescimento da censura literária (Zero, Loyola, e Feliz Ano Novo, Rubem Fonseca, 1976), o pacote de abril (1977). E, bem mais tarde, a explosão de 1º de maio no Riocentro (1981). Sob Geisel e Figueiredo, surgem a Campanha das Diretas, Já! e a luta pela anistia, ampla, geral e irrestrita.
De início, o projeto de controle dos militares parece excluir a imprensa. O jornalista Osvaldo Martins, diz na Cult: a ditadura é tão envergonhada (emprestando a expressão de Élio Gaspari) que não implantou a censura à imprensa, item número 1 de qualquer ditadura que se preze. Os jornais estão livres para elogiar a “revolução” que eles mesmos haviam feito. Depois da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, liderada por um grupo de senhoras católicas, vem a campanha Doe Ouro para o Bem do Brasil, organizada pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand. O Congresso, depurado pelas cassações, também fica aberto.
Os inimigos declarados são o comunismo e a corrupção, leia-se, os militantes das organizações e partidos de oposição (incluindo os sindicatos não dominados pela pelegada e as entidades estudantis) e os velhos políticos. Para isso, bastariam as prisões dos líderes mais conhecidos da esquerda e dos movimentos populares, o fechamento de organizações como a UNE e a CGT. As resistências são controladas pontualmente, como na invasão e fechamento da UnB e a prisão de 15 de seus professores, ainda em 1964.
Mais tarde vêm as cassações de mandatos e as suspensões de direitos políticos, a implantação do bipartidarismo, bem como a suspensão do calendário eleitoral. O AI-2, de 1965, torna indiretas as eleições majoritárias previstas para aquele ano. Ainda se fala em preservar a democracia ameaçada pelo comunismo, com a transformação do Brasil em uma nova Cuba, mas os setores mais esclarecidos do conservadorismo nacional percebem que os militares, dessa vez, chegaram para ficar no poder. A grande imprensa começa a refletir a insatisfação desses setores diante dos rumos do regime e do banimento de seus principais líderes (Juscelino, Lacerda e Magalhães Pinto) da vida pública. Todos tinham o sonho de voltar ou chegar à Presidência da República, mas, afinal, não haveria mais eleição.
Última Hora, de Samuel Wainer, Correio da Manhã, com Cony (“Da salvação da pátria”, 2/4/1964), e Tribuna da Imprensa, de Hélio Fernandes, são os emblemas desse período. Os jornais têm liberdade de opinião e crítica, mas há represálias, tentativas de intimidação de redações e jornalistas na prisão. Já no dia 14 de março de 1964, telefonemas para a redação e a casa de Cony transmitem ameaças de um grupo que se denominava “oficiais do Exército”.
A ditadura militar entra na segunda fase. Instala-se a censura, antes do AI-5. Os emblemas do período, na Imprensa, são os jornais do Grupo Estado, a Veja, os alternativos Opinião e Movimento, O Pasquim (a resistência pelo humor, a desqualificação do regime pela ruptura dos padrões de comportamento – Sérgio Porto e o Febeapá, na linha inaugurada já a 2 de março por Cony) e O São Paulo, da Arquidiocese paulistana. Tribuna da Imprensa permanece sob censura prévia até 1978. Ruy Mesquita diz na Justiça Militar que ele mesmo escreveu títulos, olhos e legendas de determinada reportagem, preservando profissionais do Jornal da Tarde. Júlio Mesquita Neto declara que, enquanto houver censor dentro do Estadão, a responsabilidade editorial é do ministro da Justiça, Alfredo Buzaid.
O grupo muda o foco da cobertura: a política perde importância e tem seu espaço ocupado pelo noticiário militar e de outras áreas, como sindicalismo, saúde, educação, direitos humanos, qualidade de vida, economia, carestia, direito do consumidor, meio ambiente, questões fundiárias e indígenas, igreja, movimento social, diplomacia. Temas bem indigestos ao gosto militar. Exemplo: Agnaldo Silva no JB e uma reportagem sobre depredações nos trens de subúrbio do Rio. A nota oficial distribuída pela comunicação do regime tenta desestimular a reportagem que apura e vai fundo. Os repórteres policiais do Estadão/JT – Inajar, Percival e Fon – e a investigação da tortura. Oban, DOI-CODI e a ligação policial-militar institucionalizando a repressão como prática de defesa do governo. Muitos jornalistas são presos entre 1974 e 1975. Estoura o caso Herzog (ver neste blog a série “Vlado, 43 anos”).
A terceira fase começa com a promessa de distensão do governo Geisel. Os encontros de Golbery com jornalistas. A cooptação da imprensa: o governo quer abrir, mas tem de enfrentar a resistência da linha dura e a mídia “precisa ajudar”. Com exceção da imprensa alternativa, que continua censurada, os donos dos jornais voltam a assumir o controle das redações: Mino Carta cai na Veja, a direção de redação do Estadão é substituída: sai Clóvis Rossi, entra Miguel Jorge, futuro diretor da Volks e ministro de Lula. Ou seja, o inimigo das lutas sindicais de São Bernardo vira “companheiro” no governo petista.
A crise econômica e o endividamento dos jornais. No Sul, o Grupo Caldas Júnior vai à falência e abre espaço para o Zero Hora (Sirotsky). O Estadão é tirado do buraco pelo Bradesco e outros investidores, numa operação costurada por Delfim. Os jornais alternativos resistem: além da equipe fixa, jornalistas de outras redações produzem reportagens para eles, muitos ajudam nos fechamentos, sempre “na faixa”. Eesse noticiário: inédito no país, abastece as centrais informativas que funcionam no exterior.
Com o fim da censura e a posse de Figueiredo, a imprensa volta praticamente à normalidade. A televisão já domina o mercado da comunicação, os alternativos fecham, prevalece o autocontrole do noticiário. O fracasso da greve dos jornalistas em 1979 e o fracasso da experiência do Jornal da República de Mino Carta desmobilizam os jornalistas. Após o caso Riocentro, a mídia em geral assume a resistência ao regime militar, com o apoio tardio da Globo à campanha das diretas.
Que proveito a imprensa pode ter tirado do período militar? Um deles é a regulamentação da profissão de jornalista, em 1969. A reportagem ganha força, com a valorização da apuração em lugar do jornalismo opinativo (que volta tão forte em nossos dias). A atuação da imprensa no afastamento de Collor está em linha direta com o aprendizado dos anos de chumbo. A atual geração de jornalistas, e a própria direção das empresas jornalísticas, é herdeira dos profissionais que viveram e ser formaram naqueles tempos. O acompanhamento sério e responsável da atuação dos agentes do poder é excepcionalmente valoroso, mas o denuncismo e o engajamento político-partidário, decorrente do polarizado “bem contra o mal”, são tão perniciosos quanto inaceitáveis.