Santos, 1950-60 – Parte I

Naqueles tempos, se os amigos que conheci depois eram da Vila Rica, do Gonzaga e do Boqueirão, nós nunca moramos a menos de oito quadras da praia. Enquanto vivi em Santos, minha família foi do Campo Grande ao Marapé, do Macuco à Encruzilhada. Sempre contornando a Vila dos Sonhos e tendo por quintal um mundo descomunal. Tanto maior quanto a memória recua e o garoto se apequena.

Um mundo que reunia todos os morros, todos os postos e canais, todos os mangues e todas as praias entre Bertioga e Peruíbe. E percorria o cais e suas bocas. Pois eram várias as bocas ao longo do porto. E chegava ao Centro, com suas lojas de mil réis e a primeira escada rolante da região. E esticava até a Zona Noroeste, na direção de São Vicente, pela linha 1 do 2º BC, onde Pelé serviu e eu escapei do serviço militar. Linha 1 do fedorento Matadouro Municipal, os urubus voando em círculo, bem alto.

Aposto que eles, esses amigos posteriores, nunca pegaram uma catraia colorida na Bacia do Mercado, rumo a Itapema, que hoje chamam Vicente de Carvalho e que a maledicência da época apelidou de Cornolândia. É que o trabalho no outro lado do porto ou nas indústrias de Cubatão substituía os maridos ausentes, nas casas simples do bairro, por tórridos e imaginários romances nas tardes úteis das semanas.

Temos a mesma idade, alguns desses amigos e eu. Por isso, nossas memórias são quase as mesmas. Mas eles nunca nadaram nos valões que se abriram nas ruas de terra do Marapé, para a colocação dos tubos do esgoto. Não subiram o morro, indo catar coquinho brejaúva ou colher bico de papagaio para vender na feira. Não invadiram quintais e roubaram carambolas, goiabas, mamões, amoras, pitangas e abricós. Não mancharam indelevelmente com o roxo do jambolão as puídas camisas, que a bem da verdade nunca vestiram – as puídas camisas, digo.

Nunca arriscaram a vida, meninotes a saltar do bonde em movimento, depois de passar de um estribo a outro, do boque ao reboque, fintando o cobrador. Nem mudaram a direção dos trilhos com qualquer alavanca ao alcance das mãos, só para ver a fúria do motorneiro lusitano (um, dois, três, pau no cu do português) e a algazarra dos passageiros, quando o coletivo seguia reto ao invés de virar, ou virava quando devia seguir reto. Seu cobrador, não leve a mal, eu vi sua mulher agarrada com o fiscal! Era terrível ser motorneiro ou cobrador, e ainda por cima patrício!

Quem nunca contornou a Lagoa da Saudade, tão linda no alto do morro, é certo que jamais arriscou um mergulho da Pedra do Tarzan ou do temível trampolim da Ponta da Praia. Bem ali no início do canal do porto, que se cruzava a remo, de baleeira, em direção às aventuras da praia do Góes, do Forte dos Andradas e da Pouca Farinha. Para tirar das tocas da areia fresca e molhada o melhor berbigão.

Esse amigo aí sequer deve imaginar onde ficam Itatinga e Praia das Vacas. É capaz de acreditar que a Ilha Porchat e seu clube só passaram a existir depois da chegada de um afetado caipira, o qual, ao preço de muita boca-livre para jornalistas, estrelas da tevê e decadentes personalidades paulistanas, transformou as noites dos mares do sul em assunto de programas populares, sonho de consumo país afora.

Ainda que a ilusão de luxo fosse produzida pela profusão de frutas baratas espalhadas em torno da piscina e nas areias daquele canto de praia. Nada que uma ida à feira do bairro não pudesse resolver, se a intenção dos casais era encher sacolas. Casais, diga-se, nada interessados em orgias pagãs, pois, mal vencida a demorada fila de entrada, e feita a abundante colheita, punham-se de volta aos apartamentos dos prédios próximos à vicentina Praia dos Milionários. Talvez se sentissem magnatas, curtindo noites havaianas de luxo e riqueza, degustando queijos, mangas e abacaxis, ao som da festa que rolava até a manhã seguinte.

(continua)

Publicado por

Marcão

Jornalista aposentado, casado, duas filhas, um neto, dois poodles e nove irmãos. Santista de mãe, pai, cidade, time e o que mais bem qualifique essa condição. Sem vaidade, só verdade!

2 comentários em “Santos, 1950-60 – Parte I”

  1. Fiz quase tudo isso. Ia bolar aula no Itapema de catraia, é claro, ou ao Monte Serrat pela escadaria e ao Nova Cintra nadar na Lagoa. A partir dos 13 anos andar do armazém 7 até o 31 entregando ou recolhendo capatazias marítimas (vale pro bonde só pra volta), visitar a avó no Marape quase todo com ruas de terra e as enormes valas abertas na Carvalho de Mendonça; desviar os bondes 8 e 18 de seu destino na rua Luis Gama com o ferro de arriar a porta da farmácia, enfim, o que qualquer garoto nornal nascido no Macuco fazia.

  2. Ah, sim. E haviam os bailes. E matinês dançantes, nos clubes, nas casas de amigos ao som de uma “Sonata”, no Centro dos Estudantes. A maioria dos meus amigos dançava. Íamos juntos nas tardes de sábado à algum lugar onde tivesse música e garotas. Resistimos ao twiste como deu porque o bolero nos dava a viva sensação de ter a moça nos braços e às vezes no coração. Namorei muitas delas sem que elas soubessem. Tomei muita taboa, pisei dedos, fui afastado delicadamente quando a aproximação ficava inconveniente. Anote aí, moços e moças dançavam, e juntos.

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