Coisa mais fácil de encontrar na noite da Baixada, qualquer dia da semana, qualquer época do ano, eram os grupos de choro. Os chorões. Bem tarde, você no ponto, de volta da escola ou da casa da namorada, esperando o ônibus, e lá vinham eles, antecedidos do som inconfundível. Era puro enlevo.
Ou você entrava no bonde, e dava de cara com eles. Até na travessia da balsa cheguei a encontrá-los. Violão, cavaquinho, pandeiro, quatro ou cinco músicos que nada falavam, não conversavam entre si, nem cantavam. Só tocavam. E como tocavam! Uns após outros, os grandes clássicos da nossa música saltavam das cordas: Pixinguinha, Nazareth, Jacob, Zequinha, Chiquinha, Waldir. De onde surgiam ou para onde iam, não faço ideia. Daí que acho que eram criaturas fantásticas, cruzando meu caminho só para me encantar!
Perdoando-os desde logo pela pouca idade, é claro que os meus amigos de muito depois não toparam com o seresteiro Mauricy Moura cantando sucessos da época em um boteco qualquer da noite santista. “Eu daria tudo o que pudesse…” E a arrepiante “Sou santista/Tu vais me perguntar/Sou santista/Meu samba vai falar…” Nem prestigiaram o restaurante que Tite, nosso ponta-esquerda do time abusado que nascia, montou no caminho da Ponte Pênsil, onde era a atração com seu violão.
Ambos, o calunga Mauricy e o craque Tite, tinham no repertório as canções do gaúcho Lupicínio Rodrigues e do santista Lúcio Cardim, que poucos sabem ser o autor de Matriz e filial, magnífica interpretação de Jamelão. De fato, nem imaginam do que falo. Seja lá o que desconheçam: Mauricy, Lupicínio, Cardim, Jamelão, Matriz e filial…
Se não sabem de tais monumentos, é claro que nunca foram a uma batalha de confete para ver as Dengosas do Marapé, os Romanos do Campo Grande, os Chineses do Mercado, a Embaixada de Santa Teresa, as Esmeraldas e a Cruz de Malta. Porque essa monumental folia é do tempo em que os blocos na rua eram a melhor coisa do carnaval, e o frevo pulado nas ruas arrepiava.
A proeminência das escolas de samba – com as maravilhosas X-9, Império e Brasil – viria mais tarde. Sinto muito não terem visto a Bola Alvinegra desfilar com o Rei, para mim não faz tanto tempo assim, nos entornos do templo sagrado da Vila Belmiro. Lamento não terem atendido o convite dirigido à Dona Dorotéia, mas extensivo a todos: vamos furar aquela onda?
Os meus amigos teriam, como eu, saboreado os tremoços da patrícia gorda que fazia ponto, todo jogo, sob as sociais de Ulrico Mursa? Teriam ajudado a cobrir de cuspe e cutucões o infeliz goleiro adversário, nas pugnas contra a briosa burrinha? Teriam usado de todos os artifícios para invadir a Vila? Ah, a Vila! Os recitais do Peixe! O Santos de glórias mil do Plínio Marcos!
Quando troco ideias com meu quase contemporâneo Braz Cubas, chegamos à conclusão de que a cidade fundada por ele é um lugar enfeitiçado. Maravilhoso como o país de Alice. Pois onde mais poderiam surgir gentes, lugares e fenômenos tão arrebatadores? E, de quebra, um time como o nosso, de reis, príncipes e uma corte completa? Dos malabaristas Kaneko, Edu e Mané Maria. Do capitão Zito. De Araquém, Athié, Odair, Coutinho, Pelé e Pepe. De poetas da bola, como Pagão, Giovanni e Dom Antônio Fernandes.
A máquina de fazer gols, versos e canções. Para se ver de joelhos, entoando as mais fervorosas orações de graças ao Criador.
(Continua)
Que belas memórias, Zé Fernando! A história do violinista é maravilhosa!