A Bela e o Bom

Ele adorava cinema e futebol. De assistir e de jogar.

Ela gostava de música. De dançar e de cantar.

A praia era o denominador comum dos dois. Mas é claro que havia outros prazeres, dos quais nasceram doze fonsequinhas. Dois não vingaram, mas os outros dez continuam por aqui.

A Bela entra na contagem regressiva dos 100 anos exatamente hoje. Fecha o centenário no próximo 5 de maio. Nasceu em 1919, no fim da primeira grande guerra. Trouxe a paz e a alegria.

Já não dança, mas canta como ninguém. Brejeira, feliz e maliciosa. Ouçam A casta Suzana, marchinha dos anos 1940, na voz dela. Ou Quixabeira do meu Acaré. Ou, ainda, a lindíssima Prece ao vento, com todos os versos.

Essa menina é demais!

E o que dizer do Bom Fonseca, que nasceu em 19 de abril de 1911 e nos deixou em 16 de junho de 1983? Esta parte fica para o aniversário dele, daqui a duas semanas.

O claro mês das garças forasteiras

Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras;
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro:
E as leves garças, como folhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas…

Em Palavras ao mar, Vicente de Carvalho canta o mês de abril, das garças forasteiras. O mês que também é do meu pai, o Bom Fonseca, 1911, dia 19. Ambos santistas, o poeta num 5 de abril de 1866. Ainda menino escreveu seus primeiros poemas e aos 16 anos, com uma licença especial, entrou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, para concluir o curso aos 20, em 1886.

Vicente de Carvalho participou das campanhas abolicionista e republicana. Atuou na advocacia, na política, no jornalismo e nos negócios. Colaborou com os jornais O Estado de S. Paulo e A Tribuna. Em 1889, fundou o Diário da Manhã e, mais tarde, O Jornal, ambos em Santos. Publicou em 1902 Rosa, rosa de amor, livro que o tornou conhecido como o poeta do mar.

Em Poemas e canções, surgem os temas sociais, como a escravidão (Fugindo ao cativeiro) e a miséria (A voz do sino). Vicente de Carvalho morreu em Santos, no dia 22 de abril de 1924. Chegou e partiu na “primavera de ouro”, como preferiu falar dos seus outonos.

O cronista que cantou o Santos e Pelé

O jornalista De Vaney, nascido em Ribeirão Preto e criado no Rio de Janeiro, mudou-se para Santos em 1939. Quando passou a trabalhar em O Diário, na Rua do Comércio, endereço em que funcionou depois o Cidade de Santos (ambos extintos), De Vaney já havia assistido a duas Copas do Mundo: a de 1934, na Itália, e a de 1938, na França. O jornalista apaixonou-se prontamente pela cidade e, com seus textos maravilhosos, fez também os santistas apaixonarem-se por ele.

Não é exagero afirmar que, durante quase três décadas na imprensa santista, Adriano Neiva da Motta e Silva, seu nome de batismo, foi o mais brilhante e premiado cronista esportivo do País. Como colaborador, trabalhou para os principais jornais brasileiros, foi correspondente de veículos da América do Sul e da Europa e influenciou várias gerações de jornalistas. Ganhou todos os concursos de que participou – entre eles o promovido pelo jornal O Globo, do Rio, que deu a Santos o título de município mais esportivo do Brasil – e escreveu diversos livros, como a série História Oficial dos maiores clubes de São Paulo.

De Vaney foi o primeiro jornalista a entrevistar Pelé, pouco depois da chegada do menino de Bauru ao Santos, em 1956. A partir dali, acompanharia toda a carreira do Rei, ajudando a criar a mística em torno do maior jogador de futebol de todos os tempos. Entre o fim dos anos 1960 e o início dos 1970, porém, algo  fez o jornalista desentender-se com o jogador. Tornou-se, então, o maior crítico de Pelé, especialmente da decisão dele de abdicar da seleção brasileira, em 1971.

De Vaney nasceu em 22 de fevereiro de 1907 e morreu em 29 de janeiro de 1990, em Santos. Em 1971, em entrevista ao jornal Notícias Populares, de São Paulo, ele contou como se construiu o mito Pelé, segundo registrado pela antologia A crônica esportiva, publicada pela prefeitura santista. A seguir um trecho da narrativa do jornalista:

Recordemo-nos, por exemplo, de uma irradiação feita por Geraldo José de Almeida: “Gol de Pelé! Gol do craque café! Só Pelé faria um gol assim!” Nisso, o locutor de campo interrompeu: “Olha, Geraldo, o gol foi de Coutinho!” Geraldo não se perturbou: “Só Pelé daria um passe assim!” Nova interrupção do repórter de campo: “Olha, Geraldo, o passe foi de Dorval!” Mas Geraldo saiu-se com esta: “Um gol assim só com Pelé dentro do campo!” O repórter de campo completou: “Só Pelé perderia um gol com essa elegância, com essa majestade de rei do futebol!”.

Na sequência, o entrevistador pergunta a De Vaney se para ele, então, Pelé é só mística: De maneira alguma. Pelé foi o maior jogador que vimos jogar. Mas os senhores hão de convir de que também jogaram muito por ele.

Se não há honestidade, que haja coerência

No dia da prisão do Temer, um ex-funcionário do PT, hoje comentarista de rádio (eles estão por todo lado, após o fim das boquinhas), disse que a sentença do juiz da Lava Jato criminalizava a política e prejudicava o governo na sua relação com o Congresso. Por consequência, afirmou o militante, colocava obstáculos à tramitação e aprovação do conjunto de reformas preconizadas pelo Executivo.

O comentarista é o que se chama de “jornalista político”. Esse tipo, em geral, se diz crítico feroz da “velha política” e fervoroso defensor da renovação das práticas políticas. Isso, é claro, da boca pra fora, em discursos vagos, meramente teóricos. Nas situações reais, alinham-se invariavelmente ao passado. Gostosamente, deixam-se abduzir pela conversa fiada das velhas raposas.

Assim que o governo enviou para a Câmara seus principais projetos, entre eles o de Moro, foi unânime a crítica a respeito de uma certa “falta de articulação”. É evidente que essa pílula de sabedoria política tem origem no parlamento, é vocalizada na mídia pelas lideranças queridinhas (entre elas a da oposição de esquerda, resistente) e conquista corações e mentes dos comentaristas, especialmente no rádio e na TV.

Nas sucessivas sessões de “eu acho que”, “uma fonte me disse”, “na minha opinião”, que preenchem a grade da emissora, as melhores cabeças da Globo News aderiram imediatamente. Não questionaram a conduta de quem usa o cargo público em defesa de interesses menores, nem procuraram a razão de o nhonhô fazer beicinho. Apenas insistiram: como o governo quer aprovar as reformas, se não tem “articulação política”? – reforçando a cobrança com sonoras dos mais inexpressivos porta-vozes do baixo clero, no qual hoje se incluem PT, PSOL e companhia.

Articulação política? Que bicho é esse? Para os çábios, articular é “fazer política”. Caramba! Genial! O comentarista da rádio falou. Os especialistas da TV repetiram. O governo precisa fazer política. Pois sim, sei, tá bom! Conversa fiada: isso aí é o velho toma-lá-dá-cá, o “é dando que se recebe”. Tão condenada em outros momentos, tais práticas parecem estar reabilitadas. Não são mais pecado.

O ex-funcionário do PT lamentou a criminalização da política, sem nominar os verdadeiros responsáveis por isso: os políticos corruptos, envolvidos nas bandalheiras que o projeto do Moro quer pegar e Rodrigo Maia prefere arquivar. Um desses alvos é justamente o oportunista menor, que herdou a Câmara de Eduardo Cunha e a manteve com benesses oferecidas aos pares.

Rodrigo Maia, subitamente reverenciado por grande parte da mídia e dos blogueiros “bem informados”, merece sua origem e é digno sucessor de Cunha. Deve ter motivos pessoais para querer barrar o projeto anticrime, com as justificativas que quiser. Jornalistas, porém, não têm o direito de entrar nessa conversinha. Nem de criticar a prisão de Temer, se há pouco reclamavam da imunidade que mantinha o ex-presidente fora do alcance da Justiça. Argumentavam, então, que o fim, o “fora Temer”, justificaria o atropelo da lei.

Jornalista, até para abrir mão da honestidade, deveria ser coerente.

A triste ideologização da tragédia

Tenho um comunista velho conhecido, daqueles que comiam criancinha, o que ele talvez continue fazendo. Esta semana, quando se discutia a ajuda israelense no resgate das vítimas do desastre criminoso de Brumadinho, entre manifestações a favor e contra, eis o que meu sensível conhecido escreveu: “Judeu não sabe resgatar corpos. O que sabe é enterrar corpos de palestinos”. Se você procurava uma mensagem edificante, humana, e absolutamente oportuna, acabou de encontrar.

O ogrismo não espanta. Essa gente, tipos que se dizem de esquerda, são como aqueles que preferem perder um amigo para não perder a piada. No caso, preferem ostentar todo o ridículo de que são feitos para não perder a oportunidade de militar e obrar em favor de suas lamentáveis causas político-ideológicas. Não abandonam um milímetro a trincheira da heroica resistência em que se julgam fincados, sem largar a mão de nenhum companheiro ou camarada.

Mas estamos apenas no aquecimento da mais recente batalha da guerra partidária iniciada na última campanha presidencial. A tragédia mineira ainda renderá fortes condenações de autoridades passadas (FHC, o “criminoso” responsável pela privatização da ex-Vale do Rio Doce) e das atuais (o governo Bolsonaro, que não soube ou não saberá tomar as duras medidas para punir os criminosos e prevenir futuras tragédias).

Como sempre, o olhar esquerdista brasileiro, qualquer que seja a miséria nacional em análise, é absolutamente cego para o intervalo de 16 anos lulopetistas, que separam o curto período de Vale privatizada no governo tucano e o mal transcorrido mês de governo toscano (de tosco).

Pois é! A esquerda teve treze anos e três reeleições para impedir que a “sanha capitalista” da Vale transformasse a mineradora em ameaça mortal aos infelizes vizinhos de suas barragens. E, como em todos os casos que exigiram pulso firme e determinação, nada fez, com Lula e sua sucessora, do que agora cobra dos adversários. Mesmo que estes, por enquanto, enfrentem Brumadinho com mais espírito público, presteza e competência, do que Dilma demonstrou em Mariana.

 Duas sugestões

Se eu pudesse dar uma sugestão às autoridades, no caso Vale, daria logo duas.

  1. Sempre que acontecer tragédia como a de Brumadinho e assemelhadas, a Justiça nomeia rapidamente um pequeno comitê de especialistas, indicados pelo Ministério Público, pela Polícia Federal, por entidades de classe dos engenheiros e advogados e pelos ministérios da área. No total, uns cinco profissionais que logo no primeiro dia fazem uma estimativa dos prejuízos humanos, materiais. ambientais e institucionais e definem pesada multa a ser imediatamente paga pelos responsáveis. A ideia é inverter o processo: os criminosos pagam primeiro e depois vão pleitear eventuais restituições.
  2. Em cada atividade de risco, cria-se um grupo de peritos fornecidos e remunerados pelas próprias empresas da área, para cuidar da rotina da fiscalização. O ideal é que os peritos atuem nas empresas concorrentes, mas nada impede que fiscalizem seus próprios empregadores, pois terão estabilidade funcional e assinarão termos de conduta reconhecendo a própria responsabilidade criminal em casos de desastre. Um fundo financeiro mantido pelas empresas cobrirá todos os custos operacionais do trabalho.

É claro que essas duas medidas não excluem punições imediatas a pessoas físicas, como a prisão de CEOs, gestores, funcionários, parceiros externos e agentes públicos envolvidos na tragédia, nos moldes das propostas pela procuradora Rachel Dodge. Algo do gênero foi aplicado preliminarmente contra funcionários da Vale e da empresa terceirizada que atestou a segurança da barragem de Brumadinho.

Santos 1950-1960 – Parte IV

Comecei a frequentar a Vila na metade da década de 50. Era um moleque feliz, que vivia descalço pelas ruas de terra do Marapé e que fazia do campo do Santos, do alto do morro e das areias do José Menino extensões do minúsculo quintal do nosso pobre chalé de madeira na Morvan Dias de Figueiredo. Naqueles tempos, o time de branco começava a se armar para conquistar o mundo e meus deslumbrados olhos só viam craques no nosso Peixe. Era vestir o manto sagrado para virar ídolo. E era incomparável a alegria das tardes de domingo no pequeno lance de geral reservado aos “meninos do Santos FC”.

A bombas do Pepe, os lançamentos do Jair da Rosa Pinto, a garra do Zito, a classe do Ramiro, a arte do Pagão, a força do Del Vecchio. Depois, Pelé e Coutinho, o chamado trio final de Gilmar, Mauro e Calvet. Mas o principal eram as goleadas, as chuvas de gols. Quatro gols em um jogo era pouco para aqueles ataques, que podiam ter Dorval e Tite pelas pontas.

Crescido, fiquei mais exigente. Para se ter uma ideia, durante anos não engoli o Toninho Guerreiro, em suas primeiras temporadas no Peixe, para mim um usurpador da camisa 9 tão finamente vestida por gente da estirpe de Pagão e Coutinho. Até que, encerradas as carreiras desses dois príncipes, tive de me render aos dotes do goleador que veio de Bauru para ajudar na conquista de nosso tricampeonato paulista, de 1967 a 1969. Toninho não era o fino da bola, mas foi um grande jogador e eu deveria ter tido mais respeito por ele.

Durante aquela década, acompanhei todos os jogos que pude, em Santos e em São Paulo. Muitas vezes, faltava grana para subir a Serra, mas na Vila sempre se dava um jeito de entrar de graça. Impossível era ir mais longe e o Peixe era cada vez mais um time do mundo, levado pelo brilho de Pelé e companhia e, também, pela clarividência da diretoria da época.

Athié, Roma e Moran tinham outra cabeça. Logo, perceberam que o negócio do Santos era o fantástico time de futebol. Viram que só alargando seus horizontes seria possível mantê-lo sempre forte. Daí que fomos decidir os nossos maiores títulos no Maracanã e fizemos de Montevidéu, Buenos Aires, Nova York, Paris, Berlim, Roma e Madrid, entre outras capitais, palcos cativos de nossos espetáculos. O Peixe exportação não perdeu um pingo de sua identidade com a cidade e com a torcida. Pelo contrário, nos dava orgulho ver multidões brigando por um lugar nos estádios que reverenciavam o nosso time.

Segui esse Santos em parte pelas imagens em preto e branco da televisão da época e principalmente pelo texto maravilhoso dos cronistas de A Tribuna. De Vaney, Chico Sá, Ary Fortes, Walter Rozzo, Gilberto Bezerra e J. Lima transformavam as excursões internacionais do time em epopeias dignas das narrativas de Marco Polo, em contos das Mil e uma noites. Até que virei jornalista, também, e fui cobrir o Santos, ainda de Pelé, Carlos Alberto, Ramos Delgado, Clodoaldo, Joel Camargo e Edu, na pré-decadência do início dos anos 1970. Acompanhava os treinos, entrevistava diretores, técnicos e jogadores. Ia aos jogos e participei, como membro da delegação, de viagens ao exterior.

A convivência profissional com o clube me transformou num outro torcedor. Os tempos também eram outros, o futebol se modificava, com a implantação de um profissionalismo algo exagerado e frequentemente equivocado. Passavam a prevalecer os interesses individuais num esporte até então considerado coletivo. Começava a surgir o “jogador maior que o clube e sua torcida”. Carlos Alberto Torres, por exemplo. De repente, no pior momento, quis porque quis voltar para o Rio. Achou que as coisas por aqui começavam a ficar ruins, mas, quando viu que lá podiam ser piores, voltou. Por pouco tempo.

Além de perder jogadores para a idade e incapacitado de fazer as reposições necessárias porque a infeliz compra do Parque Balneário exauria as finanças do clube, o Santos ainda sofreu perdas precoces de jogadores vítimas de contusões e acidentes. A doença nos tirou o goleiro Cláudio, batidas de carro praticamente encerraram as carreiras de Joel Camargo e Mané Maria, enquanto um joelho problemático brecou Djalma Duarte, jovem promessa vicentina.

Se o futebol começava a dar algumas tristezas, a vida naquelas praias era só felicidade. As famílias assistiam ao programa Sílvio Santos e à Jovem Guarda do Roberto, na TV, nas tardes de domingo. Mas eu, quando não tinha recital do Peixe na Vila, pegava minha fusqueta azul, a inesquecível Agripina, e fugia para São Lourenço, antes de Boraceia e da divisa com São Sebastião.

Na época, Bertioga pertencia a Santos e a praia não tinha sido desfigurada pelos condomínios. Levávamos um isopor cheia de gelo e latinhas. Estacionávamos na areia, estendíamos a esteira sob o guarda-sol e passávamos o dia ocupados apenas em, vez por outra, dar um mergulho. Nenhum dinheiro, mas para nós aquele pedaço deserto do litoral era a própria costa mediterrânea, de tão chic.

Minha namorada era linda, nunca chovia, e eu era o dono do mundo.

Perícia profissa

Agora que Michel Temer é passado e está pronto a ser alcançado pela força tarefa da Lava Jato, vale a pena reconstituir os bastidores de um momento chave da fase final dos governos petistas. Espinafrado pelos ex-aliados, o vice bom de bico tentou aos trancos e barrancos estancar o processo de decomposição do país, herdado da presidente afastada, mas enfrentou a fúria dos velhos amigos. Além disso, incorrigível, manteve o hábito de lambuzar-se com a coisa pública, e se perdeu.

Caiu na armadinha armada dentro da PGR, com a cumplicidade de um promotor público, do diretor jurídico Francisco Assis e Silva e dos donos do grupo empresarial JBS, Joesley e Wesley Batista. A mal ajambrada gravação feita por Joesley com o então presidente, em março de 2017, no Palácio Jaburu, revela na versão oficial que Temer teria estimulado o pistoleiro da proteína animal a calar o deputado Eduardo Cunha mediante propina. “Tem que manter isso, viu?”, disse o presidente, no trecho mais claro da fita. A versão a seguir é pura ficção, mas pode ter a mesma credibilidade.

 

00’00 – Ops, chefia, tem mais um “é” aqui na gravação.

00’03 – Onde? De quem?

00’06 – No meio daqueles três “és” que já tínhamos ouvido. Está entre o segundo e o terceiro “é”, da voz número 2. Na interrupção mais longa, sabe qual?

00’14 – Sei. Dá para cravar que esse “é” também é da voz 2, certo?

00’19 – Não tenho muita certeza, mas… Pode, sim!

00’22 – Então, é isso. Vamos avisar o delegado que já temos a confirmação. O presidente combinou com o delator a propina para comprar o silêncio do deputado.

00’31 – Poxa, tudo isso?

00’33 – Claro, companheiro! É o encadeamento lógico da conversa!

*****

00’00 – Chefia, pesquei mais um “inaudível”. Está bem no começo.

00’04 – E de quem é esse “inaudível”?

00’07 – Não deu para ouvir, hahaha.

(impublicável… silêncio)

00’11 – Desculpe, chefia. Deve ser da voz número 2, porque parece responder ao “boa noite!” da voz número 1.

00’16 – Então, vamos passar para aquele colunista político. Diga a ele que temos mais uma prova da relação íntima do presidente com o delator. Veja como é expressivo, como é caloroso esse “boa noite!”.

00’24 – Mas é um “inaudível”, chefia.

00’27 – É claro que não se ouve direito. Mas nota-se que o presidente é efusivo, é afetuoso com o visitante noturno.

00’33 – Bem… De certa forma… Claro, chefia!

00’38 – O que está esperando? Telefona pro jornalista!

*****

00’00 – Você viu a TV, ontem à noite?

00’03 – Vi sim, chefia!

00’05 – O que achou? Gostou?

00’07 – Aquela parte em que eles falam que comprovamos a cumplicidade do delator com o presidente ficou d+. Digo, demais.

00’14 – Foi muito bom, mesmo!

00’16 – E gostei quando eles disseram que conseguimos provar que o presidente mandou o delator pagar pro deputado ficar calado. Matou a pau!

00’22 – Eu também gostei…  Mas tem um problema!

00’25 – Que problema, chefia?

00’28 – Foi você que fez o relatório da perícia, não foi?

00’30 – Sim, chefia.

00’32 – Pois é! O juiz, o procurador e o delegado gostaram mais do texto da TV. Gostaram tanto que estão pensando em contratar um jornalista desses pra fazer os nossos relatórios.

00’38 – E daí, chefia?

00’40 – Daí que você dançou, companheiro!

Meu céu, meu mar

Impressionante. Desde que nasci nesta cidade, há 71 anos, aquele morro está lá, no mesmo lugar. Dizem que é a Ilha de Santo Amaro. Que seja! A vista daqui mostra, além do verde da mata e do azul do céu e do mar, as pequenas faixas de areia das prainhas do Góes e da Pouca Farinha, o branco do forte e, à direita, fora da foto, a ilhota das Palmas. Um amigo lembra da propaganda do vermute Cinzano, há anos retirada do cenário. Mas ela e os navios que hoje passam em maior número, não mudam a paisagem inesquecível. Até o fim, aonde quer que eu vá, ela estará nos meus olhos e no meu coração.

Santos, 1950-1960 – Parte III

Para mim, o Santos é o melhor do mundo desde os anos 1950, quando eu via com meus próprios olhos de garoto do Marapé, na Grande Vila Belmiro, o que o time de branco era capaz de fazer com a bola e com os adversários. Mas também sei que o Santos é o melhor desde muito antes, porque meu pai falou que era, ele que viu jogar os lendários times de Arnaldo, Araquém, Feitiço, Athié e Antoninho Fernandes. Ele garantia que já naqueles tempos nada havia de parecido no mundo do futebol – e o velho Fonseca nunca mentiu.

Não sei se todos sabem, mas nós Fonsecas somos Peixe desde antes do Peixe, porque o mais Fonseca de todos nós veio ao mundo um ano antes do time, em abril de 1911, na mesma cidade de Brás Cubas, de Nossa Senhora do Monte Serrat e do meu amigo Manente. E é bem provável que antes do fim daquela década o Fonsequinha – como ficou conhecido da Vila Mathias à Ponta da Praia, da Praça dos Andradas ao José Menino – botasse banca com os feitos santistas. Feitos como ceder três atletas, incluindo o capitão Arnaldo Silveira, às primeiras seleções brasileiras, na Copa Roca de 1914 e no Sul-Americano de 1919.

Pois, é! Meu pai dizia, quando nos levava e deixava na Vila, nos anos 1950, que o Santos foi formidável desde o início, e só não ganhou os títulos que viriam aos montes na segunda metade do centenário porque era invariavelmente prejudicado pela arbitragem. Já naquela época era muito duro para os donos do futebol, os times da capital e seus empertigados torcedores, engolir a supremacia forasteira. Ainda mais vinda de um lugar que ousava concorrer com a metrópole em relevância política e cultural, sem falar na beleza das praias e na desenvoltura da gente santista. O Santos era o máximo e a cidade, também.

Mas essa é só a primeira parte da mais bela história escrita dentro de um campo de futebol. A primeira e a menos conhecida. A segunda parte, que tive a felicidade de acompanhar e que continua enchendo de felicidade os corações alvinegros, dispensa relatos e adjetivos. Está fartamente documentada e, no conjunto da obra, é comemorada onde quer que haja um amante da arte da bola. Onde quer que estejam os craques de ontem e de hoje. Onde quer que pulse um sentimento praiano e vibre uma alma Fonseca.

 

 

 

 

Pelé sobre o menino Robinho: Ele sou eu!

Minutos finais de Santos e Guarani, na Vila, no início de 2002. O repórter de campo da TV anuncia uma substituição no Peixe e a câmara mostra o magrela saltitante na beira do gramado. Não é possível! A semelhança só pode nascer da minha enorme vontade de ver algo pelo menos parecido em campo. Do nosso lado, do lado branco, é claro. O juiz custa a autorizar a mudança, de modo que a TV pode mostrar um pouco mais do garoto, quase criança, olhar ansioso acompanhando a trajetória da bola.

Foi a primeira vez que vi Robinho. Nos minutos seguintes, quem estava ansioso era eu. Havia algo ainda mais inquietante a formar, tornar inescapável até, a comparação herética. Não é possível! As mesmas passadas rápidas, a disparada com a bola em direção ao adversário, o drible vertical, sempre no rumo do gol. Mas o jogo acabou cedo demais para outras constatações.

Dias depois, a imagem repetida. Santos versus São Paulo perto do fim. Por duas vezes, estivemos à frente no placar. Por duas vezes, o atacante tricolor França foi lá e empatou. O Santos parece sem forças de continuar buscando a vitória, quando Robinho entra de novo no gramado, com a mesma sem-cerimônia, o mesmo futebol abusado.

Tempo regulamentar esgotado, lá vai ele pela esquerda, da linha lateral em direção à área. Beletti, o zagueiro são-paulino, pensa que vai tomar o drible pela direita, mas toma pelo outro lado. Vencido, passa a rasteira e se garante ainda mais agarrando o serelepe pela cintura. O importante do lance acaba aí, com os dois jogadores rolando na grama. Depois, Diego cobrará a falta e o zagueiro Preto desviará de cabeça, deslocando o goleiro Rogério Ceni e assinalando a nossa vitória. Nada relevante. Apenas mais um gol, apenas outra vitória.

Eu estava maravilhado é com o drible anterior, e a imagem do raio não me saía da cabeça. Liguei o computador e escrevi aos amigos: parece que o raio caiu de novo no mesmo lugar. No total, na soma das duas partidas, haviam sido apenas uns 15 minutos de Robinho em campo, maso momento mágico me fez apostar: temos um pelezinho.

O veredito seria repetido, meses depois, na maravilhosa crônica do colorado Luís Fernando Veríssimo sobre a nossa conquista do campeonato brasileiro. “Parem as buscas”, decretou o escritor gaúcho. “O sucessor já foi encontrado, na mesma Vila Belmiro.” Veríssimo também citou o raio e usou como definitivo o vaticínio feito pelo próprio Pelé, anos antes, ao cruzar com o adolescente Robinho no CT do Peixe: “Ele sou eu!”