Aí vem o dilúvio!

Já sei, mas não ligo. Serei bolsonarista fascista, mesmo que no segundo turno de outubro tenha me mantido equidistante das duas tragédias reservadas à infeliz Sofia em que me transformei. Prensado entre tão tristes, e no fundo parecidas, opções, exerci o direito que William Styron não concedeu à personagem de Meryl Streep na tela. Votei em branco. Escolhi a não-escolha.

Tudo isto posto, venho dizer que nunca antes neste país um governo assume cercado de tão duros vaticínios. A partir do primeiro dia de 2019, segundo os arautos da hecatombe, o país entrará na mais profunda treva. Retrocederá cinco décadas até a ditadura militar, à tortura e ao aniquilamento físico dos adversários. Tudo porque “o mal venceu o bem”, e os perdedores não se conformam. Querem ganhar o “terceiro turno”.

E lembrar que, no início da campanha eleitoral, o diabo não parecia tão feio! Tanto que as esquerdas (Boulos, Haddad) preferiram bater no candidato tucano, enquanto a Alckmin encarava Bolsonaro sozinho. O picolé foi ejetado da disputa e rolou um frente a frente mamão com açúcar para os petistas, mesmo com a “traição” de Ciro e o vacilo de Marina. Imaginavam os inteligentezinhos, estar assegurada a vitória “dos que querem o bem e a felicidade de todos”, diante de tão tosco rival.

Bastava expor ao distinto e esclarecido público as terríveis faces do capitão: intolerante, reacionário, inimigo das políticas sociais, adepto da violência policial-militar, antifeminista, homofóbico, racista. Tudo enfim que só encontra paralelo em bater na própria mãe. Pelo menos, era o que calculavam os estrategistas de Lula, crentes de que postes ganham sempre. Não foi bem assim. A preferência pelo outro só fez aumentar e a gente boazinha ficou desesperada. Nem fake news nem apoio indisfarçado da mídia ajudaram. O capeta levou quase 60% dos votos.

Do estupor e da frustração – outros nomes do nojo do veredito popular – cresceu o ódio a aliados e adversários, e surgiram a “resistência” e o “ninguém larga a mão de ninguém!” Da insanidade e da raiva incontida foi um pulo até a hostilidade máxima ao novo governo, a implicância com os ministros e planos anunciados e o desejo de que tudo dê errado para Bolsonaro e os seus. De Moro à pastora, de Paulo Guedes ao astronauta, dos ministros militares à mulher, filhos e amigos do presidente, nada presta.

Como se não tivessem sido ministros de Lula e Dilma finórios da estirpe de Dirceu, Palocci, Mantega, o marido da Hoffman, a própria Gleisi e tantos aliados de rapina, à esquerda e à direita. Até Delfim, os Sarney, Collor, Renan e Maluf estiveram juntos, deram as mãos. Crendeuspai! Como se Bolsonaro não fosse ocupar o lugar que até há pouco foi de Lula e Dilma e, atualmente, de Temer, a sujíssima trindade dos 16 anos de governos petistas. Como se tantos outros filhos, primeiras damas e namorada não tenham cultivado malfeitos até maiores.

Não importa! Para os resistentes, que venha o tsunami, que nada sobreviva, que não reste pedra sobre pedra. Para os adoradores do amado guia, tão fanáticos quanto a ministra que viu Jesus na goiabeira, a redenção só virá com o Lula de Deus Livre e a reintrodução do quadrilhão no lugar do farsante. O que acontecerá, creem piamente, tanto mais se as tropas de Stédile e Boulos, da CUT e dos sindicatos pelegos não baixarem a guarda e mantiverem a militância pondo pra quebrar. Crendeuspai de novo!

Ocorre que não parece ser isso o que o povo quer. Se em outubro os eleitores deram um bico no fundilho do lulo-petismo, agora a maioria ainda mais expressiva de brasileiros quer acreditar que as coisas podem melhorar com o novo governo. Rejeita os agouros dos perdedores, quer poder curtir um pouco de otimismo. De acordo com o DataFolha, 65% dos entrevistados acham que a economia do país vai avançar, bem como sua própria situação pessoal (67%). São os indicadores mais favoráveis desde 1997.

Eu mantenho os pés atrás e prefiro ver para crer. Mas também não ponho lenha na fogueira da inquisição petista, como os três porquinhos de estrela vermelha na testa, que não conseguem ver, ler, escutar.

Meninos da Vila, o nosso maior ativo

Junto com a história incomparável, escrita em mais de um século por centenas de craques, a marca Meninos da Vila é hoje o maior ativo do nosso clube. Infelizmente, o patrimônio físico – composto de um estádio charmoso e histórico, mas decadente, e de dois acanhados centros de treinamento – pouco valor agrega à marca. Não coloca o Santos na primeira linha do futebol, por essa avaliação.

O time também não assegura estabilidade financeira ao Peixe, na medida em que seu nível de competitividade há tempos se mantém abaixo da média, mesmo no concerto nacional. O resultado é que desaparecem os títulos (nos primeiros doze anos deste século, ou seja, até seis anos atrás, éramos o time mais vitorioso do futebol brasileiro) e a torcida some dos estádios.

O fenômeno negativo solapa outros dois potenciais de arrecadação: a ampliação do quadro associativo e o faturamento das bilheterias. Do que decorrem, ainda, perdas significativas na atração de parcerias e patrocínios e na participação no rateio das cotas de TV.

Transformar a história em ativo gerador de ganhos econômicos para o clube, embora obrigatória no caso da grandeza do Peixe, é tarefa difícil, quase impossível quando não se tem um marketing eficaz. Na verdade, esse bicho é coisa estranha nas bandas da Vila. O departamento só funciona de forma reativa, mal e mal aproveitando as oportunidades que se apresentam, ao sabor do desempenho do time de futebol e do surgimento de novas estrelas.

Resta o caminho mais fácil e seguro de investir na formação de novos talentos, aperfeiçoando nossa expertise no setor e aproveitando a justa fama que conquistamos de clube formador de jogadores. Temos reconhecimento mundial. Nossas divisões de base recebem observação de olheiros dos principais mercados do futebol. Mas a nossa produção é, digamos, artesanal. É quase um milagre que, vez ou outra, surja um Robinho, um Neymar.

Não tenho a mínima dúvida em defender que, hoje, o maior investimento do clube deveria ser feito na base. Na estrutura de atração, recepção, preparação e revelação de jovens talentos. O que inclui a construção de um moderno e amplo centro de treinamento, a montagem de equipes multidisciplinares para cuidar da formação dos garotos e a estruturação de um trabalho técnico integrado ao elenco profissional.

O Santos sempre foi campeão contando com a força de suas revelações. Essa trajetória, iniciada com os jovens fundadores do clube, intensificou-se nos tempos de Athié, Lula e Antoninho Fernandes, ganhou impulso com Chico Formiga e o time moleque de 1978 e consolidou-se com Pelé/Samir e a instalação do primeiro CT do clube, no bairro do Jabaquara, onde a presença do capitão Zito era fundamental.

Nas últimas gestões, a partir de Roma, a receita foi esquecida. A presença de um agente de jogadores como conselheiro da presidência dirigiu o clube para o mercado externo, com resultados trágicos, tanto técnica quanto economicamente. Atentado pior sofreu o trabalho de base do clube, que foi praticamente abandonado. Nossos times do sub 20 para baixo sofreram um processo de enfraquecimento que se reflete até hoje nas fracassadas participações em torneios nacionais e internacionais e na carência de revelações para abastecer o time principal.

A diretoria atual, embora sem ter um empresário para chamar de seu, também insistiu na busca de reposições estrangeiras para o time principal (nada contra a eventual contratação de jogadores no mercado sul-americano, desde que essa não seja a política e a prioridade) e continuou errando no trabalho dirigido às equipes menores. Estamos ficando para trás, rapidamente superados não só pelos rivais tradicionais do sul e de Minas, mas também por clubes de menor tradição. Que 2019 represente um reinício para os Meninos da Vila.

Grudadinha

Espécie rara da flora paulistana, encontrada junto ao prédio na esquina da Peixoto Gomide com a Barão de Capanema. Ela cresceu roçando a parede do edifício e, hoje, os moradores do quarto e do quinto andar alcançam seus galhos e suas folhas com as mãos. Podem dizer que têm uma árvore na sala. Meu poodle Chico, que às vezes tem umas ideias esquisitas, comentou enquanto eu fotografava: “Se eu soubesse subir em árvore, ia dar uma espiadinha!”

Santos, 1950-60 – Parte II 

Coisa mais fácil de encontrar na noite da Baixada, qualquer dia da semana, qualquer época do ano, eram os grupos de choro. Os chorões. Bem tarde, você no ponto, de volta da escola ou da casa da namorada, esperando o ônibus, e lá vinham eles, antecedidos do som inconfundível. Era puro enlevo.

Ou você entrava no bonde, e dava de cara com eles. Até na travessia da balsa cheguei a encontrá-los. Violão, cavaquinho, pandeiro, quatro ou cinco músicos que nada falavam, não conversavam entre si, nem cantavam. Só tocavam. E como tocavam! Uns após outros, os grandes clássicos da nossa música saltavam das cordas: Pixinguinha, Nazareth, Jacob, Zequinha, Chiquinha, Waldir. De onde surgiam ou para onde iam, não faço ideia. Daí que acho que eram criaturas fantásticas, cruzando meu caminho só para me encantar!

Perdoando-os desde logo pela pouca idade, é claro que os meus amigos de muito depois não toparam com o seresteiro Mauricy Moura cantando sucessos da época em um boteco qualquer da noite santista. “Eu daria tudo o que pudesse…” E a arrepiante “Sou santista/Tu vais me perguntar/Sou santista/Meu samba vai falar…” Nem prestigiaram o restaurante que Tite, nosso ponta-esquerda do time abusado que nascia, montou no caminho da Ponte Pênsil, onde era a atração com seu violão.

Ambos, o calunga Mauricy e o craque Tite, tinham no repertório as canções do gaúcho Lupicínio Rodrigues e do santista Lúcio Cardim, que poucos sabem ser o autor de Matriz e filial, magnífica interpretação de Jamelão. De fato, nem imaginam do que falo. Seja lá o que desconheçam: Mauricy, Lupicínio, Cardim, Jamelão, Matriz e filial

Se não sabem de tais monumentos, é claro que nunca foram a uma batalha de confete para ver as Dengosas do Marapé, os Romanos do Campo Grande, os Chineses do Mercado, a Embaixada de Santa Teresa, as Esmeraldas e a Cruz de Malta. Porque essa monumental folia é do tempo em que os blocos na rua eram a melhor coisa do carnaval, e o frevo pulado nas ruas arrepiava.

A proeminência das escolas de samba – com as maravilhosas X-9, Império e Brasil – viria mais tarde. Sinto muito não terem visto a Bola Alvinegra desfilar com o Rei, para mim não faz tanto tempo assim, nos entornos do templo sagrado da Vila Belmiro. Lamento não terem atendido o convite dirigido à Dona Dorotéia, mas extensivo a todos: vamos furar aquela onda?

Os meus amigos teriam, como eu, saboreado os tremoços da patrícia gorda que fazia ponto, todo jogo, sob as sociais de Ulrico Mursa? Teriam ajudado a cobrir de cuspe e cutucões o infeliz goleiro adversário, nas pugnas contra a briosa burrinha? Teriam usado de todos os artifícios para invadir a Vila? Ah, a Vila! Os recitais do Peixe! O Santos de glórias mil do Plínio Marcos!

Quando troco ideias com meu quase contemporâneo Braz Cubas, chegamos à conclusão de que a cidade fundada por ele é um lugar enfeitiçado. Maravilhoso como o país de Alice. Pois onde mais poderiam surgir gentes, lugares e fenômenos tão arrebatadores? E, de quebra, um time como o nosso, de reis, príncipes e uma corte completa? Dos malabaristas Kaneko, Edu e Mané Maria. Do capitão Zito. De Araquém, Athié, Odair, Coutinho, Pelé e Pepe. De poetas da bola, como Pagão, Giovanni e Dom Antônio Fernandes.

A máquina de fazer gols, versos e canções. Para se ver de joelhos, entoando as mais fervorosas orações de graças ao Criador.

(Continua)

AI-5 – A ditadura militar e a imprensa

Estes apontamentos foram preparados para o debate “O movimento de 1964 e a imprensa brasileira”, realizado pela CPFL em Campinas, nos 40 anos do golpe militar. Lá estive ao lado da professora Vera Lúcia Chaia, da PUC-SP, e dos jornalistas Alberto Dines e Jorge da Cunha Lima.

 

Ao longo dos 21 anos da ditadura militar, não há um comportamento único, linear, lógico, pensado a longo prazo. Nem dos ocupantes do poder com relação à imprensa, nem desta com relação ao significado e à natureza do regime. Mas é claro que o AI-5, promulgado em 13 de dezembro de 1968 (O ano que não terminou, do jornalista Zuenir Ventura), representou a inflexão da quartelada de 1964 para a ditadura de fato, com todos os recursos que caracterizam os regimes de força, inclusive no que toca ao controle dos veículos de informação.

O ato permitiu as demissões sumárias e a cassação de mandatos, suspendeu os direitos políticos, interditou as garantias constitucionais de liberdade de expressão e de reunião e liberou o lado repressivo do regime, ao tornar sem efeito o habeas corpus nos casos de “crimes políticos contra a segurança nacional”. Uma tentativa de organizar o pensamento sobre aquele período da história recente do país é dividi-lo em três fases. A duração de cada uma delas é temporalmente desigual, mas pode-se visualizar nelas algum padrão na atitude de ambos os lados, imprensa e governos, com as naturais exceções e desvios.

Na primeira fase, estão quase todos do mesmo lado. Todos contra Jango: os chefes militares, a alta hierarquia da Igreja, as principais lideranças políticas. Os grandes grupos jornalísticos da época, com os Diários Associados e O Estado de S. Paulo à frente, apoiam o golpe. Teriam até participado da conspiração. As exceções são Última Hora de Samuel Wainer, logo sufocada, e o Correio da Manhã, que especialmente nas crônicas de Carlos Heitor Cony, coloca-se na oposição em seguida ao golpe. Os presidente militares do período são Castello Branco e Costa e Silva.

A segunda fase é a virada do AI 5, que prorroga o regime militar, fecha o Congresso, coloca os partidos políticos na ilegalidade e estabelece-a censura à imprensa. O desencanto com as cassações soma-se à frustração das restrições às atividades políticas, sindicais e corporativas. A imprensa divide-se entre a subserviência e a resistência. Censura prévia (Estado, Veja, Tribuna da Imprensa e alternativos) e autocensura, sob os governos Costa e Silva e Medici.

Na terceira fase, é anunciada a distensão lenta e gradual dos generais Geisel e Golbery. Promessa de abertura política e fim da censura cooptam a grande imprensa. O fim do “milagre”, a crise econômica mundial provocada pelos países produtores de petróleo do Oriente Médio e a derrota da Arena nas eleições legislativas atrapalham o processo. Consequências: a reação da linha dura (assassinato de Vlado, 1975), a Lei Falcão (1976) que emudece a campanha eleitoral, o recrudescimento da censura literária (Zero, Loyola, e Feliz Ano Novo, Rubem Fonseca, 1976), o pacote de abril (1977). E, bem mais tarde, a explosão de 1º de maio no Riocentro (1981). Sob Geisel e Figueiredo, surgem a Campanha das Diretas, Já! e a luta pela anistia, ampla, geral e irrestrita.

 

De início, o projeto de controle dos militares parece excluir a imprensa. O jornalista Osvaldo Martins, diz na Cult: a ditadura é tão envergonhada (emprestando a expressão de Élio Gaspari) que não implantou a censura à imprensa, item número 1 de qualquer ditadura que se preze. Os jornais estão livres para elogiar a “revolução” que eles mesmos haviam feito. Depois da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, liderada por um grupo de senhoras católicas, vem a campanha Doe Ouro para o Bem do Brasil, organizada pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand. O Congresso, depurado pelas cassações, também fica aberto.

Os inimigos declarados são o comunismo e a corrupção, leia-se, os militantes das organizações e partidos de oposição (incluindo os sindicatos não dominados pela pelegada e as entidades estudantis) e os velhos políticos. Para isso, bastariam as prisões dos líderes mais conhecidos da esquerda e dos movimentos populares, o fechamento de organizações como a UNE e a CGT. As resistências são controladas pontualmente, como na invasão e fechamento da UnB e a prisão de 15 de seus professores, ainda em 1964.

Mais tarde vêm as cassações de mandatos e as suspensões de direitos políticos, a implantação do bipartidarismo, bem como a suspensão do calendário eleitoral. O AI-2, de 1965, torna indiretas as eleições majoritárias previstas para aquele ano. Ainda se fala em preservar a democracia ameaçada pelo comunismo, com a transformação do Brasil em uma nova Cuba, mas os setores mais esclarecidos do conservadorismo nacional percebem que os militares, dessa vez, chegaram para ficar no poder. A grande imprensa começa a refletir a insatisfação desses setores diante dos rumos do regime e do banimento de seus principais líderes (Juscelino, Lacerda e Magalhães Pinto) da vida pública. Todos tinham o sonho de voltar ou chegar à Presidência da República, mas, afinal, não haveria mais eleição.

Última Hora, de Samuel Wainer, Correio da Manhã, com Cony (“Da salvação da pátria”, 2/4/1964), e Tribuna da Imprensa, de Hélio Fernandes, são os emblemas desse período. Os jornais têm liberdade de opinião e crítica, mas há represálias, tentativas de intimidação de redações e jornalistas na prisão. Já no dia 14 de março de 1964, telefonemas para a redação e a casa de Cony transmitem ameaças de um grupo que se denominava “oficiais do Exército”.

A ditadura militar entra na segunda fase. Instala-se a censura, antes do AI-5. Os emblemas do período, na Imprensa, são os jornais do Grupo Estado, a Veja, os alternativos Opinião e Movimento, O Pasquim (a resistência pelo humor, a desqualificação do regime pela ruptura dos padrões de comportamento – Sérgio Porto e o Febeapá, na linha inaugurada já a 2 de março por Cony) e O São Paulo, da Arquidiocese paulistana. Tribuna da Imprensa permanece sob censura prévia até 1978. Ruy Mesquita diz na Justiça Militar que ele mesmo escreveu títulos, olhos e legendas de determinada reportagem, preservando profissionais do Jornal da Tarde. Júlio Mesquita Neto declara que, enquanto houver censor dentro do Estadão, a responsabilidade editorial é do ministro da Justiça, Alfredo Buzaid.

O grupo muda o foco da cobertura: a política perde importância e tem seu espaço ocupado pelo noticiário militar e de outras áreas, como sindicalismo, saúde, educação, direitos humanos, qualidade de vida, economia, carestia, direito do consumidor, meio ambiente, questões fundiárias e indígenas, igreja, movimento social, diplomacia. Temas bem indigestos ao gosto militar. Exemplo: Agnaldo Silva no JB e uma reportagem sobre depredações nos trens de subúrbio do Rio. A nota oficial distribuída pela comunicação do regime tenta desestimular a reportagem que apura e vai fundo. Os repórteres policiais do Estadão/JT – Inajar, Percival e Fon – e a investigação da tortura. Oban, DOI-CODI e a ligação policial-militar institucionalizando a repressão como prática de defesa do governo. Muitos jornalistas são presos entre 1974 e 1975. Estoura o caso Herzog (ver neste blog a série “Vlado, 43 anos”).

A terceira fase começa com a promessa de distensão do governo Geisel. Os encontros de Golbery com jornalistas. A cooptação da imprensa: o governo quer abrir, mas tem de enfrentar a resistência da linha dura e a mídia “precisa ajudar”. Com exceção da imprensa alternativa, que continua censurada, os donos dos jornais voltam a assumir o controle das redações: Mino Carta cai na Veja, a direção de redação do Estadão é substituída: sai Clóvis Rossi, entra Miguel Jorge, futuro diretor da Volks e ministro de Lula. Ou seja, o inimigo das lutas sindicais de São Bernardo vira “companheiro” no governo petista.

A crise econômica e o endividamento dos jornais. No Sul, o Grupo Caldas Júnior vai à falência e abre espaço para o Zero Hora (Sirotsky). O Estadão é tirado do buraco pelo Bradesco e outros investidores, numa operação costurada por Delfim. Os jornais alternativos resistem: além da equipe fixa, jornalistas de outras redações produzem reportagens para eles, muitos ajudam nos fechamentos, sempre “na faixa”. Eesse noticiário: inédito no país, abastece as centrais informativas que funcionam no exterior.

Com o fim da censura e a posse de Figueiredo, a imprensa volta praticamente à normalidade. A televisão já domina o mercado da comunicação, os alternativos fecham, prevalece o autocontrole do noticiário. O fracasso da greve dos jornalistas em 1979 e o fracasso da experiência do Jornal da República de Mino Carta desmobilizam os jornalistas. Após o caso Riocentro, a mídia em geral assume a resistência ao regime militar, com o apoio tardio da Globo à campanha das diretas.

Que proveito a imprensa pode ter tirado do período militar? Um deles é a regulamentação da profissão de jornalista, em 1969. A reportagem ganha força, com a valorização da apuração em lugar do jornalismo opinativo (que volta tão forte em nossos dias). A atuação da imprensa no afastamento de Collor está em linha direta com o aprendizado dos anos de chumbo. A atual geração de jornalistas, e a própria direção das empresas jornalísticas, é herdeira dos profissionais que viveram e ser formaram naqueles tempos. O acompanhamento sério e responsável da atuação dos agentes do poder é excepcionalmente valoroso, mas o denuncismo e o engajamento político-partidário, decorrente do polarizado “bem contra o mal”, são tão perniciosos quanto inaceitáveis.

A astúcia sorrateira de Cláudio Adão

Na fase final do campeonato paulista de 1975, o primeiro disputado pelo Santos após a era Pelé, aconteceu uma inédita rodada tripla no Morumbi, reunindo os seis clubes que disputavam o título do segundo turno. Corinthians e América de Rio Preto jogaram com o sol ainda brilhando e a segunda preliminar – São Paulo x Palmeiras – aconteceu já com a luz dos refletores. Por fim, o jogo de fundo: Peixe x Portuguesa de Desportos.

Conhecidos os resultados das partidas anteriores, a Lusa entrou em campo interessada no empate, que a manteria em primeiro lugar (só o campeão desse hexagonal iria para a decisão do título contra o São Paulo, vencedor do primeiro turno), com vantagem no saldo de gols sobre o próprio Santos. Por isso, tratou de tocar a bola e fazer o tempo passar. Antes de partir para o desespero do ataque total, no segundo tempo, os santistas ainda tentaram atrair o adversário para o seu campo, procurando abrir a retranca lusa.

Nosso time já não tinha a força dos anos anteriores, mas no comando do ataque havia Cláudio Adão, pelo segundo ano consecutivo artilheiro santista. Natural de Volta Redonda, RJ, o centroavante havia sido formado nas categorias de base do Santos e tinha acabado de completar 20 anos. Pelo porte físico, foi para mim a maior esperança de revelarmos um novo Pelé, naqueles tempos em que a inevitável procura mal havia se iniciado.

Como o Rei, Cláudio Adão foi o único atacante que vi disputar bolas pelo alto, de costas para os zagueirões adversários, e voltar ao chão mantendo o equilíbrio para continuar a jogada. Mas não era só o físico. Havia também o chamado “faro de gol”, e uma inteligência muito acima da média. Esta última qualidade estava prestes a ser demonstrada, quando se aproximava dos 20 minutos o jogo chato do Morumbi, entre uma Portuguesa que não queria ganhar e um Santos que ainda esperava o momento certo de atacar. O empate sem gols permaneceria até o fim, mas houve o momento mágico de Cláudio Adão.

A Lusa tinha um líder incontestável no meio de campo. Era Badeco, volante alto e técnico, que determinava o ritmo da partida. Desde o início, ele segurava a bola, tocava de um lado para o outro, procurava as zonas mortas do campo. De vez em quando, chegava perto da linha central do gramado, mas não invadia o espaço santista. Parava nas imediações do grande círculo, voltava um pouco e, lá de longe, atrasava a bola para as mãos do goleiro (manobra que as regras do futebol ainda permitiam).

Era a clássica “cera”, que Badeco não teve vergonha de fazer três vezes, na última tão tranquilo que nem se deu ao trabalho de olhar para trás. A bola já havia saído de seus pés quando percebeu, alarmado, que entre ele e o goleiro Zecão, Cláudio Adão estava sorrateiramente colocado, perto da meia lua da área lusa. O gol só não saiu porque Zecão – o primeiro em todo o estádio a perceber a astúcia do santista – conseguiu chegar junto e atrapalhou a conclusão do lance.

A Portuguesa foi para a decisão contra o São Paulo e, depois de uma vitória para cada lado, repetiu o fiasco de dois anos antes na cobrança de pênaltis. Errou as três primeiras cobranças, o juiz fez as contas certas e não houve divisão de título, como em 1973, quando tivemos de dar metade da taça para eles, por conta da incompetência do Armando Marques. No ano seguinte, já sem Cláudio Adão que havia quebrado a perna num choque com o goleiro do América, em Rio Preto, o Santos nem se classificou para o segundo turno.

Santos, 1950-60 – Parte I

Naqueles tempos, se os amigos que conheci depois eram da Vila Rica, do Gonzaga e do Boqueirão, nós nunca moramos a menos de oito quadras da praia. Enquanto vivi em Santos, minha família foi do Campo Grande ao Marapé, do Macuco à Encruzilhada. Sempre contornando a Vila dos Sonhos e tendo por quintal um mundo descomunal. Tanto maior quanto a memória recua e o garoto se apequena.

Um mundo que reunia todos os morros, todos os postos e canais, todos os mangues e todas as praias entre Bertioga e Peruíbe. E percorria o cais e suas bocas. Pois eram várias as bocas ao longo do porto. E chegava ao Centro, com suas lojas de mil réis e a primeira escada rolante da região. E esticava até a Zona Noroeste, na direção de São Vicente, pela linha 1 do 2º BC, onde Pelé serviu e eu escapei do serviço militar. Linha 1 do fedorento Matadouro Municipal, os urubus voando em círculo, bem alto.

Aposto que eles, esses amigos posteriores, nunca pegaram uma catraia colorida na Bacia do Mercado, rumo a Itapema, que hoje chamam Vicente de Carvalho e que a maledicência da época apelidou de Cornolândia. É que o trabalho no outro lado do porto ou nas indústrias de Cubatão substituía os maridos ausentes, nas casas simples do bairro, por tórridos e imaginários romances nas tardes úteis das semanas.

Temos a mesma idade, alguns desses amigos e eu. Por isso, nossas memórias são quase as mesmas. Mas eles nunca nadaram nos valões que se abriram nas ruas de terra do Marapé, para a colocação dos tubos do esgoto. Não subiram o morro, indo catar coquinho brejaúva ou colher bico de papagaio para vender na feira. Não invadiram quintais e roubaram carambolas, goiabas, mamões, amoras, pitangas e abricós. Não mancharam indelevelmente com o roxo do jambolão as puídas camisas, que a bem da verdade nunca vestiram – as puídas camisas, digo.

Nunca arriscaram a vida, meninotes a saltar do bonde em movimento, depois de passar de um estribo a outro, do boque ao reboque, fintando o cobrador. Nem mudaram a direção dos trilhos com qualquer alavanca ao alcance das mãos, só para ver a fúria do motorneiro lusitano (um, dois, três, pau no cu do português) e a algazarra dos passageiros, quando o coletivo seguia reto ao invés de virar, ou virava quando devia seguir reto. Seu cobrador, não leve a mal, eu vi sua mulher agarrada com o fiscal! Era terrível ser motorneiro ou cobrador, e ainda por cima patrício!

Quem nunca contornou a Lagoa da Saudade, tão linda no alto do morro, é certo que jamais arriscou um mergulho da Pedra do Tarzan ou do temível trampolim da Ponta da Praia. Bem ali no início do canal do porto, que se cruzava a remo, de baleeira, em direção às aventuras da praia do Góes, do Forte dos Andradas e da Pouca Farinha. Para tirar das tocas da areia fresca e molhada o melhor berbigão.

Esse amigo aí sequer deve imaginar onde ficam Itatinga e Praia das Vacas. É capaz de acreditar que a Ilha Porchat e seu clube só passaram a existir depois da chegada de um afetado caipira, o qual, ao preço de muita boca-livre para jornalistas, estrelas da tevê e decadentes personalidades paulistanas, transformou as noites dos mares do sul em assunto de programas populares, sonho de consumo país afora.

Ainda que a ilusão de luxo fosse produzida pela profusão de frutas baratas espalhadas em torno da piscina e nas areias daquele canto de praia. Nada que uma ida à feira do bairro não pudesse resolver, se a intenção dos casais era encher sacolas. Casais, diga-se, nada interessados em orgias pagãs, pois, mal vencida a demorada fila de entrada, e feita a abundante colheita, punham-se de volta aos apartamentos dos prédios próximos à vicentina Praia dos Milionários. Talvez se sentissem magnatas, curtindo noites havaianas de luxo e riqueza, degustando queijos, mangas e abacaxis, ao som da festa que rolava até a manhã seguinte.

(continua)

Giovanni dá o bote, pobre zagueiro!

Há tantos lances inesquecíveis, num tempo que recua das oito pedaladas de Robinho até o chute cruzado de Dorval, que vence Valdir de Moraes e derrota o Palmeiras no domingo perdido da década de 60, na Vila lotada. Há tantos momentos mágicos em cada tabelinha de Pelé e Coutinho, nas bombas do Pepe, nas sutilezas do Pagão e na astúcia de Giovanni preparando o bote sobre o incauto zagueiro fluminense. Todas essas jogadas resultarão em gols, muitos deles decisivos, e serão contadas e recontadas ao gosto do narrador. Eu, por exemplo, sou capaz de descer da tribuna de imprensa do Pacaembu, naquela tarde de dezembro de 1995, para me colocar ora na pele do infeliz tricolor ora na mente do nosso outro 10 de ouro.

Como o tricolor Alê, corro em direção à bola que rola macia pela grama, na zona morta do campo, em direção à linha de fundo. Corro, olho para a direita e vejo um único adversário, lento e distante, perto da linha central. Trato de chegar rápido só para garantir o domínio da bola com tempo e espaço para sair jogando. Pronto. Tudo sob controle.

Mas agora sou Giovanni e me aproximo ainda sem pressa. Quero que o adversário me veja e pense que vou cercá-lo de longe, inofensivo.

Volto a ser Alê. Verifico mais uma vez se o santista insiste ou desiste. Beleza. O cara só continua na minha direção por dever de ofício. Desse jeito, não chegará nunca. Dá pra sair pelo meio, pro lado do pé bom, e decidir com calma o que fazer.

De novo Giovanni, acelero as passadas. O infeliz vai me olhar de novo, girando a cabeça sobre o ombro esquerdo, mas será tarde. Já estarei passando pela direita e roubando-lhe a bola. Ele ainda tentará entender o que aconteceu, quando eu estiver na área, livre para o passe ou para a finalização. Fim do dilema: Camanducaia se apresenta. É rolar para trás e correr para os abraços.

Dos passeios com Nina e Chico

A guarda distraída e o ladrãozinho escalando o prédio, disfarçado de Papai Noel.

 

Numa esquina da cidade de São Paulo, o cidadão tenta atravessar para o outro lado da rua, usando a faixa de pedestre. Mas não dá tempo. O caminhão passa em velocidade incompatível com a região e ainda buzina, como quem diz: vê se presta atenção no trânsito, cara!

O cidadão recua para a calçada, porque logo atrás vem um carro em velocidade mais baixa. Espera que o motorista lhe dê passagem, mas não é necessário. O carro dobra à esquerda, antes da faixa, sem dar o sinal de seta;

Às vezes tenho a impressão de que, especialmente nos veículos mais caros e luxuosos, a sinalização de direção é equipamento opcional, pouco desejado pelos motoristas. Porque pelo menos nesta cidade o sinal de seta é muito pouco usado. Ou talvez na maioria estejam enguiçados.

Nos casos em que as setas funcionam, tento entender a cabeça dos motoristas. Que utilidade teriam para eles? Penso em três hipóteses, por ordem decrescente de prioridade.

  1. O motorista usa a seta para tomar uma decisão, normalmente em cima da hora. “Vou virar pra esquerda!” Tchum. Seta pra esquerda, e é para lá que eu vou. Vou virar para a direita;;; Ou seja, o motorista usa a seta para ele mesmo.
  2. O motorista usa a seta para avisar o outro motorista, quase ao seu lado, de que vai mudar de faixa. Dá a seta e já vai entrando, à direita ou à esquerda. Em caso de batida, a seta ainda piscando será a prova de sua inocência.
  3. O motorista usa a seta para avisar ao pedestre sobre a faixa de proteção de que vai entrar/está entrando/entrou na rua transversal. Em caso de atropelamento, culpa do pedestre que não esperou pela passagem do meu possante.

Nos casos extremos, há os (poucos) que usam corretamente o sinal de seta e os (muitos) que nunca usam o instrumento. Numa cidade como esta, haver tão poucos acidentes e atropelamentos é sinal claro da existência de Deus

Vejo uma rosa bonita no jardim de um prédio do bairro. Uma rosa irresistível. Lembro do pai do Johnny, que rouba flores dos quintais, no caminho de casa, e leva para a mulher.

Tento imitá-lo, mas sou surpreendido pelo zelador. “Que coisa feia!”, diz ele. “Que coisa linda!”, respondo. “Uma beleza destas só tem um lugar para ficar melhor. O colo da mulher amada!”

O zelador sorri e me deixa ir.