Que mãe! Que casal!

A praia: paixão comum ao Bom e à Bela

 

As tarefas eram bem distribuídas entre o casal que morava no humilde chalé de madeira do lado ímpar da Rua Morvan Dias de Figueredo, Marapé, Santos. O pai cuidava do que se situava além do portão: padaria, açougue, quitanda, vendinha e todo o pequeno comércio que abastecia a casa. A mãe era a rainha do lar, ou talvez seja melhor chamá-la gata borralheira, tantas e tão cansativas eram as atribuições de criar a crescente ninhada, fazer a comida, cuidar da casa e produzir na máquina Singer as camisas, calças e calções que nos vestiam.

Também eram divididos pelos gostos. O pai adorava cinema, futebol e livrinhos de bolso com histórias de faroeste. E não dispensava a leitura diária de A Tribuna. A mãe era amarrada no rádio: ouvia música e acompanhava as novelas, desde a ancestral O direito de nascer, da personagem Mamãe Dolores (ops!). No fim da tarde, antes da bênção do padre Donizete, de Tambaú, trocava ideias sobre as tramas com Dona Helena, a vizinha que morava com o pai, o feirante Ciço. Seus comentários tinham um bordão inicial: “Eu pra mim…”, dizia, introduzindo vaticínios sobre os próximos capítulos.

Outra diferença! O pai queria que começássemos a trabalhar desde logo, o mais cedo possível, para ajudá-lo nas despesas. E tinha razão, pois mesmo reforçado por inúmeros bicos (faxineiro, garçom, cobrador, bilheteiro e toda obra que pedisse um pau), o salário mínimo de servente público, não dava conta da missa. Já a mãe preferia nos ver na escola, e nisso teve sucesso. Além disso, ela corrigia os nossos erros de português e zelava pelo bom tratamento do idioma em seus domínios. E amava antúrios.

Mas havia traços fortíssimos de união: como a família que construíram, a praia com as crianças, os passeios a dois pela cidade – de bonde, ônibus circular ou a pé – e a paixão pelo Peixe. Além, é claro, do amor que os uniu até a morte dele e que deve perdurar até hoje, nos planos em que estão a Bela Dolores e o Bom Fonseca!

Dolores, 100 anos

Chamava-se Xiririca o lugar em que ela nasceu, no Vale do Ribeira, dia 5 de maio de 2019, com a primeira grande guerra terminando. Uma dos oito filhos dos Almeida, Helvetia e Horácio, vindos do litoral norte do Paraná. O pai fazia de tudo para prover a numerosa família e a mãe dava aulas como professora leiga, nas crescentes colônias de imigrantes japoneses da região. Maria das Dores, naturalmente virou Dolores, assim como tempos depois Xiririca virou Eldorado Paulista, Nesse tempo, andava por lá um certo Ouhydes, o Fonseca, neto de comerciante português que foi em busca de riquezas nas cavernas do Vale.

O avô não teve sorte, mas Ouhydes encontrou Dolores e com ela se casou, em 1939, quando os Almeida já moravam em Santos. Alguns anos e doze filhos depois, dez dos quais vivos até hoje, o Bom Fonseca morreu e deixou com a Bela Dolores a tarefa de continuar cuidando de crianças, netos e bisnetos que não param de nascer. Nessa missão, ela passou um tempo em Vinhedo e, agora, de volta a Santos, comemora o centenário na terra do coração.

A sua bênção. mãe!

 

O Santos é o time do céu. Mas o tinhoso vive ciscando na Vila

Durante dois meses, de maio a junho de 2004, o extinto Portal do Santista Roxo revelou um personagem de ficção, em textos atribuídos a um certo Argemiro da Veiga, que assinava a coluna “Tesoura afiada” e se dizia dono de uma barbearia no Macuco, bairro popular de Santos, próximo ao porto. Ali, uma freguesia variada discutia futebol, especialmente o Peixe. Nos comentários anotados pelo barbeiro, destacavam-se as observações do portuário aposentado Nicácio Silva Pinto. Mas logo o velho ranzinza morreu, no mesmo dia em que Diego partiu para Portugal, e a coluna parou. Ano e meio depois, em janeiro de 2006, a pedido do editor-chefe do Portal, Arnaldo Hase, Argemiro produziu mais três crônicas, a última delas relatando uma conversa que tivera em sonho com o amigo. Nessa conversa, o falecido dizia que era coisa do diabo a dispensa do craque Giovanni pela parceria Marcelo Teixeira-Vanderlei Luxemburgo. É o texto que se segue.

O Peixe da Mari: um time divino

“Tem o Santos que é coisa daqui de cima, Argemiro, feito à imagem e  semelhança do Criador. Ou você acha que o Robinho surgiu assim, da sabedoria dessa gente aí? Que foi o turco – e você sabe que eu respeitava muito o Athié – quem guiou os passos do menino Pelé de Três Corações até a Vila? Claro que não, meu amigo. Só que também tem o Santos do general Osman, o vice-presidente que certa vez vendeu Coutinho, Corró e meio time do Peixe para um jornalista da Placar, achando que fazia negócio com um empresário do Marrocos. Caiu foi num conto de 1º de abril. Esse Santos é coisa do demo.”

Parecia um sonho ver o Nicácio com o jornal dobrado em cima dos joelhos, sentado na cadeira junto à porta do salão, iluminado pelo fiozinho de sol que atravessava a cortina. A conversa sempre começava daquele jeito, como continuação das notícias que ele tinha acabado de ler na Tribuna, mas vindo de trás pra frente. Da conclusão para os fatos, da moral para a história, do resumo para a ópera. Eu, que conhecia bem o finado, digo, o velho, tratava de conferir com o rabo do olho os assuntos que chamavam a atenção dele, para depois não boiar. Tava na cara que ele ia falar do caso do Giovanni.

Antes de continuar, porém, é importante explicar que foi sonho mesmo, porque eu ainda não dei pra ver fantasmas e todo mundo sabe que o Nicácio morreu, coisa de ano e meio, quando o Diego desamarrou o barco dele do nosso cais e foi pro outro porto. Além do mais, nunca incorporei espírito e nem acredito nisso, que me desculpe dona Matilde, a mulata ali do 47, que diz encarnar um índio velho num terreiro do Golfo. Toda sexta-feira.

De forma que o Nicácio continuou falando, dentro da minha cabeça, enquanto eu dormia, de segunda pra terça. Me entreteve tanto, eu que me agito demais nessas noites quentes de janeiro, que foi uma estirada só, do fim do Big Brother até as seis da manhã. “Acorda, Argemiro. Abre o olho que aí tem coisa … Sol forte na capital da Baixada … Sou Peixe, mas não sou trouxa … ” – ouvi, ou pensei ouvir, antes de pular da cama, ainda sem saber se quem falava era o Nicácio do sonho ou o locutor do rádio.

“O Santos daqui de cima é um time abençoado, que recebe a ajuda divina para resolver as encrencas do pessoal aí de baixo. Mas não é caridade, Miro. Esta turma gosta mesmo do Peixe. Você precisava estar aqui comigo (“eu, heim!”) para ver como a galera se divertiu naquele domingo em que o Robinho e o Leo fizeram gato e sapato dos infelizes, na Vila. Foi 3 a 0, lembra? O Chefe também estava de bom humor, mas no fim do jogo disse uma coisa que me deixou grilado: ‘Aproveitem enquanto é tempo’”.

Aí o Nicácio explicou como é que funciona. O Chefe é Peixe e ponto. Mas tem de ser justo. Não pode ficar favorecendo sempre o time dEle. De vez em quando, deixa a coisa correr frouxa. São aquelas fases tétricas que a gente passa, achando que o Santos de glórias mil (deve estar enturmado com o Plínio Marcos, o velho ranzinza) acabou. O Cara larga a mão só pra dar um gostinho pros que vivem reclamando nas divinas orelhas.

Como o Vicente “benditos os que sofrem” Matheus. “Dizem, porque eu ainda não tinha vindo para cá, que o corintiano fez um escândalo quando viu Robinho e Diego pela primeira vez com as camisas brancas. Justo contra quem? É, isso, naquele 3 a 1 que abriu o mais recente tabu contra o ‘faz-me rir’. Era só um amistoso, mas o marido de dona Marlene pressentiu o que viria pela frente, já que conhece como ninguém as mumunhas de ser um bom freguês do Peixe.”

“Pó! Por que é que Você só leva esses garotos pra Vila? Já não bastava o Pelé, aquele insuportável? E, agora, esses dois meninos?” – bronqueou. A resposta até hoje é lembrada pelos boleiros aqui do céu: “Do que é que você está reclamando, Matheus. Você não viu o tipo que Eu coloquei na Presidência do Nosso clube, digo, do clube deles?”

Mas o Nicácio, que duvida de tudo e nunca aceita explicação simplória, quis saber que história é essa de que Deus não pode ajudar só o Santos, para não ser injusto com os outros? Deus é Deus, pode tudo. Se ele quer, faz e pronto. Conversa daqui, assunta dali, me disse o Nicácio que conseguiu desvendar o mistério.

“Sabe o que é, Miro? Cabeça não é só o lugar por onde as palavras passam, indo da orelha para a boca. Cabeça é pra pensar. Não é para usar que nem esses repórteres que ouvem qualquer coisa e vão correndo transmitir pro povão, se achando muito informados. É por isso que todo dia dizem barbaridades nos jornais, no rádio, na televisão. Furos… n’água. Ou você também acreditou que o Giovanni foi dispensado por que não se encaixa nos planos do Luxemburgo para o Santos?”

Esse era o ponto, mas o Nicácio não falaria do Giovanni. Naquele momento do sonho, ele ainda estava me explicando porque o Homem, que gosta tanto do Santos, não faz logo o time ter sempre os melhores jogadores e ganhar todos os campeonatos. “Se fosse assim, que graça teria? Você não viu o que aconteceu com o Otávio, que papava todas as meninas? Ficou tão fácil que ele acabou mudando de time. Saiu da linha e foi pro gol. Acabou desfilando na Dona Dorotéia com faixa de Rainha da Estiva e tudo o mais.” Tive de concordar com a lógica do falecido, digo do velho.

“Tem que ter emoção, Argemiro. É por isso que, de vez em quando, você vê são-paulino ou corintiano se achando. Palestrino pensando que é mais. Nunca serão, porque isso Ele não vai permitir. No máximo, deixa os caras terem um pouco de alegria, pra depois o sofrimento ser maior e a nossa felicidade, mais completa. O Próprio, contam os hóspedes antigos daqui, percebeu que iria morrer de tédio, se tivesse de passar a eternidade tomando conta do jardim sem pecado. Foi quando teve a ideia genial de transformar o seu melhor assistente no anjo do mal. Inventou o capeta, para animar o pagode aí de baixo.”

“Levanta, Argemiro. Sol forte na capital da Baixada…” Nesse momento, eu acordei e o sonho acabou. Tomei um banho gelado, bebi o café em dois goles e saí andando pro salão com a cara e as palavras do Nicácio rodando na cabeça. Foi assim o dia inteiro, tentando não esquecer nada e querendo voltar logo pra casa pra colocar tudo no papel. De tanto pensar, acho que acabei escrevendo coisas que ele não disse. Culpa daquele filme do poeta que ensina pro carteiro o significado da palavra metáfora.

O Nicácio também era assim, meio poeta, com a prosa cheia de imagens, dando cor ao que dizia. Foi desse jeito que ele me falou do Santos do céu, que nunca vai ser destruído pelo Santos das trevas, porque é o Santos do Antoninho Fernandes e do Zito, do Zeca Balero e do Jair Rodrigues, do Athié e do Urbano, do Rei Pelé e do Pagão, do Torero e do Ary Fortes, do Salu e do Sabuzinho, do Bom Fonseca e da Belas Dolores, do baiano Jonas Lopes e do paraense Frank Siqueira, do Márcio Fonseca e do Zé Lúcio, do Mário Covas e do Eduardo Suplicy, do violeiro Armindo e do sambista Jamelão, do Osvaldo Martins e do professor Sílvio, do Jun e do Rafa, da Bia e da Eliane, do Pepe e do Coutinho, dos Setúbal e dos Bracher, do Lúcio Cardin e do Mauricy Moura, do Luís Álvaro e do Hase, da Jovem e da Sangue e de todos os Fonsecas.

Esse time que é o paraíso dentro dos nossos corações e nos faz aceitar, como pequenas provações da vida, fatos como a dispensa do Giovanni.

O líder que ensinou o Brasil a vencer

Foi o capitão Zito quem acabou com o nosso complexo de “vira-latas” e nos mostrou que era possível jogar bonito e não perder.

O mano Márcio Fonseca diante da estátua do eterno capitão, na saída da Vila Belmiro, dia 2 de maio de 2019, após Santos 2 a 1 Fluminense

 

Quem conhece a história do futebol defende a tese – verdadeira, inquestionável – de que o Santos de 1962-1963, com sua formação clássica (Gilmar, Lima, Mauro, Calvet e Dalmo; Zito e Mengálvio; Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe) foi o maior time de todos os tempos. De fato, naquele período, o Peixe ganhou todos os títulos possíveis, bateu as maiores equipes europeias e sul-americanas e aplicou a mais sensacional série de goleadas por onde passou.

Foi um momento mágico do futebol mundial em que se demonstrou ser possível unir a eficácia ao espetáculo. O show ao resultado. O Santos não apenas jogava bonito, como nenhum outro time jogou antes ou jogaria depois, mas também ganhava as competições que disputava.

A seleção brasileira teve um momento assim, quatro anos antes, na Suécia. Ao conquistar sua primeira Copa do Mundo, os brasileiros aplicaram históricas goleadas contra seus adversários na semifinal, diante da fortíssima França, e na final, contra a equipe anfitriã.

Para quem acha que uma coisa (a arte) leva necessariamente à outra (a conquista), os desmentidos são inúmeros: a fantástica seleção húngara de 1954, batida na final da Copa pelos alemães; a revolucionária Holanda de Rinus Michels, que maravilhou o mundo em 1974, mas perdeu o Mundial para a mesma Alemanha; e o Brasil de 1982, bonitinho mas ordinário. Os exemplos contrários – dos times sem charme, mas vencedores – também são inúmeros, mas fiquemos com dois: a já citada Alemanha de 1954 e o Brasil de 1994.

Tudo isso para falar da minha tese: se Pelé foi o maior jogador de futebol de todos os tempos, Zito foi o mais importante. É claro que a segunda afirmação não é tão fácil de sustentar quanto a primeira. Mas também tenho meus argumentos, a começar pelo fato de serem esses dois jogadores o traço de união entre as duas equipes: o Brasil campeão do mundo de 1958 e o Santos ganhador de tudo, em 1962 e 1963. Nesses dois inigualáveis times, Pelé era o talento e a genialidade, e Zito, o grande condutor.

O dramaturgo Nélson Rodrigues criou uma imagem para explicar a razão pela qual, até 1958, o Brasil jogava bonito e não ganhava nada. Aqui mesmo, no cone sul da América, éramos fregueses de caderneta de argentinos e uruguaios. Para o escritor, sofríamos do insuperável complexo de “vira-latas”.

Pois bem. Quem mudou essa história foi o nosso Zito. Foi ele que transformou um time de província, o Santos, no melhor e mais forte de São Paulo, do Brasil e do mundo. E foi ele quem deu caráter e personalidade a uma seleção até então comandada no campo por remanescentes dos fracassos de 1950 e 1954, como Nílton Santos e Didi.

Zito foi a grande diferença de 1958. Foi ele que mostrou aos companheiros que, além de jogar bem, poderiam ser vitoriosos. Não precisavam perder sempre. Zito odiava perder e, em toda a sua carreira, perdeu muito pouco.

O ponto de vista carioca, que continua prevalecendo na crônica esportiva brasileira, perpetua a imagem dos antigos craques da geração perdedora e relega ao esquecimento o nosso grande capitão. Aquele que na seleção não levantou formalmente qualquer das taças, mas ergueu a nossa cabeça.

Uma bênção de mãe

Ela nasceu em 5 de maio de 1919, em Xiririca, que virou Eldorado Paulista, anos depois. Nasceu Maria das Dores e logo virou Dolores. Domingo agora, completará 100 anos de idade. Na foto abaixo está a capa do DVD que fiz para ela, juntando 14 das canções que ela ainda canta. Na maioria marchinhas da virada dos anos 1930 para 1940, época em que casou e virou Fonseca. O vídeo está disponível no youtube. Há dois anos, fiz uns versos para ela. Estão logo depois da foto.

Dolores

Que bênção de mãe!

A sua bênção, mãe.

Deus te abençoe, meu filho…

Vá com cuidado, tenha atenção!

Não tome chuva.

Você já fez a lição?

Não volte tarde demais.

Porque eu não durmo.

E, quando acordada,

O pai não sossega jamais.

 

Que sonho de mãe!

Nenhuma melhor do que a minha!

Ou mais linda! De certo que não!

De certo que igual

Nem daqui mil anos.

Pois Xiririca não tem mais,

E o molde afundou no Ribeira,

Uma padroeira inteira.

De cabeça no lugar,

Hoje impossível de achar.

 

Que perfeição de mãe!

Que mais podia ter feito

Que deixou por fazer?

Das roupas de tecido barato,

Costuradas na singer

Que lhe arruinou as pernas,

Às tortas domingueiras.

De camarão ou uva preta,

Bem ao gosto do marido.

Falo da cor da uva, mãe!

 

Que orgulho de mãe!

Teria sido não menos que rainha,

Carmem, marlene, emilinha,

E preferiu ser ângela só minha.

Se a ouvissem, não se pediria

Mortadela com ene no meio,

Recheio indevido, alça sem mala?

O português que bem se fala

Ficou entre as tábuas do Marapé,

Suas cercas, seu chalé.

 

Que emoção, mãe!

Mesmo que hoje me desconheça,

Que não me chame Marcão,

Que pergunte “quem é o cara?”,

Tão logo me afasto.

Confusão dos tempos felizes,

No meio de tanto irmão,

Em que fui Nélson, Zinho, Albano, Horácio,

Paulo, Sílvio e mesmo Márcio, Marisa e Tzi.

Quem mudou foi eu. Você, não!

 

(São Paulo, 5 de maio de 2017)

A gravata que o pai tatuou em nós

O bom Fonseca nasceu em Santos, no dia 19 de abril de 1911, um ano antes do Santos, e criou com Dolores uma feliz família santista.

Centro de São Paulo,1936: no peito, um orgulho só nosso

 

No início de 1936, tendo de ir a São Paulo, o jovem Fonseca, então com 24 anos,escolheu cuidadosamente a gravata que usaria na capital. Naquela época, os homens vestiam terno com gravata e chapéu. O rapaz trabalhava na alfaiataria do pai em Santos, sua cidade natal, e naturalmente seguia a moda masculina. Não se sabe se a gravata foi uma produção caseira ou teve outra origem.

Também não se sabe o fim do adorno, já que ele não estava entre as roupas que Fonseca levou para sua união com Dolores, três anos depois. Mas ficou a foto, batida por um lambe-lambe, fotógrafo de rua muito comum nas cidades brasileiras até os anos 1960.

Fonseca nasceu em 19 de abril de 1911, um ano antes do Santos FC. Quando se interessou pelo jogo da bola, naturalmente virou torcedor do Peixe. Torcia pelo Brasil, por São Paulo (alistou-se na Revolução de 1932), por Santos e pelo Santos. A essas paixões juntaria, nos anos seguintes, o amor pela família de dez filhos construída em parceria com Dolores (100 anos no próximo 5 de maio), a santista que conheceu em Xiririca (hoje Eldorado Paulista).

O time campeão de 1935

Não garoava naquela manhã da Pauliceia, e Fonseca estava particularmente feliz. Ainda saboreava a conquista do dia 17 de novembro de 1935, quando Ciro, Neves e Agostinho; Ferreira, Marteleti e Jango; Saci, Mário Pereira, Raul, Araken e Junqueirinha deram ao Peixe o primeiro título paulista. Raul e Araken marcaram, na vitória de 2 a 0 sobre o Corinthians, no Parque São Jorge.

Daí a escolha da gravata alvinegra que, bem no centro, trazia o escudo do Peixe. Fonseca caminhava orgulhoso entre os paulistanos e curtia uma espécie de vingança. Nem os juízes safados nem as tramoias da Federação tinham conseguido impedir que o título de campeão paulista, afinal, descesse a Serra. O Santos era o melhor, e não se discutia mais isso.

Neste 19 de abril de 2019, não poderei usar a gravata do velho Fonseca, que morreu em 16 de junho de 1983. Mas ela nunca deixou de estar no meu peito.

Santos, 1950-60 – Parte V

Educação física na escola foi luxo que nunca tive. E pra que? Criança pobre da periferia faz como meus irmãos e eu fazíamos na nossa infância despojada, mas feliz do Marapé. Subindo e descendo os morros, pra catar coquinho. Rodando descalço toda a cidade, da nossa rua ao centro, esticando para a Zona Noroeste, bem pra lá do matadouro municipal e dos permanentes urubus, passando o cemitério e o quartel do 2° BC, quase chegando a São Vicente por essa via alternativa. Ou seguindo para os lados da Ponta da Praia, beirando o cais do porto, correndo entre os armazéns empoeirados e passando pelos canais do mercado e do Macuco, com a vista bonita das catraias coloridas. Na busca de aventuras que iam muito além da carona no estribo dos antigos bondes da SMTC, enlouquecendo cobradores e motorneiros, ora pois.

Pedalando, quando havia uma magrela disponível, até o recanto das Tortugas, no Guarujá, ou até a Praia das Vacas, depois da Ponte Pênsil, à esquerda, em São Vicente. Nadando em torno da Ilha Porchat ou atravessando a entrada do canal para chegar à Praia do Góes, Ilha de Santo Amaro, Guarujá, mijando de medo e molhando de outra forma o calção mal ajambrado, porque nadava mal pra caramba, mas não queria fazer feio. Saltando, ídem, do antigo trampolim da Ponta da Praia ou da pedra do Tarzan, no Itararé, onde tanto moleque da nossa idade morreu.

Estudando à noite e trabalhando com carteira de menor de segunda a sábado, e ainda com fôlego e pernas pra disputar olimpíadas inteiras todo fim de semana, onde houvesse uma bola rolando pelas ruas, campos de terra ou grama, entre Bertioga e Peruíbe, com tempo para o futebol de salão (era esse o nome do jogo) nas noites de sexta e sábado, para o vôlei nas manhãs de domingo nas areias quentes e para o jacaré de peito na parte mais rasa do mar. Ali onde as ondas terminam.

Ah, e nessas quebradas também havia Arte praticada com gosto. Arte de invadir quintais em busca de frutas e cacarecos, de afanar gibis nas bancas de revistas, de embolsar balas nos balcões de padocas e botecos, de fazer carreto na feira, de transformar em dinheiro jornais velhos, latas de cera e garrafas vazias, de recolher e derreter as sobras de fios das obras da empresa municipal de luz e vender o metal. Tudo isso, como dizia o velho, sem redundância, rendia “uns bons cobres”. Embora seja justo admitir que a Grande Arte, a Verdadeira Arte, nos pegava como espectadores, na Vila Belmiro, em cujo gramado Zito, Formiga, Álvaro, Pagão, Coutinho, Pelé e Pepe compunham magistrais sinfonias, criavam indescritíveis balés e escreviam jogando bola enredos jamais imaginados.

Não se deve, porém, desmerecer a felicidade dos domingos na praia, num tempo em que o sol era mais brilhante, a água mais verde claro e as ondas abundantes mais brancas. Já entrando na puberdade, era delicioso me deixar levar pelo mar, mirando a garota mais bonita de quantas faziam alarido e davam gritinhos assustados ali perto, por certo adivinhando minhas deliciosas intenções.

O maior time do mundo

 

 

Gylmar dos Santos Neves

Nomes longos, nomes breves,

Como os versos deste salmo.

 

Mauro Ramos de Oliveira,

Uma zaga quase inteira,

De cá Lima, de lá Dalmo.

 

Raul Donazar Calvet

E, mais adiante, pois é:

José “Zito” de Miranda!

 

Mengálvio e, logo, Dorval

Abrem o alegre festival,

De uma irada ciranda.

 

Pagão, Del Vecchio, Afonsinho,

Ou Pelé, Pepe, Coutinho

Que o produto não se altera.

 

Faça chuva ou faça sol,

Vila é arte e futebol,

Preto e branco, bela e fera!

 

E pensar que, antes destes, aqui estiveram Arnaldo Silveira, Urbano Caldeira, Araquém, Feitiço, Athié, Odair Titica, Antoninho Fernandes, Vasconcelos, Tite, Manga, Hélvio, Ivan, Urubatão, Gonçalo, Ramiro, Álvaro  e Formiga.

E que em seguida vieram Cláudio Adão, Carlos Alberto, Joel Camargo, Clodoaldo, Edu, Eusébio, Batata, Juary, João Paulo, Pita, Geraldino, Dema, Chulapa, Márcio Rossini, Giovanni, Almir, Robinho e Diego, Ganso e Neymar.

Dois gigantes: um afundou, o Santos é eterno

Meninos para sempre: Pepe, Mengálvio, Pelé, Dorval e Coutinho

Presume-se que todos vestissem terno. Escuro, com certeza, como os chapéus que cobriam comportadas cabeleiras ou nenhum cabelo. É improvável que algum participante da reunião se imaginasse protagonista de um acontecimento histórico, no domingo, 14 de abril de 1912. Nada que se comparasse, por exemplo, ao alarde mundial em torno do Titanic, orgulho da indústria naval britânica e de Sua Majestade, que naquela mesma noite cruzava o Atlântico Norte, no rumo de Nova York. Antes que o sol iluminasse a segunda-feira, porém, o navio indestrutível, aquele que “nem o próprio Deus poderia afundar”, conforme dizia a imprensa inglesa, abreviaria seu curso no fundo do mar.

Os homens de gravata e chapéu só saberiam da tragédia nos dias seguintes. Agora, encerrado o encontro convocado por Raymundo Marques, Mário Ferraz de Campos e Argemiro de Souza Júnior, os 39 jovens deixam cheios de sonhos e esperanças o casarão da antiga Rua do Rosário, no centro da cidade. Sabem que o barquinho recém-lançado às águas é ainda muito pequeno para tanto mar. Sabem que não merecerão mais do que notas de rodapé nos jornais locais os acontecimentos daquela noite no remoto porto do Atlântico Sul. Mas também sabem que, ao contrário do Titanic, a viagem está apenas começando para os primeiros meninos da Vila e para o Santos.

A greve geral e o novo peleguismo

Na desmilinguida manifestação recente contra a reforma da previdência, os movimentos ligados à esquerda voltaram a falar em “greve geral”. Então, falemos dessa farsa, que só existe na cabeça delirante dos profissionais que a comandam e na preguiça da imprensa em apurar a verdadeira extensão e espontaneidade das supostas paralisações decorrentes. Em geral ocorre não haver greve alguma, mas sim o fechamento de estradas por grupelhos de mal pagos, vandalismos diversos pelas cidades e o tradicional locaute dos transportes. Mas nossos jornalistas confiam cegamente nas suas fontes enviesadas e não vão à rua conferir as informações que lhes  caem no colo.

No caso do transporte urbano, os trabalhadores são usados como massa de manobra dos dirigentes sindicais e das empresas, que adoram esse tipo de “paralisação”. Com ela, podem depois demitir quantos e quem quiserem e a justiça aprovará o corte do ponto dos faltosos. Que patrão desejaria mais e melhor? Se fosse pouco, os empresários ainda dão uma cutucada nos poderes municipais e estaduais, com os quais conflitam. Quem perde são os trabalhadores do setor e a população, privada do seu direito à mobilidade.

Nas estradas, a mesma coisa. Transtornos a quem precisa se deslocar entre cidades para trabalhar, estudar, fazer negócios, transportar mercadorias, ir a hospitais e postos de saúde, visitar amigos e parentes ou, simplesmente, passear. Aconteceu outro dia na Anhanguera, quando meia dúzia de empregados de uma empresa privada bloqueou uma pista da rodovia. Isso com a complacência das autoridades e a cobertura da polícia. Não deve ser difícil identificar os caminhões que levam os pneus para queima e prender seus ocupantes e mandantes. Mas a polícia nada faz, embora conheça perfeitamente a logística desses atos.

Quando pesquisas revelavam a altíssima rejeição dos governos petistas e o grande apoio ao afastamento da ex-presidente, a intelectualidade apelidou de golpe o processo constitucional seguido no impeachment. Na época, desdenharam da vontade popular, alegando que a opinião pública é manipulada pela grande mídia, ou seja, pelos inimigos do povo. Depois, passaram a usar sondagens compradas de institutos que oferecem resultados ao gosto do freguês para justificar a organização e operação de crimes contra os brasileiros e o país. Na última “greve geral” que conseguiram plantar como tal na grande mídia, expoentes do fascismo-stalinismo (sim, o dragão de duas cabeças, ou dois rabos, existe!) profetizaram que o país iria parar.

Argumentavam que o povo não aceitava o governo de plantão, na época do aliado Temer, nem as reformas por ele propostas. Esqueceram-se de combinar com os russos, como falou Garrincha. Se não houve adesão ao movimento, então os trabalhadores estavam do lado oposto ao dos amigos dele?

Guilherme Boulos, profissional remunerado de movimentos encilhados, ditos sociais, e mais tarde figurante bufão na eleição presidencial do ano passado, comemorou “a maior greve geral dos últimos 30 anos no país”. É curioso, porque, em 2017, só uma categoria parou de fato, em alguns estados. Foi a dos trabalhadores em transportes urbanos, cujos sindicatos são controlados pelos novos pelegos das centrais sindicais. Aconteceram, ainda, paralisações localizadas e pontuais, como as que envolveram ínfimas minorias de professores e bancários, em alguns pontos do país.

Entre estas, a mais ridícula foi a que uniu direção, professores, pais e alunos de colégios da elite paulistana. Ah como é bom ser eternamente adolescente! Essa greve consentida e festiva guarda semelhança com a dos ônibus. A paralisação dos trabalhadores do transporte urbano também juntou conveniências: dos sindicalistas, basicamente político-ideológicas, e dos patrões, de viés econômico. Foi aquilo que a precisão jornalística manda chamar de locaute, e não de greve. Mas, em algumas circunstâncias, dane-se a precisão jornalística, não é mesmo?

Boulos, entretanto, sabia muito bem do que falava. A confusão que ele faz, misturando no mesmo saco paralisação do trabalho, manifestação de rua e vandalismo, é proposital. Tem o objetivo de gerar a ilusão de que a esquerda radical alcança seus propósitos. Para isso, conta com a covardia dos meios de comunicação, que chamou pelo nome errado o que aconteceu perto do 1º de Maio e o que se repetiu no ano seguinte, com os caminhoneiros. O que tivemos de fato foi mais uma demonstração do tipo de democracia que os radicais de direita e esquerda adotam, quando obtém o poder absoluto. Um dos nomes que a esquerda usa é centralismo democrático, o sistema em que cabe aos líderes iluminados decidir o que é melhor para todos. Outro nome é ditadura.

No dia anterior à greve geral que não houve, uma jovem me disse: “Sexta-feira, não vou trabalhar. Vou fazer piquete”. Estranhei, porque a empresa que a empregava tinha no máximo oito funcionários. Imaginei que ela iria bloquear a escada, para que seus companheiros não pudessem chegar à saleta que a empresa ocupava no primeiro andar. Por via das dúvidas, perguntei a ela o que significava fazer piquete: “Vou encontrar o pessoal na Paulista e lá a gente decide onde vai quebrar alguma coisa, queimar lixeiras, parar o trânsito, provocar a polícia… Essas coisas.” Entendi que, apesar de mal ter começado a menstruar, a moça sabia preparar um coquetel molotov.