O Santos é o time do céu. Mas o tinhoso vive ciscando na Vila

Durante dois meses, de maio a junho de 2004, o extinto Portal do Santista Roxo revelou um personagem de ficção, em textos atribuídos a um certo Argemiro da Veiga, que assinava a coluna “Tesoura afiada” e se dizia dono de uma barbearia no Macuco, bairro popular de Santos, próximo ao porto. Ali, uma freguesia variada discutia futebol, especialmente o Peixe. Nos comentários anotados pelo barbeiro, destacavam-se as observações do portuário aposentado Nicácio Silva Pinto. Mas logo o velho ranzinza morreu, no mesmo dia em que Diego partiu para Portugal, e a coluna parou. Ano e meio depois, em janeiro de 2006, a pedido do editor-chefe do Portal, Arnaldo Hase, Argemiro produziu mais três crônicas, a última delas relatando uma conversa que tivera em sonho com o amigo. Nessa conversa, o falecido dizia que era coisa do diabo a dispensa do craque Giovanni pela parceria Marcelo Teixeira-Vanderlei Luxemburgo. É o texto que se segue.

O Peixe da Mari: um time divino

“Tem o Santos que é coisa daqui de cima, Argemiro, feito à imagem e  semelhança do Criador. Ou você acha que o Robinho surgiu assim, da sabedoria dessa gente aí? Que foi o turco – e você sabe que eu respeitava muito o Athié – quem guiou os passos do menino Pelé de Três Corações até a Vila? Claro que não, meu amigo. Só que também tem o Santos do general Osman, o vice-presidente que certa vez vendeu Coutinho, Corró e meio time do Peixe para um jornalista da Placar, achando que fazia negócio com um empresário do Marrocos. Caiu foi num conto de 1º de abril. Esse Santos é coisa do demo.”

Parecia um sonho ver o Nicácio com o jornal dobrado em cima dos joelhos, sentado na cadeira junto à porta do salão, iluminado pelo fiozinho de sol que atravessava a cortina. A conversa sempre começava daquele jeito, como continuação das notícias que ele tinha acabado de ler na Tribuna, mas vindo de trás pra frente. Da conclusão para os fatos, da moral para a história, do resumo para a ópera. Eu, que conhecia bem o finado, digo, o velho, tratava de conferir com o rabo do olho os assuntos que chamavam a atenção dele, para depois não boiar. Tava na cara que ele ia falar do caso do Giovanni.

Antes de continuar, porém, é importante explicar que foi sonho mesmo, porque eu ainda não dei pra ver fantasmas e todo mundo sabe que o Nicácio morreu, coisa de ano e meio, quando o Diego desamarrou o barco dele do nosso cais e foi pro outro porto. Além do mais, nunca incorporei espírito e nem acredito nisso, que me desculpe dona Matilde, a mulata ali do 47, que diz encarnar um índio velho num terreiro do Golfo. Toda sexta-feira.

De forma que o Nicácio continuou falando, dentro da minha cabeça, enquanto eu dormia, de segunda pra terça. Me entreteve tanto, eu que me agito demais nessas noites quentes de janeiro, que foi uma estirada só, do fim do Big Brother até as seis da manhã. “Acorda, Argemiro. Abre o olho que aí tem coisa … Sol forte na capital da Baixada … Sou Peixe, mas não sou trouxa … ” – ouvi, ou pensei ouvir, antes de pular da cama, ainda sem saber se quem falava era o Nicácio do sonho ou o locutor do rádio.

“O Santos daqui de cima é um time abençoado, que recebe a ajuda divina para resolver as encrencas do pessoal aí de baixo. Mas não é caridade, Miro. Esta turma gosta mesmo do Peixe. Você precisava estar aqui comigo (“eu, heim!”) para ver como a galera se divertiu naquele domingo em que o Robinho e o Leo fizeram gato e sapato dos infelizes, na Vila. Foi 3 a 0, lembra? O Chefe também estava de bom humor, mas no fim do jogo disse uma coisa que me deixou grilado: ‘Aproveitem enquanto é tempo’”.

Aí o Nicácio explicou como é que funciona. O Chefe é Peixe e ponto. Mas tem de ser justo. Não pode ficar favorecendo sempre o time dEle. De vez em quando, deixa a coisa correr frouxa. São aquelas fases tétricas que a gente passa, achando que o Santos de glórias mil (deve estar enturmado com o Plínio Marcos, o velho ranzinza) acabou. O Cara larga a mão só pra dar um gostinho pros que vivem reclamando nas divinas orelhas.

Como o Vicente “benditos os que sofrem” Matheus. “Dizem, porque eu ainda não tinha vindo para cá, que o corintiano fez um escândalo quando viu Robinho e Diego pela primeira vez com as camisas brancas. Justo contra quem? É, isso, naquele 3 a 1 que abriu o mais recente tabu contra o ‘faz-me rir’. Era só um amistoso, mas o marido de dona Marlene pressentiu o que viria pela frente, já que conhece como ninguém as mumunhas de ser um bom freguês do Peixe.”

“Pó! Por que é que Você só leva esses garotos pra Vila? Já não bastava o Pelé, aquele insuportável? E, agora, esses dois meninos?” – bronqueou. A resposta até hoje é lembrada pelos boleiros aqui do céu: “Do que é que você está reclamando, Matheus. Você não viu o tipo que Eu coloquei na Presidência do Nosso clube, digo, do clube deles?”

Mas o Nicácio, que duvida de tudo e nunca aceita explicação simplória, quis saber que história é essa de que Deus não pode ajudar só o Santos, para não ser injusto com os outros? Deus é Deus, pode tudo. Se ele quer, faz e pronto. Conversa daqui, assunta dali, me disse o Nicácio que conseguiu desvendar o mistério.

“Sabe o que é, Miro? Cabeça não é só o lugar por onde as palavras passam, indo da orelha para a boca. Cabeça é pra pensar. Não é para usar que nem esses repórteres que ouvem qualquer coisa e vão correndo transmitir pro povão, se achando muito informados. É por isso que todo dia dizem barbaridades nos jornais, no rádio, na televisão. Furos… n’água. Ou você também acreditou que o Giovanni foi dispensado por que não se encaixa nos planos do Luxemburgo para o Santos?”

Esse era o ponto, mas o Nicácio não falaria do Giovanni. Naquele momento do sonho, ele ainda estava me explicando porque o Homem, que gosta tanto do Santos, não faz logo o time ter sempre os melhores jogadores e ganhar todos os campeonatos. “Se fosse assim, que graça teria? Você não viu o que aconteceu com o Otávio, que papava todas as meninas? Ficou tão fácil que ele acabou mudando de time. Saiu da linha e foi pro gol. Acabou desfilando na Dona Dorotéia com faixa de Rainha da Estiva e tudo o mais.” Tive de concordar com a lógica do falecido, digo do velho.

“Tem que ter emoção, Argemiro. É por isso que, de vez em quando, você vê são-paulino ou corintiano se achando. Palestrino pensando que é mais. Nunca serão, porque isso Ele não vai permitir. No máximo, deixa os caras terem um pouco de alegria, pra depois o sofrimento ser maior e a nossa felicidade, mais completa. O Próprio, contam os hóspedes antigos daqui, percebeu que iria morrer de tédio, se tivesse de passar a eternidade tomando conta do jardim sem pecado. Foi quando teve a ideia genial de transformar o seu melhor assistente no anjo do mal. Inventou o capeta, para animar o pagode aí de baixo.”

“Levanta, Argemiro. Sol forte na capital da Baixada…” Nesse momento, eu acordei e o sonho acabou. Tomei um banho gelado, bebi o café em dois goles e saí andando pro salão com a cara e as palavras do Nicácio rodando na cabeça. Foi assim o dia inteiro, tentando não esquecer nada e querendo voltar logo pra casa pra colocar tudo no papel. De tanto pensar, acho que acabei escrevendo coisas que ele não disse. Culpa daquele filme do poeta que ensina pro carteiro o significado da palavra metáfora.

O Nicácio também era assim, meio poeta, com a prosa cheia de imagens, dando cor ao que dizia. Foi desse jeito que ele me falou do Santos do céu, que nunca vai ser destruído pelo Santos das trevas, porque é o Santos do Antoninho Fernandes e do Zito, do Zeca Balero e do Jair Rodrigues, do Athié e do Urbano, do Rei Pelé e do Pagão, do Torero e do Ary Fortes, do Salu e do Sabuzinho, do Bom Fonseca e da Belas Dolores, do baiano Jonas Lopes e do paraense Frank Siqueira, do Márcio Fonseca e do Zé Lúcio, do Mário Covas e do Eduardo Suplicy, do violeiro Armindo e do sambista Jamelão, do Osvaldo Martins e do professor Sílvio, do Jun e do Rafa, da Bia e da Eliane, do Pepe e do Coutinho, dos Setúbal e dos Bracher, do Lúcio Cardin e do Mauricy Moura, do Luís Álvaro e do Hase, da Jovem e da Sangue e de todos os Fonsecas.

Esse time que é o paraíso dentro dos nossos corações e nos faz aceitar, como pequenas provações da vida, fatos como a dispensa do Giovanni.

Publicado por

Marcão

Jornalista aposentado, casado, duas filhas, um neto, dois poodles e nove irmãos. Santista de mãe, pai, cidade, time e o que mais bem qualifique essa condição. Sem vaidade, só verdade!

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