Santos nos anos 1950: a capital não capital
Lembrança remota da Vila: novembro de 1956. Faltava pouco para o Natal e, não sei como, o pai conseguiu me colocar nas sociais do estádio. Era assim o Bom Fonseca. Vivia nos filhos as duas grandes paixões: o Santos e o cinema. Como ele teve 12 filhos com minha mãe, é claro que havia uma terceira – primeira, sem dúvida – grande paixão.
Domingo, portanto, era dia de matinê ou de Peixe. Não na mesa, que camarão não é peixe, mas naquele tempo era barato e generoso, pelo menos ali a beira mar. Domingo sim, domingo não, o sete barbas com chuchu seguido da sessão da tarde nos cinemas do bairro. Domingo não, domingo sim, torta e pastéis de camarão antes do jogo. Almoços que vinham das mãos batalhadoras da Bela Dolores; programas garantidos pela esperteza ingênua do meu velho pai, quando o dinheiro sempre curto não sobrava nem para pagar o fiado da padaria.
Entrar no cinema sem ingresso era mais complicado, mas Fonseca sempre dava um jeito de nos colocar para dentro. Às vezes, até ele acabava indo junto, “para acompanhar os mais novos”, menores de 10 anos, nos filmes proibidos, como recomendava o porteiro. Voltávamos depois para casa comentando as aventuras vividas na tela grande, e a gente era ainda mais feliz vendo a alegria dele dizendo que a fita havia sido formidável. Tinha um jeito bonito de falar aquele homem que mal concluíra o primário. Bonito e correto, porque a Bela Dolores policiava o português nos domínios dela, e não perdoava o erro mais insignificante.
Abra-se um parêntesis, aqui, para lembrar da quantidade de salas de cinema que havia na cidade. Só ali pertinho, havia o Marapé, no Canal 1, e o Campo Grande e o Carlos Gomes, no Canal 2. Mais adiante, já pela Vila Mathias, ficava o Bandeirantes. Nem estou falando da Cinelândia santista, do Gonzaga e da praia, com opções mais finas e fartas. A Santos dos anos 1950 era uma espécie de capital não capital brasileira, tal a relevância que alcançara em termos políticos, culturais, econômicos e sociais. Tinha reconhecidamente o melhor sistema de transporte público, o maior número de agências bancárias relativamente à população, a qual também usufruía da maior quantidade de telefones por habitante. Chegava a rivalizar com São Paulo e Rio no jeito metropolitano de ser.
Quanto ao futebol, já era um jovem adulto quando conheci a bilheteria da Vila. Até então, nunca havia comprado um ingresso para ver o Peixe. Pequenos, íamos direto para a fila dos “meninos do Santos Football Club”, que tinham direito a um lance especial de arquibancada, atrás do gol do fundo. Quando a regalia acabou e não éramos mais tão crianças – e já sem a companhia do velho, embora com todo o estímulo dele –, simplesmente invadíamos o estádio, passando sorrateiramente pelas catracas ou escalando o muro baixo da antiga coreia, a arquibancada em geral frequentada pela fauna adversária.
Aí, entretanto, já avanço no tempo. O que quero falar agora é da época em que o pai nos levava até a Vila e, depois de nos colocar lá dentro, voltava para casa. Para a casa de repente vazia das crianças e, suspeito agora, para os braços de Dolores. A ideia me sugere que pelo menos um dos mais novos tenha sido gerado no exato instante de um gol de Pepe, na sossegada tarde de domingo do abafado chalé de madeira da Rua Morvan Dias de Figueiredo, bairro do Marapé.
Um dos primeiros Santos que vi na Vila: o campeão de 1955
Essa época, na minha memória, começa com o dia cinzento de agosto de 1954, do suicídio de Getúlio Vargas. Aos seis anos, nem na escola eu estava, mas lembro do silêncio que cobriu a cidade desde cedo. A Vila já era um lugar familiar, que eu e meus irmãos frequentávamos com alguma sem cerimônia. A lembrança mais viva, porém, é de dois anos depois, novembro de 1956. Naquele domingo, já disse, o pai conseguiu me colocar nas sociais e foi lá de cima, correndo pelos corredores atrás das atuais cabines de rádio, que vi deslumbrado o estádio cheio de gente pela primeira vez. Urbano Caldeira era imenso para os meus nove anos. Guardo o placar da terrível derrota – 0 a 4 – e o nome dos artilheiros inimigos – Zague e Paulo, dois gols cada –, mas no fim estava menos triste do que excitado. Além disso, nada abalava a certeza transmitida pelo pai: o Santos era o melhor e perdia jogos e campeonatos porque os juízes nos roubavam.
Só não foi assim no grande ano de 1935. Daquela vez, lembrava o Bom Fonseca, não houve juiz ou bandeirinha capaz de parar o ataque de Saci, Pereira, Raul, Araken e Junqueirinha. Muito menos as pobres defesas adversárias. Ganhamos o campeonato no campo desse mesmo timinho que agora vinha fazer festa na nossa Vila. Mas eles não perdiam por esperar. Em breve, começariam o doído tabu diante do nosso time e o longo jejum de títulos. Como requinte, compramos o centroavante que começava a virar ídolo deles, o baiano Zague, apenas pelo prazer de repassá-lo em seguida para o futebol mexicano e ganhar na transação. A partir de 1957, eles passariam onze anos a pão e água contra o Peixe.