Este texto foi preparado originalmente para a Revista Cult. É republicado aqui com pequenas correções, dividido em três partes, até a semana de 25 de outubro, quando se completam 43 anos do assassinato do jornalista.
Nunca se saberá o quanto de fatalidade concorreu para o desfecho. Nem se, ao contrário, era esse o resultado esperado pelos algozes e seus chefes. Erro de dose ou risco mal calculado? O certo é que naqueles dias de outubro de 1975 a luta que se travava no interior do regime militar encaminhava-se para o ponto de não retorno. O monstro da barbárie, em confronto com seus criadores, tratava de mostrar serviço, num recado para dentro do sistema: ainda havia serviço a fazer.
A resistência armada estava morta e enterrada nas covas do Araguaia e de Perus, ou em alto mar, mas para os zelosos defensores da exceção e do arbítrio, restava o inimigo escondido na defesa das liberdades democráticas e dos direitos e garantias individuais. Tão insidioso, reclamavam, que se infiltrava pelo alto comando das Forças Armadas e chegava à própria cúpula do governo. Manifestos apócrifos circulavam nos quartéis e davam nomes aos bois: Geisel e seu ideólogo Golbery. Era nessa direção que eles agora atiravam. Por isso, as celas cheias e o trabalho incessante no porão.
“Eles chegavam à noite”, contou D. Paulo Evaristo, em entrevista à CULT. E chegavam de preferência no fim da semana, como no cair da tarde da sexta-feira, 24 de outubro de 1975. Dois homens batem na casa da família Herzog, à procura de Vladimir Herzog. “Vlado está na TV”, informa a mulher do jornalista. Os dois homens respondem que seguirão para lá e deixam Clarice preocupada. Ela coloca os dois filhos pequenos no carro e também segue para a TV Cultura, onde o marido trabalhava há menos de dois meses, como diretor de jornalismo.
Free lance para o Vlado? Estranho. Todos sabem que ele não faz e nem tem tempo de pegar serviços extras. Foi isso o que os homens disseram e foi nisso que ela pensou no trajeto até a tevê. Mas a desculpa não foi mantida. Diante do jornalista, os homens anunciam o motivo da visita. Vlado terá de acompanhá-los ao DOI-CODI do II Exército. Estabelece-se uma negociação, com a participação de colegas de redação e da direção da emissora. Fica combinado que a apresentação se dará na manhã seguinte, espontânea, bem cedo.
O juiz federal Márcio José de Moraes tinha 30 anos de idade quando descobriu que havia tortura e morte no Brasil do regime militar. Estava no escritório de advocacia em que trabalhava na época, quando tomou conhecimento pelo jornal da morte do jornalista Vladimir Herzog. Formado pela USP em 1968, ano em que a ditadura baixou o Ato Institucional número 5, ele passou sete anos relutando em acreditar que aquilo acontecesse no País.
“Eu ainda admitia que pudesse haver perseguição política. Mas, na verdade, a tortura e a morte eram coisas que eu tinha dificuldade em acreditar”, lembra Moraes, em entrevista publicada pela Folha de S.Paulo. A revelação foi fulminante. “Eu realmente fiquei chocadíssimo. Não só pela notícia em si. Mas porque ficou absolutamente claro para mim que, na verdade, ele morreu torturado.”
Na sexta-feira seguinte, 31 de outubro, Moraes era uma das 8 mil pessoas que foram à Praça da Sé participar do culto ecumênico em memória do jornalista assassinado. Ainda receoso, conforme admitiu ao jornal, preferiu ficar meio de lado, perto de uma pastelaria. “Se a cavalaria da Polícia Militar invadir a praça da Sé, como se noticiava, eu me ponho aqui dentro da pastelaria e como um pastel.”
Precisamente três anos depois, em outubro de 1978, Moraes deu a sentença do caso Herzog. Responsabilizou o Estado brasileiro. Já não era o advogado assustado, mas um juiz determinado.
(Continua)