(Num 25 de outubro, em 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado pelos torturadores do mais tenebroso porão da ditadura militar brasileira: o DOI-Codi de São Paulo. Meses depois, durante greve dos metalúrgicos da Capital, a vítima foi o operário Manoel Fiel Filho. Os dois episódios acirraram a crise interna e iniciaram o processo de enfraquecimento do regime imposto pelo golpe de 1964)
Na manhã do domingo, com a notícia da morte de Vlado, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, na Rua Rego Freitas, junto à Consolação, começa a receber um movimento anormal. É lá que os jornalistas se reúnem para se informar, para se consolar e para discutir atitudes. De lá, saem às vezes — para o velório do companheiro, para o enterro na manhã da segunda-feira, para trabalhar — e logo voltam.
É quase uma vigília, num movimento de autodefesa. Teme-se pela vida dos companheiros que continuam presos e pela própria segurança. Todas as noites, realizam assembleias disfarçadas de sessões de informação. A plateia pode se manifestar, mas não há votações. Em determinado momento, alguém do sindicato, em geral o presidente Audálio Dantas, morto recentemente, faz um relato dos acontecimentos do dia e fecha o discurso com as decisões da diretoria.
O texto tem clara preocupação legalista: dentro da ordem, os jornalistas manifestam sua perplexidade, pedem explicações aos responsáveis pela integridade física dos presos, mas não deixam que sua dor seja usada por aproveitadores. Exigem respeito ao companheiro morto, à memória de Vlado. Na forma de notas oficiais, essas mensagens são enviadas também aos jornais.
O Estadão e o JT, liberados da censura em janeiro daquele ano, no centenário do grupo jornalístico, assumem papel decisivo no processo informativo que levará muitas pessoas, como o advogado Moraes, a reformular seus sentimentos com relação à ditadura. Numa linha que supõe a defesa da autoridade presidencial, os jornais abrem espaço para denúncias contra os excessos do aparelho repressivo, para as posições dos jornalistas e para a movimentação dos políticos de oposição e dos representantes da sociedade civil.
O outro lado é o próprio governo, que se manifesta determinando a abertura do inquérito para apurar o “enforcamento” do jornalista, sua disposição de continuar combatendo a subversão e de manter o projeto de abertura política.
A voz do porão, nas notas plantadas por militares ligados aos centros de informação e por policiais envolvidos com a repressão, perde-se nos pés de colunas ou ecoa nas manchetes de diários como a Folha da Tarde, com menor credibilidade. A Folha de S.Paulo, de acordo com estudo feito pela pesquisadora Líliam Perosa (A da cidadania), tenta equilibrar-se entre a antiga subserviência e uma recente, mas ainda tímida, tomada de posição.
Tarde de 31 de outubro de 1975. Há tanta gente na praça quanto dentro da Catedral da Sé, em frente. Fica para o registro da história o número de 8 mil pessoas no culto ecumênico de 7º dia da execução de Vladimir Herzog no DOI-Codi paulista.
Há muita gente, também, nas janelas e sacadas dos prédios que, então, cercavam a Sé, ainda não ampliada e juntada à Praça Clóvis pela estação do metrô. Alguns desses espectadores usam câmaras fotográficas e são fotógrafos dos jornais, ali colocados não só para obter bons ângulos da manifestação, mas também para documentar possíveis excessos da polícia.
O secretário da Segurança Pública, coronel Erasmo Dias, ao longo da semana vinha tentando desestimular o comparecimento ao culto, com o pretexto de que poderiam ocorrer conflitos e atentados à ordem provocados por militantes de esquerda. Por via das dúvidas, armou também mais de 300 barreiras na região central da cidade, engarrafando o trânsito e prejudicando o tráfego em direção à Sé. Há, também, entre os fotógrafos, agentes de segurança disfarçados, cujo objetivo é identificar gente procurada pelos órgãos de segurança.
A polícia, porém, fica à distância e não ocorrem distúrbios. Em paz, como pedem D. Paulo, o rabino Henry Sobel e o pastor Jaime Wright do altar da catedral, o culto se encerra e as pessoas voltam em calma para o seu dia a dia.
Os três religiosos e mais o jornalista Audálio Dantas, que também participou ativamente da cerimônia, estão satisfeitos e aliviados. Com o culto, pela primeira vez desde que o AI-5 havia entrado em vigor, a ditadura havia recebido uma resposta à altura da sociedade. Sem violência, sem dar margem a um recrudescimento ainda maior da repressão, mas firme e decisiva para os rumos que o país tomará a partir de então. Além disso, cada um tem suas razões particulares.
D. Paulo vê o trabalho à frente da Comissão Justiça e Paz da Diocese de São Paulo afinal atingir a opinião pública. Sobel, porque desde o início colocou-se contra a versão do suicídio, informando no mesmo dia do enterro que o corpo de Vlado fora colocado no “campo dos homens”, já que nada tinha feito contra si mesmo, e não nas covas destinadas aos que tiram a própria vida. Wright vivia um drama pessoal parecido com o da família Herzog: seu irmão há tempos estava desaparecido e não havia a mínima informação sobre o paradeiro dele.
Para Audálio, era o fim de uma semana terrível, em que foi necessário negociar cada passo do sindicato com as autoridades militares e civis e, ainda, com a ajuda dos companheiros de diretoria, conter os ânimos dos jornalistas mais exaltados, cujas propostas de reação poderiam colocar tudo a perder.
(fim)