O Papa viu Pelé

O sol do fim de tarde ilumina o Caravelle da Air France que segue tranquilo sobre o mar do Caribe. No avião, um time de futebol dorme. A maioria francesa que embarcou nos Estados Unidos e se dirige para o Haiti – destino estranho, justificável para burocratas, acadêmicos ligados no exotismo e turistas desavisados – não mostra interesse pelos rapazes de terno escuro, escudo preto e branco no bolso do paletó. Um deles é Pelé.

Anos antes, a simples presença do futebolista em território africano havia interrompido guerras. Pelé é uma celebridade mundial. Foi coroado rei pela imprensa francesa, mas os passageiros que o acompanham no trajeto entre Nova Orleans e a ilha Hispaniola só se darão conta da figura ilustre da poltrona ao lado (ou à frente, talvez mais atrás) quando o avião, ainda taxiando na pista do Aeroporto François Duvalier (nome da época), for cercado pela multidão.

Então, terá anoitecido e será tarde para os franceses. Os brasileiros do Santos FC descerão direto para o interior de limousines e iniciarão uma viagem surreal de três dias pelos domínios do Papa Doc.

Os soldados brasileiros da Força de Paz da ONU no Haiti percorreram, anos mais tarde, os mesmos oito quilômetros – pouco mais, pouco menos – da pista simples que leva do aeroporto à capital, Port-au-Prince, situada no ponto mais recôndito do golfo de Gonâve. Avançando pelo golfo, o oceano reduz a extensão territorial do Haiti a 27 mil quilômetros quadrados, mas em troca desenha uma costa magnífica, que abriga a quase totalidade da população de cerca de doze milhões de habitantes.

Na altura de Port-au-Prince, na parte sul da ilha, o território haitiano atinge sua menor largura. Acima e abaixo dali e em direção à fronteira com a República Dominicana (bem próxima, a leste), predominam as montanhas. Elas reduzem ainda mais as áreas aproveitáveis, mas são excelentes pontos de fuga, um jeito fácil e rápido de buscar abrigo no país vizinho. De forma que as principais cidades se espalham pelas planícies costeiras, ao norte e a oeste.

Parece a descrição do paraíso, mas a realidade, sabe-se, está muito longe disso. O Haiti, cuja tragédia política e social pede socorro ao mundo, nada mais é do que a continuação do Haiti do início dos anos 70, visitado pelo Santos. O Haiti de Papa Doc, François Duvalier, médico sinistro, pai da pátria, fruto da maldição lançada no martírio do libertador L’Ouverture.

O ex-escravo Toussaint da virada dos séculos 18 e 19, que expulsa ingleses e espanhóis da ilha descoberta por Colombo e, com a bandeira dos ideais da Revolução Francesa, conquista a liberdade. Efêmera liberdade, interminável danação. L’Ouverture é preso e banido tão logo assume o poder, em 1801, e morre na França.

Primeira colônia americana a libertar seus escravos, o Haiti vive a partir dali a sucessão de golpes, revoltas e guerras civis que terá sempre o mesmo resultado: os perdedores serão executados, mas os vencedores não terão vida longa. Serão os perdedores a seguir.

A independência, igualmente frágil, dará lugar a frequentes intervenções e ocupações por forças estrangeiras, especialmente a partir da entrada em cena dos interesses norte-americanos, já no Século 20. São esses interesses que levam à eleição de François Duvalier, em 1957.

 

Colombo e L’Ouverture, em Port-au-Prince

Os carros encostam na escada do avião e os santistas acomodam-se neles em grupos de cinco ou seis. Em volta, a multidão e, lá atrás, ou melhor, no alto da escada ou ainda dentro do avião, os outros passageiros, boquiabertos, obrigados a esperar a dispersão para também desembarcar. Os carros deixam a pista do aeroporto com os faróis acessos, em velocidade não muito alta, mas excessiva para a segurança de quem está em volta. Muitas são obrigadas a se atirar para o lado, fugindo do atropelamento. Logo estamos na estrada.

Tantos anos depois, as lembranças são vagas e só tornam mais dura a constatação de que o privilegiado jornalista em início de carreira era também um péssimo repórter. Não há um caderno de anotações guardado e mesmo os textos enviados para o jornal (e publicados com o devido atraso, face à lamentável ausência de recursos como internet ou um banal telefone celular, não só naquela ilha triste, mas no mundo) pecam pela base informativa. Quase não há dados, nomes – o foca concentra sua atenção no lado errado da história e o resultado do relato é pífio. Ah, se fosse possível voltar àquela noite e aos dias que se seguiram!

Mas agora é preciso recorrer à memória – absolutamente inconfiável do jornalista aposentado – e voltar àquela estrada com uma correção. Eu disse “ilha triste”, mas onde a tristeza se a natureza é bela e o povo alegre? Olho pelas janelas do carro e, dos dois lados, grupos de pessoas pulam, correm, parecem comemorar a nossa passagem.

Os vidros fechados impedem que se ouçam seus gritos, mas elas cantam e dançam, também. E sorriem. Talvez não sejam felizes, mas é claro que são alegres. Lembro do poetinha: “é melhor ser alegre que ser triste”. É a iluminação fraquíssima dos postes públicos que torna a minha visão, esta sim, compadecida.

Tais cenas, mais e mais esmaecidas, são inesquecíveis. Junto a elas, uma dúvida nunca respondida. Sempre gostei de pensar que as pessoas saíram das casas para receber Pelé e o Peixe. Intuí que cercaram os dois lados da estrada até Port-au-Prince só para isso. Mas terá sido esse o motivo? Para nos festejar? Não tenho tanta certeza.

É possível que a maioria nem soubesse da chegada do Rei e seus companheiros do Santos. Podia ser só a confraternização de todas as noites, pouco importando os personagens que transitassem à frente, porque, olhando além, para o interior das casas, percebo algo mais. Se junto à estrada a iluminação é fraca, nos barracos em volta ela inexiste. Daí que, como na ruazinha de terra de minha infância no Marapé, em Santos, saem todas as famílias para o convescote noturno, tão logo escurece, e até que chegue a hora de dormir.

Desde sempre, para a minha geração, Haiti é sinônimo de miséria. Miséria e horror. Miséria, horror e corrupção. E continua sendo, mesmo que os tontons macutes, os bichos papão, só resistam nas velhas canções de ninar e o vodu não assuste como antes. Caetano disse uma vez “o Haiti é aqui”. Caetano tinha idade suficiente para falar do tempo de Papa Doc lá e da ditadura militar aqui. Mas como foi um Caetano mais recente que falou, e não aquele antigo do exílio, devia estar se referindo ao Haiti/Brasil da miséria e da corrupção, só.


Papa Doc, François Duvalier, e o estádio em que o Rei jogou

Papa Doc morreu dois meses depois de ver Pelé. Ele foi ao campo naquela tarde de fevereiro de 1971. Exatamente ao campo, porque o estádio muito simples, quase todo de madeira, não tinha acomodações presidenciais e o jeito foi o cerimonial do Palácio colocar confortáveis cadeirões forrados de veludo vermelho à beira do gramado. Exatamente três cadeirões, com o presidente ao centro, Mama Doc à direita e o gordinho Jean-Claude, Baby Doc, à esquerda. Dos dois lados, cadeiras comuns acomodaram os ministros e as autoridades civis, militares e eclesiásticas.

Vale a pena recordar a chegada daquela gente. Por um portão lateral, os enormes carros pretos entraram no estádio Sylvio Cator, capacidade para 20 mil pessoas, lotado. Dos dois primeiros desceram os homens da guarda pessoal da família Duvalier. Negros altíssimos de terno preto, óculos escuros e metralhadora na mão. Pense em como seriam os tontons macutes. Pois eles eram exatamente iguais aos da sua imaginação. Do terceiro carro saiu o casal, quando a plateia já delirava, e, do quarto, o gordinho, que nem imaginava estar a tão poucos dias de ocupar o lugar do pai. Ou saberia que sua vez estava chegando? Quando se sentaram, pude chegar perto e fotografar. Pessoas simpáticas. Pense na tia mais querida. Mama Doc era a cara dela.

Acho que a irmã mais nova não estava no Haiti ou não se interessou pelo jogo. Pelo menos não a vi por lá, mas para ela também estava reservado um lugar trágico na história. Pouco depois de suceder o pai, e ainda com maior sede de sangue, Baby Doc mandou prender e matar o marido dela, o general-cunhado, por suspeita de conspiração. A originalidade estava nos laços familiares dos envolvidos, porque o figurino já havia sido usado antes e seria usado depois. E tantas vezes que nunca se saberia se a conspiração era real ou pretexto para endurecer ainda maior o regime.

O time do Santos pouco viu de Port-au-Prince. Passou pela cidade naquela noite apenas para uma concorridíssima recepção na Prefeitura – um palacete antigo e acanhado de dois andares, salas e cômodos estreitos e escadas apertadas – e seguiu direto para o hotel fora da zona urbana. Na verdade um beira-de-estrada quase isolado, esvaziado de hóspedes e reservado aos brasileiros. Dos usuários habituais, restou naqueles dias apenas a idosa moradora fixa do hotel, uma viúva endinheirada, branca e, portanto, estrangeira. A intenção era evitar nossos contatos com nativos.

Quem não se apertava em qualquer situação era o ponta-esquerda Edu. Jonas Eduardo Américo tinha chegado de Jaú, interior de São Paulo, muito garoto. Estreou no time com 15 anos, foi chamado para duas Copas do Mundo (haveria uma terceira, na Alemanha) e, aos 21, com o Santos e a Seleção, conhecia metade do mundo. Naquela noite, como em todos os lugares, deixou o quarto para explorar o hotel e fazer amizades.

Não havia muito a ver no estabelecimento e ele esticou o passeio solitário. Teria descoberto pelo menos um bar nas proximidades, segundo o minucioso relato feito na manhã seguinte pelo chefe da segurança. Coube ao treinador Antoninho Fernandes ouvir a mal disfarçada bronca e a recomendação de que ninguém deixasse o hotel sem prévia comunicação.

Era perigoso sair desacompanhado da segurança, argumentou o policial. Tão perigoso que o ônibus que levou a delegação ao treino, no primeiro dia, e ao jogo (2 a 0, Lima e Picolé, sobre a seleção local), no segundo, era sempre precedido e seguido por dois caminhões com homens armados. Foi assim até no terceiro dia, nosso último no Haiti.

Fomos levados para um piquenique na sede de praia do clube dos oficiais do Exército e lá passamos a segunda-feira ensolarada. Nós de sunga, batendo bola na areia e mergulhando no mar claro, e os seguranças vestidos a caráter. Para desconsolo do incansável Edu, e não só dele, nenhum biquíni à vista. Nenhuma presença feminina.

Imagens reproduzidas da publicação “Haïti – Première République Noire du Nouveau Monde – Son vrai visage”, que o presidente Docteur François Duvalier mandou imprimir.

Publicado por

Marcão

Jornalista aposentado, casado, duas filhas, um neto, dois poodles e nove irmãos. Santista de mãe, pai, cidade, time e o que mais bem qualifique essa condição. Sem vaidade, só verdade!

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