No bonde 17 da história

Este vídeo, produzido pela TV Cultura de São Paulo, é apenas uma lembrança, entre tantas vitórias e conquistas, dos 108 anos de história do Santos Futebol Clube, o melhor time de futebol de todos os tempos. As cenas são de 1948, um ano depois do meu nascimento, quinto filho da união da Bela Dolores com o Bom Fonseca, quando o casal chegava à metade de sua produção. Nasci na Rua Carlos Gomes, bairro do Campo Grande, onde se encontra a Vila Belmiro, berço dos maiores fenômenos do esporte, de Arnaldo Silveira ao Rei Pelé. O bonde 17 tinha seu ponto final ali pertinho e, nas caronas que nele peguei, fugindo de estribo a estribo do cobrador, vivi algumas das mais emocionantes aventuras da infância.

Dois gigantes: um afundou, o outro é eterno

Há 108 anos, num porto remoto do Atlântico Sul, nascia o maior time de todos os tempos, enquanto o Titanic naufragava no Atlântico Norte.

Presume-se que todos vestissem terno. Escuro, com certeza, como os chapéus que cobriam comportadas cabeleiras ou nenhum cabelo. É improvável que algum participante da reunião se imaginasse protagonista de um acontecimento histórico, no domingo, 14 de abril de 1912. Nada que se comparasse, por exemplo, ao alarde mundial em torno do Titanic, orgulho da indústria naval britânica e de Sua Majestade, que naquela mesma noite cruzava o Atlântico Norte, no rumo de Nova York. Antes que o sol iluminasse a segunda-feira, porém, o navio indestrutível, aquele que “nem o próprio Deus poderia afundar”, conforme dizia a imprensa inglesa, abreviaria seu curso no fundo do mar.

Os homens de gravata e chapéu só saberiam da tragédia nos dias seguintes. Agora, encerrado o encontro convocado por Raymundo Marques, Mário Ferraz de Campos e Argemiro de Souza Júnior, os 39 jovens deixam cheios de sonhos e esperanças o casarão da antiga Rua do Rosário, no centro da cidade. Sabem que o barquinho recém-lançado às águas é ainda muito pequeno para tanto mar. Sabem que não merecerão mais do que notas de rodapé nos jornais locais os acontecimentos daquela noite no remoto porto do Atlântico Sul. Mas também sabem que, ao contrário do Titanic, a viagem está apenas começando para os primeiros meninos da Vila e para o Santos.

 Texto publicado em 14 de abril de 2019

Abril do nosso orgulho santista

Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras;
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
 
Nadando em luz na oscilação das ondas…
Vicente de Carvalho

Este é o mês do Peixe, o mês do Bom Fonseca e, como diz o poeta Vicente de Carvalho nas Palavras ao mar, o mês das garças forasteiras. O mês em que o outono se mostra em todo o seu esplendor, neste hemisfério sul, e em que a primavera reanima os lugares de inverno mais rigoroso, ao norte. Aqui e lá, a preparação das mudanças climáticas: do verão para o inverno, e vice-versa.

O velho chegou à praia no dia 19, em 1911, doze meses antes de o time abençoado começar a bater bola, em 14 de abril do ano seguinte. Quando se deu conta, lá pro início da década seguinte, o menino já era torcedor fanático do time de Arnaldo Silveira, Adolpho Millon e Haroldo Pires Domingues, os três primeiros santistas que ajudaram a seleção a conquistar títulos, entre 1914 (Copa Rocca, contra a Argentina) e 1919 (Sul-Americano, disputado no estádio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro).

Arnaldo, ponta esquerda, foi titular e capitão dessas seleções e vestiu a camisa brasileira em 14 jogos oficiais, os 14 primeiros da história do escrete. Millon, ponta direita, também foi titular nas duas primeiras conquistas, e Haroldo disputou o sul-americano de 1919, como meia direita. No total, fez quatro jogos pela seleção e marcou quatro gols. Era praticamente o ataque do Santos que, sete anos depois da fundação, cedia o maior número de jogadores para a seleção.

No ano seguinte, outros dois santistas disputaram um sul-americano: Castelhano e Constantino. No fim daquela década, Feitiço e Araken também representaram o Peixe na seleção.

O jovem Fonseca tinha motivos de sobra para se orgulhar do time da sua cidade, cuja vocação ofensiva se delineou desde o início. Na primeira década, com os três atacantes da seleção campeão sul-americana, e, na segunda, com o mitológico ataque dos 100 gols, de 1927. Só não tinha títulos para comemorar, porque os juízes nos garfavam sem cerimônia, inclusive no ano do centenário de gols.

 

“Não sabia quem era Pelé e quem era Coutinho!”

Bolero, zagueiro rubro-negro nos anos 1960, sofreu com as tabelinha e os dribles da dupla na noite em que o Santos fez 7 a 1 no Flamengo no Maracanã

Pelé, Coutinho e Dorval: quem é quem?

Bolero foi um zagueiro do Flamengo nos anos 1950/1960. Jogava com mais frequência nos aspirantes, entrava às vezes no time titular, era reserva. Em 1984, carreira já encerrada, Bolero trabalhou como motorista do jornal O Dia.

Reservado, caladão, Bolero tinha no entanto muitas histórias para contar. Quando resolvia ia recordando levado pela saudade do tempo de jogador. Histórias que nem sempre eram de “mocinho”, como aquela em que enfrentou o Santos de Pelé, Coutinho & Cia. no Torneio Rio-São Paulo de 1961.

Era um tempo em que os zagueiros ficavam, de véspera, apavorados ao saber que teriam de marcar Pelé. O jogo entre Flamengo e Santos, no Maracanã foi no dia 11 de março de 1961. Bolero não estava relacionado para a partida. Como o zagueiro titular havia se contundido, e fora vetado, Bolero foi convocado às pressas para se concentrar e escalado para jogar.

Bolero entrou em campo preocupado. Não era para menos – afinal teria pela frente Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe, o famoso ataque santista. Só não podia imaginar que naquela noite viveria o pior dos seus pesadelos, como ele começou a recordar de maneira bem-humorada.

– Eu ainda não tinha botado o pé na bola, e o Santos já estava vencendo por 2 a 0 – contou.

Bolero não perdia por esperar. Pelé estava em noite inspirada, driblando a quem lhe aparecia pela frente.

– Teve um gol em que eu caí sentado com o drible que ele me deu. Quando eu virei, a bola já estava na rede.

O time do Flamengo (e a defesa) quase não pegava na bola. Pelé e Coutinho iam fazendo das suas, através de tabelinhas que deixavam tontos os zagueiros rubro-negros. Em um desses lances, outra vez Bolero tentou entrar em ação. Não conseguiu, de novo, achar Pelé. Ou Coutinho.

– Eles entraram tabelando e saiu outro gol. O time do Santos não parava de atacar. No final, não sabia mais quem era Pelé, quem era Coutinho, na velocidade eles se pareciam. Tinha também o Dorval, que ajudava a confundir ainda mais. Só sei que eles não paravam de fazer gol.

Pelé fez quatro, Pepe fez dois e Dorval completou. O Santos goleou o Flamengo por 7 a 1, diante da sua torcida, no Maracanã. O Flamengo jogou com Fernando, Joubert, Bolero, Nelinho (Jadir) e Jordan; Carlinhos e Gérson; Joel, Henrique (Luís Carlos) Dida e Babá (Germano). Henrique marcou para o Flamengo, que devolveu a goleada vencendo depois o Santos por 5 a 1, no Pacaembu, e terminou campeão do Rio-São Paulo de 1961.

 (https://www.cbf.com.br/selecao-brasileira/torcedor/jogos-inesqueciveis/… Não sabia quem era Pelé e quem era Coutinho!” 01/09/2015 | Assessoria CBF)

 

O Papa viu Pelé

O sol do fim de tarde ilumina o Caravelle da Air France que segue tranquilo sobre o mar do Caribe. No avião, um time de futebol dorme. A maioria francesa que embarcou nos Estados Unidos e se dirige para o Haiti – destino estranho, justificável para burocratas, acadêmicos ligados no exotismo e turistas desavisados – não mostra interesse pelos rapazes de terno escuro, escudo preto e branco no bolso do paletó. Um deles é Pelé.

Anos antes, a simples presença do futebolista em território africano havia interrompido guerras. Pelé é uma celebridade mundial. Foi coroado rei pela imprensa francesa, mas os passageiros que o acompanham no trajeto entre Nova Orleans e a ilha Hispaniola só se darão conta da figura ilustre da poltrona ao lado (ou à frente, talvez mais atrás) quando o avião, ainda taxiando na pista do Aeroporto François Duvalier (nome da época), for cercado pela multidão.

Então, terá anoitecido e será tarde para os franceses. Os brasileiros do Santos FC descerão direto para o interior de limousines e iniciarão uma viagem surreal de três dias pelos domínios do Papa Doc.

Os soldados brasileiros da Força de Paz da ONU no Haiti percorreram, anos mais tarde, os mesmos oito quilômetros – pouco mais, pouco menos – da pista simples que leva do aeroporto à capital, Port-au-Prince, situada no ponto mais recôndito do golfo de Gonâve. Avançando pelo golfo, o oceano reduz a extensão territorial do Haiti a 27 mil quilômetros quadrados, mas em troca desenha uma costa magnífica, que abriga a quase totalidade da população de cerca de doze milhões de habitantes.

Na altura de Port-au-Prince, na parte sul da ilha, o território haitiano atinge sua menor largura. Acima e abaixo dali e em direção à fronteira com a República Dominicana (bem próxima, a leste), predominam as montanhas. Elas reduzem ainda mais as áreas aproveitáveis, mas são excelentes pontos de fuga, um jeito fácil e rápido de buscar abrigo no país vizinho. De forma que as principais cidades se espalham pelas planícies costeiras, ao norte e a oeste.

Parece a descrição do paraíso, mas a realidade, sabe-se, está muito longe disso. O Haiti, cuja tragédia política e social pede socorro ao mundo, nada mais é do que a continuação do Haiti do início dos anos 70, visitado pelo Santos. O Haiti de Papa Doc, François Duvalier, médico sinistro, pai da pátria, fruto da maldição lançada no martírio do libertador L’Ouverture.

O ex-escravo Toussaint da virada dos séculos 18 e 19, que expulsa ingleses e espanhóis da ilha descoberta por Colombo e, com a bandeira dos ideais da Revolução Francesa, conquista a liberdade. Efêmera liberdade, interminável danação. L’Ouverture é preso e banido tão logo assume o poder, em 1801, e morre na França.

Primeira colônia americana a libertar seus escravos, o Haiti vive a partir dali a sucessão de golpes, revoltas e guerras civis que terá sempre o mesmo resultado: os perdedores serão executados, mas os vencedores não terão vida longa. Serão os perdedores a seguir.

A independência, igualmente frágil, dará lugar a frequentes intervenções e ocupações por forças estrangeiras, especialmente a partir da entrada em cena dos interesses norte-americanos, já no Século 20. São esses interesses que levam à eleição de François Duvalier, em 1957.

 

Colombo e L’Ouverture, em Port-au-Prince

Os carros encostam na escada do avião e os santistas acomodam-se neles em grupos de cinco ou seis. Em volta, a multidão e, lá atrás, ou melhor, no alto da escada ou ainda dentro do avião, os outros passageiros, boquiabertos, obrigados a esperar a dispersão para também desembarcar. Os carros deixam a pista do aeroporto com os faróis acessos, em velocidade não muito alta, mas excessiva para a segurança de quem está em volta. Muitas são obrigadas a se atirar para o lado, fugindo do atropelamento. Logo estamos na estrada.

Tantos anos depois, as lembranças são vagas e só tornam mais dura a constatação de que o privilegiado jornalista em início de carreira era também um péssimo repórter. Não há um caderno de anotações guardado e mesmo os textos enviados para o jornal (e publicados com o devido atraso, face à lamentável ausência de recursos como internet ou um banal telefone celular, não só naquela ilha triste, mas no mundo) pecam pela base informativa. Quase não há dados, nomes – o foca concentra sua atenção no lado errado da história e o resultado do relato é pífio. Ah, se fosse possível voltar àquela noite e aos dias que se seguiram!

Mas agora é preciso recorrer à memória – absolutamente inconfiável do jornalista aposentado – e voltar àquela estrada com uma correção. Eu disse “ilha triste”, mas onde a tristeza se a natureza é bela e o povo alegre? Olho pelas janelas do carro e, dos dois lados, grupos de pessoas pulam, correm, parecem comemorar a nossa passagem.

Os vidros fechados impedem que se ouçam seus gritos, mas elas cantam e dançam, também. E sorriem. Talvez não sejam felizes, mas é claro que são alegres. Lembro do poetinha: “é melhor ser alegre que ser triste”. É a iluminação fraquíssima dos postes públicos que torna a minha visão, esta sim, compadecida.

Tais cenas, mais e mais esmaecidas, são inesquecíveis. Junto a elas, uma dúvida nunca respondida. Sempre gostei de pensar que as pessoas saíram das casas para receber Pelé e o Peixe. Intuí que cercaram os dois lados da estrada até Port-au-Prince só para isso. Mas terá sido esse o motivo? Para nos festejar? Não tenho tanta certeza.

É possível que a maioria nem soubesse da chegada do Rei e seus companheiros do Santos. Podia ser só a confraternização de todas as noites, pouco importando os personagens que transitassem à frente, porque, olhando além, para o interior das casas, percebo algo mais. Se junto à estrada a iluminação é fraca, nos barracos em volta ela inexiste. Daí que, como na ruazinha de terra de minha infância no Marapé, em Santos, saem todas as famílias para o convescote noturno, tão logo escurece, e até que chegue a hora de dormir.

Desde sempre, para a minha geração, Haiti é sinônimo de miséria. Miséria e horror. Miséria, horror e corrupção. E continua sendo, mesmo que os tontons macutes, os bichos papão, só resistam nas velhas canções de ninar e o vodu não assuste como antes. Caetano disse uma vez “o Haiti é aqui”. Caetano tinha idade suficiente para falar do tempo de Papa Doc lá e da ditadura militar aqui. Mas como foi um Caetano mais recente que falou, e não aquele antigo do exílio, devia estar se referindo ao Haiti/Brasil da miséria e da corrupção, só.


Papa Doc, François Duvalier, e o estádio em que o Rei jogou

Papa Doc morreu dois meses depois de ver Pelé. Ele foi ao campo naquela tarde de fevereiro de 1971. Exatamente ao campo, porque o estádio muito simples, quase todo de madeira, não tinha acomodações presidenciais e o jeito foi o cerimonial do Palácio colocar confortáveis cadeirões forrados de veludo vermelho à beira do gramado. Exatamente três cadeirões, com o presidente ao centro, Mama Doc à direita e o gordinho Jean-Claude, Baby Doc, à esquerda. Dos dois lados, cadeiras comuns acomodaram os ministros e as autoridades civis, militares e eclesiásticas.

Vale a pena recordar a chegada daquela gente. Por um portão lateral, os enormes carros pretos entraram no estádio Sylvio Cator, capacidade para 20 mil pessoas, lotado. Dos dois primeiros desceram os homens da guarda pessoal da família Duvalier. Negros altíssimos de terno preto, óculos escuros e metralhadora na mão. Pense em como seriam os tontons macutes. Pois eles eram exatamente iguais aos da sua imaginação. Do terceiro carro saiu o casal, quando a plateia já delirava, e, do quarto, o gordinho, que nem imaginava estar a tão poucos dias de ocupar o lugar do pai. Ou saberia que sua vez estava chegando? Quando se sentaram, pude chegar perto e fotografar. Pessoas simpáticas. Pense na tia mais querida. Mama Doc era a cara dela.

Acho que a irmã mais nova não estava no Haiti ou não se interessou pelo jogo. Pelo menos não a vi por lá, mas para ela também estava reservado um lugar trágico na história. Pouco depois de suceder o pai, e ainda com maior sede de sangue, Baby Doc mandou prender e matar o marido dela, o general-cunhado, por suspeita de conspiração. A originalidade estava nos laços familiares dos envolvidos, porque o figurino já havia sido usado antes e seria usado depois. E tantas vezes que nunca se saberia se a conspiração era real ou pretexto para endurecer ainda maior o regime.

O time do Santos pouco viu de Port-au-Prince. Passou pela cidade naquela noite apenas para uma concorridíssima recepção na Prefeitura – um palacete antigo e acanhado de dois andares, salas e cômodos estreitos e escadas apertadas – e seguiu direto para o hotel fora da zona urbana. Na verdade um beira-de-estrada quase isolado, esvaziado de hóspedes e reservado aos brasileiros. Dos usuários habituais, restou naqueles dias apenas a idosa moradora fixa do hotel, uma viúva endinheirada, branca e, portanto, estrangeira. A intenção era evitar nossos contatos com nativos.

Quem não se apertava em qualquer situação era o ponta-esquerda Edu. Jonas Eduardo Américo tinha chegado de Jaú, interior de São Paulo, muito garoto. Estreou no time com 15 anos, foi chamado para duas Copas do Mundo (haveria uma terceira, na Alemanha) e, aos 21, com o Santos e a Seleção, conhecia metade do mundo. Naquela noite, como em todos os lugares, deixou o quarto para explorar o hotel e fazer amizades.

Não havia muito a ver no estabelecimento e ele esticou o passeio solitário. Teria descoberto pelo menos um bar nas proximidades, segundo o minucioso relato feito na manhã seguinte pelo chefe da segurança. Coube ao treinador Antoninho Fernandes ouvir a mal disfarçada bronca e a recomendação de que ninguém deixasse o hotel sem prévia comunicação.

Era perigoso sair desacompanhado da segurança, argumentou o policial. Tão perigoso que o ônibus que levou a delegação ao treino, no primeiro dia, e ao jogo (2 a 0, Lima e Picolé, sobre a seleção local), no segundo, era sempre precedido e seguido por dois caminhões com homens armados. Foi assim até no terceiro dia, nosso último no Haiti.

Fomos levados para um piquenique na sede de praia do clube dos oficiais do Exército e lá passamos a segunda-feira ensolarada. Nós de sunga, batendo bola na areia e mergulhando no mar claro, e os seguranças vestidos a caráter. Para desconsolo do incansável Edu, e não só dele, nenhum biquíni à vista. Nenhuma presença feminina.

Imagens reproduzidas da publicação “Haïti – Première République Noire du Nouveau Monde – Son vrai visage”, que o presidente Docteur François Duvalier mandou imprimir.

O idioma que se fala

– Tudo bem?
O passante cumprimenta o conhecido que cruza com ele na calçada, na manhã ensolarada destes dias. A resposta é bem brasileira:
– Tudo bem!!!???
Uma afirmação como resposta e, ao mesmo tempo, uma pergunta embutida na entonação final. Coisa distinta, de quem quer saber do bem estar do outro.
– Tudo bem!
Na medida certa das palavras, e sem reduzir o passo, os vizinhos travam um diálogo completo. Com começo, meio e fim.

Conversa ao pé do Monte Megido*

“Ele prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o diabo, Satanás, e o acorrentou por mil anos. Lançou-o no abismo, fechou-o e pôs um selo sobre ele, para assim impedi-lo de enganar as nações, até que terminassem os mil anos. Depois disso, é necessário que ele seja solto por um pouco de tempo.” Apocalipse 20:1-3

O senhor de meia idade, atarracado e acima do peso, aproximou-se do homem que parecia comandar os trabalhos.
– Tem alguma coisa para eu fazer por aqui?
Calçava sapatos italianos de bico fino, impróprios para aquele chão, e as roupas ostentavam marcas que a crise depreciou e fez desaparecer. O agricultor não deixou de reparar nos modos afetados do homem. No desconforto e no pouco jeito com que se movia por ali.
– O senhor não é o doutor Alfredo, que tem casa nas terras do outro lado do rio? Veio a pé? É uma caminhada e tanto!
Alfredo incomodou-se por ser reconhecido, mas não teve como negar. Disse que havia conseguido manter a propriedade, onde agora morava com a família. Fora levado a isso ao perder todas as posses e atividades rendosas que tinha na capital: a advocacia privada e um bem remunerado cargo público, que lhe valia participação em dois conselhos de administração de empresas estatais.
Os imóveis foram vendidos a preço de banana, as aplicações no mercado financeiro derreteram e pouco restava das reservas em ouro e moeda estrangeira com algum valor. Logo, não haveria de onde tirar o sustento.
– Pode me chamar de Alfredo, sem doutor. Mas me diga senhor… senhor… Desculpe, esqueci seu nome.
– Antônio Ricci, ao seu dispor, mas não faça cerimônia. Pode me chamar de Tonhão, como todos.
O agricultor voltou a avaliar o homem que havia sido importante, admirado e temido na região. Pensou nas voltas que o mundo dá. Conhecia histórias de famílias que perderam tudo na pandemia. Na verdade, todas que tinham o que perder. Sabia das mudanças que abalaram o mundo sobrevivente da doença, mas via pela primeira vez, à sua frente, em carne e osso, um efeito da tragédia global.
– Preciso esclarecer algumas coisas, senhor Alfredo. Pode não parecer, mas não sou dono deste lugar nem chefe de ninguém. Apenas ajudo a organizar os serviços, porque fui capataz de fazenda e tenho experiência. Mas também pego no pesado, para fazer jus à cota semanal de comida, proporcional ao tamanho da minha família. De forma que todos aqui ganham igual.
Tonhão explicou mais. Do jeito dele, disse que ali não há departamento de recursos humanos. As pessoas chegam, escolhem um canto para erguer a casa e, imediatamente, passam a ajudar na produção. Cada um tem mais talento para certas tarefas, é claro. Alguns sabem abrir e preparar um roçado, outros têm mãos boas para semear ou são mais rápidos na colheita, e assim por diante. Quem chegou com porco, vaca e galinha passou a cuidar da produção comunitária de carne, leite e ovos.
– De modo que o senhor pode escolher uma ferramenta ali e se juntar a nós. Não tem burocracia, registro em carteira, nem se exige diploma. Cada um faz o que sabe. O que o amigo sabe fazer?
Alfredo notou a ironia, mas esperava a pergunta.
– Não penso num cargo muito elevado, que corresponda às minhas qualificações. Posso cuidar da contabilidade, produzir relatórios de produção, fazer análises de mercado, indicar rumos. Coisas assim. Posso trabalhar de casa mesmo e vir aqui de vez em quando.
O agricultor ouviu em silencia e em silêncio ficou por um tempo. Isso animou Alfredo a avançar em suas ideias para o negócio. Aliás, ele via até o horizonte daquelas terras grandes oportunidades de negócio, como diziam os amigos. Aproveitou a brecha e foi em frente:
– Minha filha, a Belinha, é formada em propaganda e marketing. É muito criativa. Trabalhou nas maiores agências. Pode ajudar a criar uma marca e fortalecer a imagem da produção. Vai ser um sucesso.
– Quem sou eu para contrariar o senhor, seu Alfredo, um homem tão vivido e tão bem sucedido. Não duvido da importância disso aí que o senhor está falando, mas, por enquanto, o que precisamos é produzir mais. Garantir a alimentação da nossa gente e ter sobras para a central do sistema. Eles vêm buscar nossa comida e deixam tecidos, remédios e outros artigos que não fazemos. É o velho e bom escambo.
Alfredo tremeu, mas pensou que ainda podia escapar daquele destino. Nunca se imaginou pondo a mão na terra, desde quando era levado pelos pais ao balneário do litoral norte e brincava de fazer castelos de areia na praia. Agradeceu, despediu-se com um aperto de mão e a promessa de voltar depois de conversar com família. Distante alguns metros, ainda ouviu:
– Vai com Deus, seu Alfredo! Se entre os desempregados da sua empresa houver interessados, pode mandar para cá. Precisamos de mão-de-obra.
O caminho de casa pareceu mais longo e cansativo. Mais do que os pés, doía a alma. É inadmissível essa mudança de ordem. Como aceitar que a pirâmide secular tenha se invertido tanto em tão poucos meses? E o que pensar da perda total de referências e valores? Quer dizer, então, que agora um capiau de poucos estudos se dá ao desplante de desprezá-lo daquele jeito!
Deve ter sobrado algum lugar para as pessoas de fino trato. Um reduto onde ainda se aprecie um bom vinho, uma tela de Van Gogh, uma sinfonia de Beethoven, um prato elaborado, um texto de Pessoa, uma cidade como Paris. Não é possível que todo o gênio humano, da Grécia antiga ao time do Santos, tenha se perdido de ontem pra hoje.
Não é possível que eu, Alfredo, virei descartável!

* Lugar em que, de acordo com estudiosos da Bíblia, se dará o fim do mundo, o armagedom.

A compra do cassino foi um erro. Mas Nicácio não condena o turco

Esta é uma ficção. Relato de Argemiro da Veiga, oficial de barbearia, salão montado no Macuco, junto ao cais, com base em devaneios do freguês Nicácio. Qualquer semelhança com pessoas e fatos reais é coincidência

Para o velho Nicácio, a compra do hotel-cassino foi um divisor de águas na história do clube. De vez em quando, comentando algum fato atual, o portuário aposentado lembra daquele passo errado e suas conclusões, como sempre, ficam muito além da minha capacidade de entender as coisas.

Não há dúvida de que, na opinião do velho, o negócio foi uma das maiores besteiras já feitas. E ele não vacila em apontar o responsável pelo “tresloucado gesto”: o presidente do clube na época.

O que não entra na minha cabeça é que, com tudo isso, o meu amigo garanta que esse é o melhor presidente que já tivemos. Na verdade, a admiração nunca foi abalada. “É preciso entender os homens, Argemiro. Ele teve um motivo que eu respeito para fazer o que fez.”

Foi nesse dia que o Nicácio me falou da paixão que o antigo presidente teria alimentado por uma primeira-dama do país. Segundo o velho, o turco nunca falou disso com ninguém e nem teve como levar o romance adiante. Seria risco de vida para ele.

“O general-ditador pertencia à linha dura e o nosso presidente era também deputado da oposição. Diante da mínima desconfiança, o turco iria parar no forte do coronel feroz ou no Raul Soares. Lembra do Raul Soares, Miro? De quanto preso sofreu lá, sem saber por quê?”

Eu era garoto naquele tempo, mas às vezes ia até a faixa do cais com um tio da Polícia Marítima e via o navio-prisão fundeado no meio do canal do porto. Sabia o que estava acontecendo em Santos e no país, porque ouvia as conversas dos adultos e passava por muros pichados com nomes de sindicalista, político, estudante: “Fulano é comunista”.

A moda era dedurar. Um nome que ficou gravado na minha cabeça: “Manente é comunista”, li numa parede. Esse Manente era jornalista.


Parque Balneário, hotel-cassino
semelhante ao desta história

O clube não comprou o imóvel para entrar no ramo hoteleiro. Queria era explorar o famoso cassino após a reabertura do jogo. Dizia-se que era questão de tempo, porque a primeira-dama defendia a liberação. Mas a igreja foi contra, a ditadura não quis comprar mais essa briga com os padres, e o Peixe ficou com o mico.

É uma história interessante, que explica o começo da decadência do clube. Mas minha imaginação não vê nela a comprovação de um amor.

“Pense junto comigo, Miro. O cara deu certo em tudo. Jogador de futebol, foi um grande goleiro. Cartola, o time não teve outro igual. Político, ganhou todas as eleições que disputou. Moço, era um rapaz bonito. Homem feito, não houve alguém mais distinto. Fino, elegante, rico e sedutor. As mulheres não resistiam. Teve uma cantora famosa que, dizem, tentou o suicídio por causa dele. Mas fracassou no amor. Sabe por que? Porque seu grande amor, único de uma vida, o verdadeiro – esse amor foi impossível.”

Foi uma de nossas conversas mais longas. E, se querem saber, foi também a mais emocionante. Fiquei feliz de ver o amigo, enternecido, falando bem de alguém, ele que em geral só falava mal.

“O turco costumava dizer que no seu coração só cabia o clube. Mas eu sei que houve outra grande paixão. Ele teria dado metade do passe do Rei para conduzi-la pelo menos uma noite ao imenso salão dourado. Junto dela, suspenderia a respiração enquanto os dados rolassem no pano verde. Apertaria levemente os amados ombros na virada das cartas e ousaria até mais, durante o giro da roleta. Provocador, fixaria o olhar despudorado no generoso decote. Que homem poderá condená-lo por isso, Miro?”

Quando o velho pisava a calçada, o fim da conversa não era para ser ouvido. “Eu sei como são essas coisas, amigo. Também estive a ponto de fazer loucura por uma mulher!”

Que torcedor foi mais abençoado?

Comecei a frequentar a Vila na metade da década de 1950. Era um moleque feliz, vivia descalço pelas ruas de terra do Marapé e fazia do campo do Santos, do alto do morro e das areias do José Menino extensões do minúsculo quintal do nosso chalé de madeira de dois cômodos na Rua Morvan Dias de Figueiredo.

O time de branco começava a se armar para conquistar o mundo e meus deslumbrados olhos só viam craques no Peixe. Era vestir o manto sagrado para virar ídolo. E era incomparável a alegria das tardes de domingo no pequeno lance de geral reservado aos “meninos do Santos FC”. Reparem na data da primeira frase deste texto. Pois é! Acompanhei de perto toda a fase mais vitoriosa do clube que o Bom Fonseca colocou no meu coração. Vi de alguma forma todas as conquistas do maior time da história.

A bombas do Pepe, os lançamentos do Jair Rosa Pinto, o comando do Zito, a classe do Ramiro, as diabruras de Vasconcellos, a força do Del Vecchio. O ataque PPP, Pagão, Pelé e Pepe. Depois, a dupla Pelé-Coutinho, das tabelinhas mortais, e o chamado trio defensivo: Manga, Hélvio e Ivã. Mas o principal eram as goleadas, as chuvas de gols. Quatro num jogo era pouco para aqueles ataques, que podiam ter Dorval e Tite nas pontas.

Cresci e fiquei mais exigente. Durante anos não engoli Toninho Guerreiro, em suas primeiras temporadas no Peixe. Para mim, ele usurpava a camisa 9 tão finamente vestida por Pagão e Coutinho. Até que, encerradas as carreiras desses dois príncipes, tive de me render aos dotes do goleador que veio de Bauru para ajudar na conquista de nosso tricampeonato paulista de 1967, 1968 e 1969. Toninho não era o fino da bola, mas foi um grande jogador e merecia mais respeito.

Durante aquela década, acompanhei todos os jogos que pude, em Santos e em São Paulo. Muitas vezes, faltava grana para subir a Serra, mas na Vila sempre se dava um jeito de entrar de graça. Impossível era ir mais longe e o Peixe era cada vez mais um time do mundo, levado pelo brilho de Pelé e companhia e, também, pela clarividência da diretoria da época.

Athié, Roma e Moran tinham outra cabeça. Logo, perceberam que o negócio do Santos era o fantástico time de futebol. Viram que só alargando seus horizontes seria possível mantê-lo sempre forte. Daí que fomos decidir os nossos maiores títulos no Maracanã e fizemos de Paris, Roma e Madrid, entre outras capitais, palcos cativos de nossos espetáculos. O Peixe exportação não perdeu um pingo de sua identificação com a cidade e com a torcida. Pelo contrário, nos dava orgulho ver a multidão de cariocas, franceses, italianos e espanhóis brigando por um lugar nos estádios que reverenciavam o nosso time.

Segui esse Santos em parte pelas imagens em preto e branco da televisão da época, pela empolgada narração dos locutores de rádio e, principalmente, pelo texto maravilhoso dos cronistas de A Tribuna. De Vaney, Chico Sá, Ary Fortes, Gilberto Bezerra e J. Lima transformavam as excursões do time em epopeias, narrativas de Marco Polo, contos das Mil e uma noites.

Até que virei jornalista, também, e fui cobrir o Santos, ainda de Pelé, Carlos Alberto, Ramos Delgado, Clodoaldo, Joel Camargo e Edu, mas já na pré decadência do início dos anos 1970. Acompanhava os treinos, entrevistava diretores, técnicos e jogadores. Ia aos jogos e participei, como membro da delegação, de várias viagens ao exterior.


O Bom Fonseca em 1936, na Pauliceia, com
o distintivo do campeão paulista na gravata.

A convivência profissional com o clube me transformou em outro torcedor. Provisoriamente, em não-torcedor. Os tempos também eram outros, o futebol se modificava, com a implantação de um profissionalismo algo exagerado e frequentemente equivocado. Terminavam os tempos românticos que ligavam o jogador ao time e à camisa. Por justiça, devo dizer que, até o fim, o nosso Corró foi exceção.

Passaram a prevalecer os interesses individuais, num esporte até então considerado coletivo. Surgia o “jogador maior que o clube, a cidade e a torcida”. Carlos Alberto, por exemplo. De repente, no pior momento, quis porque quis voltar para o Rio. Achou que as coisas por aqui estavam ruins, mas, ao ver que lá podiam ser piores, voltou. Por pouco tempo.

Além de perder jogadores para a idade e incapacitado de fazer as reposições necessárias, porque a infeliz compra do Parque Balneário Hotel exauria suas finanças, o Peixe ainda sofreu perdas precoces de jogadores vítimas de contusões e acidentes. Um câncer nos levou o goleiro Cláudio, batidas de carro praticamente encerraram as carreiras de Joel Camargo e Mané Maria, enquanto um joelho problemático levava Djalma Duarte, jovem promessa vicentina, a parar com o futebol.

Uma grave fratura também nos tirou Cláudio Adão, sem impedi-lo de seguir jogando. Passou por todos os grandes do Rio, foi várias vezes campeão carioca, mas nunca mais chegou à seleção, numa época em que ser titular de qualquer time da Cidade Maravilhosa era meio caminho andado. O Santos continuou grande, no mínimo o maior do Brasil, mas a supremacia dos Meninos da Vila e dos times de Chulapa, Giovanni, Diego, Robinho e Neymar nunca mais foi tão avassaladora.

Na guerra insana, vale qualquer aliado

Tempos malucos, estes. Em meio à mais profunda incerteza sobre o que será de nós ou, no mínimo, sobre como ficará o mundo pós pandemia, os insensatos continuam em guerra, para manter nacos de poder ou ganhar importância. Acham-se imunes? Ou preparam a inscrição para as próprias lápides: “Foi em vão, mas lutei até o fim para me dar bem!”?
Deve acontecer no mundo todo, porque Deus não há de ter reservado tanta cretinice como atributo único e exclusivo de nossos governantes, políticos e formadores de opinião. De governantes e políticos, na verdade, desde muito tempo, e ainda mais hoje, além dos 70, nunca esperei mais e melhor. É o padrão deles. Nem dá para reclamar, porque fomos nós que colocamos os calhordas onde estão. Insistimos em dar razão ao Rei.
O que me incomoda e envergonha é a atitude da grande mídia. Um querido amigo, o qual não viveu para ver esse pan…demônio, diferenciava mídia e imprensa. Para Osvaldo Martins, mídia é um negócio e imprensa, uma atividade voltada à informação, bem dos cidadãos, o que insere o jornalismo entre os direitos e liberdades fundamentais. É bom que grandes grupos de comunicação sejam ao mesmo tempo mídia e imprensa, porque fazer jornalismo é caro e exige competência empresarial. Basta saber separar as coisas. Mas, com exceções, o que temos hoje é só mídia.
Outro dia lembrei da minha introdução na profissão. Foca, fui encarregado de encontrar mazelas na cidade, para bater no interventor militar. Até que o general de plantão fez acordo com o jornal e tirou o bode da sala. Mais exemplares desse comportamento “desinteressado” da nossa mídia são um histórico jornal carioca, já extinto, e aquela que foi durante décadas nossa maior revista semanal de informação.
Os saltos triplos carpados que essas publicações davam na relação com os governos eram nada menos que espetaculares. Aos seus leitores só cabia ficar de boca aberta e, de vez em quando, soltar um expressivo “uau!”. Consta que tais malabarismo cessavam quando jornal e revista, em épocas distintas, voltavam a ocupar lugar top na publicidade federal.
Raras vezes presenciei conflitos da mídia com a autoridade maior do país motivados por questões republicanas. Lembro da postura do Estadão, com seu irmão caçula Jornal da Tarde, durante o regime militar. Veja foi outra que enfrentou a ditadura com altivez, além da imprensa digamos nanica e a alternativa. Houve certamente outras resistências importantes, que cometo a descortesia de não mencionar, por lapso de memória.
Mas a maioria aderiu, entre eles um jornal hoje tão ativo no confronto com o governo legitimamente eleito. Na época brava, nem opinião tinha. Considerava mais prudente não dar palpite e expor o que pensava.
É no jornalismo da Rede Globo, no entanto, que o pior desse mundo se encontra e ecoa. Há tempos, sabe-se que a empresa não vai bem das pernas. São de domínio público os enxugamentos na programação e no quadro de pessoal, incluindo o estrelado elenco das novelas. Com a situação deixada pelo governo Dilma, escassearam os recursos públicos, antes tão generosos, e reduziu-se o investimento privado em mídia.
Com a entrada em cena de Bolsonaro, começou o jogo do bate e assopra, mas os resultados não foram os esperados. O outro lado manteve-se inflexível. Daí o endurecimento da oposição ao governo, nos telejornais do grupo e nas suas publicações impressas. Na TV, a pancadaria é inacreditável. Fora de propósito, em tom bem acima das latas que infla, absolutamente desproporcional e indecente.
O comportamento é tão indecoroso que notícias boas, ou pelo menos neutras, são atribuídas a um governo impessoal. Já as más notícias, verdadeiras ou forçadas, têm nome e sobrenome: os do presidente desafeto. Alguém pode dizer “bem feito pra ele!”, não sem razão. Mas, e desse tipo de “jornalismo”, o que se pode falar? Eu digo que não engrandece a profissão que tanta gente dignificou. Muito ao contrário.
Nos tempos da Praça Marechal Deodoro, gloriosos anos 1980, ativistas sociais ligavam para a redação e pediam cobertura para manifestações que estavam sendo organizadas. Quando o pauteiro pedia detalhes como data, horário e local, as pessoas respondiam: onde e quando for melhor pra vocês. “A Globo vai cobrir, ?” Pois é! Hoje, a técnica foi aprimorada por instituições e gente de alto bombordo. Até o mais tosco assessor de imprensa sabe que, para entrar na Globo, basta ao cliente afinar o discurso ao da emissora. Daí vermos toda noite, os mesmos “especialistas” ensinando ao governo incompetente o que fazer.
Dependendo do grau de afinidade, o interessado pode até virar “comentarista” fixo na grade “jornalística” da Zorra Total. É o caso do presidente da Câmara, conhecido por “Botafogo” na planilha de propinas da Odebrecht. Aqui, porém, trata-se mais propriamente de aliança dos amigos do Bozó com a escumalha da política nacional.
Assim como os governos do PT associaram-se a Sarney, Renan, Collor, Temer, Barbalho, Delfin, Maluf, ao mais profundo baixo clero e tantas flores do bem para viabilizar seu projeto de poder e controle do Tesouro, a TV BBB despudoradamente liga-se aos atuais simulacros daqueles tipos, alguns dos quais os mesmos.
Troca visibilidade em rede nacional por apoio ao plano lelé-tantam de derrubar o presidente democraticamente escolhido. Depauperada pela queda de receita da publicidade pública (principalmente) e privada, mas momentaneamente revigorada por uma audiência literalmente cativa (que, na falta do que fazer, sai às varandas para bater lata, entre outros atos heroicos), os lunáticos tocam indiferentes sua guerra brancaleone.
Se Darth Vader baixasse hoje, não haveria aliado melhor. Na falta do vilão de George Lucas, pode servir o covid-19.