“Couto, tu é foda”

Coutinho levou a dupla de zaga chilena para a entrada da área, quando Lima e Pelé iniciaram o contra-ataque, ainda no meio de campo. Pelé tocou para Lima e saiu em velocidade pela meia direita. Coutinho, lá na frente, voltou alguns metros, cercado pelos dois beques, e chamou o passe. Lima percebeu a movimentação do companheiro e lançou. Foi na verdade um chute, forte e rasteiro, numa distância de quase trinta metros. O centroavante desviou a bola com o lado de dentro do pé direito, para a esquerda da defesa adversária, e saiu pelo outro lado, de novo levando junto os marcadores.

Além de Rei, Pelé também era chamado de Fera, quando iniciava suas arrancadas mortais. Naqueles dias mesmo, em Santiago, onde o Santos disputava mais um torneio de verão, um hexagonal com a participação dos três maiores times chilenos da época, mais América do México e Dínamo de Zagreb, a agência de uma distribuidora de combustíveis gravou com ele alguns comerciais baseados no símbolo da empresa, a pantera. A imagem era perfeita.

Alguns companheiros não gostavam do que consideravam privilégios concedidos pelo Santos a Pelé. Entre eles, a autorização para deixar o hotel e ir ganhar alguns trocados com publicidade. Um dos descontentes era o capitão Carlos Alberto Torres. No início de um treino, ele pediu a palavra ao técnico Antoninho Fernandes e cobrou mais empenho e envolvimento dos companheiros. De fato, o Peixe havia começado mal o torneio, com uma derrota (Colo-Colo) e um empate (Dínamo). O lateral lembrou que era ano de Copa e o futebol brasileiro já não assustava tanto os adversários. Era janeiro de 1970, e a advertência parecia dirigida a Pelé.

Alcançado o milésimo gol, dois meses antes, o Rei não parecia muito animado em disputar partidas sem importância. Mesmo assim, marcou oito vezes em cinco rodadas do torneio chileno, duas no jogo final, que deu o título ao Peixe, contra o Universidade Católica, batida por 3 a 2 na noite de 7 de fevereiro de 1970, sábado de carnaval. Coutinho fez o outro gol santista, possivelmente o último com a camisa branca. O mais espetacular, no entanto, foi o passe para um dos tentos de Pelé, que comecei a descrever acima.

Mesmo desmotivada, a Fera não resistiu ao passe tão açucarado, como diziam os locutores da época (eu preferia o interminável magistraaaaalllll gol de Pelé, de Edson Leite, para mim o melhor narrador da Copa da Suécia). Nem o Rei nem a bola precisaram acelerar ou reduzir a velocidade. Encontraram-se naturalmente já dentro da área da Católica, e Pelé encheu o pé. Com tanta força, que acompanhou deslizando de peixinho pela grama a trajetória da pelota até dentro do gol. Atônito, o goleiro só pode ver com o rabo do olho aquela dupla invasão de sua meta e de sua privacidade.

Coutinho nem se deu ao trabalho de verificar o desfecho do lance, no qual teve participação decisiva. Passou correndo pela frente do fotógrafo, na direção oposta àquela em que seus companheiros amontoavam-se em comemoração. Fazia cara de mau e gritava: “Couto, tu é foda”, caprichando na concordância vigente na cidade que adotara antes de fazer 15 anos. O centroavante não era muito chegado a reverências e, embora participasse com a mesma alegria das comemorações do ataque de sonho, às vezes preferia o recolhimento.

Publicado por

Marcão

Jornalista aposentado, casado, duas filhas, um neto, dois poodles e nove irmãos. Santista de mãe, pai, cidade, time e o que mais bem qualifique essa condição. Sem vaidade, só verdade!

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