Duvidoso privilégio: ver o precoce adeus de Coutinho

Entre Pelé e Dorval

Coutinho levou a dupla de zaga chilena para a entrada da própria área, quando Lima e Pelé iniciaram o contra-ataque, ainda no meio de campo. Pelé tocou para Lima e saiu em velocidade pela meia direita. Coutinho, lá na frente, voltou alguns metros, cercado pelos dois beques, e chamou o passe. Lima percebeu a movimentação do companheiro e lançou. Foi na verdade um chute, forte e rasteiro. O centroavante desviou a bola com o lado de dentro do pé direito, para a esquerda da defesa, e saiu pelo outro lado, de novo levando os marcadores.

Além de Rei, Pelé também era chamado de Fera, quando iniciava suas arrancadas mortais. Naqueles dias mesmo, em Santiago, onde o Santos disputava mais um torneio de verão, um hexagonal com a participação dos três maiores times chilenos da época, mais América do México e Dínamo de Zagreb, a agência de publicidade de uma distribuidora de combustíveis gravou com ele alguns comerciais baseados no símbolo da empresa, a pantera. Imagem perfeita.

Alcançado o milésimo gol, dois meses antes, o Rei não parecia muito animado com partidas sem importância. Mesmo assim, marcou oito vezes em cinco rodadas do torneio chileno, duas no jogo final, que deu o título ao Peixe, contra o Universidade Católica, batida por 3 a 2 na noite de 7 de fevereiro de 1970, sábado de carnaval. Coutinho fez o outro gol santista, possivelmente seu último com a camisa branca. O mais espetacular, no entanto, foi o passe para um dos tentos de Pelé, que comecei a descrever acima.

A Fera não resistiu à bola tão açucarada. Nem o Rei nem a bola precisaram acelerar ou reduzir a velocidade. Encontraram-se naturalmente dentro da área, e Pelé encheu o pé. Com tanta força, que acompanhou deslizando de peixinho pela grama a trajetória da bola até dentro do gol. Atônito, o goleiro só pode ver com o rabo do olho aquela dupla invasão de sua meta e de sua privacidade.

Coutinho nem se deu ao trabalho de verificar o desfecho do lance. Passou correndo pela minha frente, na direção oposta à comemoração dos companheiros. Fazia cara de mau e gritava: “Couto, tu é foda”, caprichando no jeito de falar da cidade que adotou antes de fazer 15 anos. Ele não era muito chegado a reverências e, embora participasse com alegria dos festejos do ataque de sonho, às vezes preferia o recolhimento.

Eu disse que Coutinho “passou correndo pela minha frente” e esqueci de explicar o que eu fazia sentado atrás do gol do Estádio Nacional de Santiago do Chile atacado pelo Peixe. A localização privilegiada, oferecida ao repórter fantasiado de fotógrafo de jornal, me permite guardar as lembranças e descrever a jogada. Claro que sem o brilho dos repórteres da época (Vital Bataglia, Alberto Helena, Roberto Avallone, Luiz Carlos Ramos, Elói Gertel, e a turma de A Tribuna), mas com informação bastante para virar obra-prima de Gepp e Maia.

Os dois ilustradores eram o replay impresso dos principais gols da rodada, na Edição de Esportes do Jornal da Tarde, cuja chegada à livraria do Café do Atlântico, na Cinelândia santista, minha turma aguardava, para curtir um pouco mais os recitais do Peixe, no fim dos anos 1960.

Os domingos daquele tempo eram fabulosos, como fábulas mesmo. Praia pela manhã, Peixe na Vila ou na TV à tarde, namoro à noite nos jardins da orla ou nas poltronas dos cinemas do Gonzaga. E sobrava tempo para as últimas cervejas, prolongando o fim de semana até a segunda-feira. O que se poderia desejar mais do que ter 18 anos e, de repente, ver Mauricy Moura despontar no mesmo bar, cantando Sou santista? Pois é! E tinha a Edição de Esportes, confirmando que nada havia igual ao Peixe.

A tristeza que ficou do carnaval de 1970, sem contradição, foi o duvidoso privilégio de assistir no Chile aos últimos jogos pra valer do jovem Coutinho. Um desperdício iniciado anos antes, por conta de problemas físicos, que Antoninho Fernandes tentou evitar, ao ter pela frente o desafio de encontrar um centroavante para o time, já sem Toninho Guerreiro, vendido ao São Paulo. Sabendo que os garotos da base não estavam prontos para a missão, o treinador foi ver na Ponta da Praia a pelada de fim de ano que reunia os maiores craques do futebol brasileiro. Coutinho comeu a bola, marcou de bicicleta e fez a alegria do grande público que servia de alambrado para o campo de areia.

O treinador não foi surpreendido. Só constatou que a solução estava ali. Terminada a farra, entregou o endereço do alfaiate ao centroavante e pediu que ele se apresentasse na Vila depois do révèillon. Com o passaporte em dia.

O piracicabano Coutinho teria feito 77 anos nesta quinta-feira, 11 de junho. Morreu o ano passado, dia 11 de março, em Santos. 

Publicado por

Marcão

Jornalista aposentado, casado, duas filhas, um neto, dois poodles e nove irmãos. Santista de mãe, pai, cidade, time e o que mais bem qualifique essa condição. Sem vaidade, só verdade!

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