Adeus, querido!

(Leitura para este tempo de dores e despedidas)

O rosto caiu para o lado contrário da janela e ele se foi sem qualquer outro sinal. Nenhum ruído ou súbito silêncio. Nada. Apenas a falta de movimento sob o lençol. Há tempos que a respiração fraca mal se percebia e não havia lamento. Só o rosto sereno, menos carrancudo, já que os sulcos na testa ampla haviam desaparecido. Ficava mais bonito sem as marcas produzidas pela contração da face, tentativa de compensar as dificuldades de visão e os problemas com as lentes de contato. O esforço havia se tornado desnecessário desde que os olhos, também dispensáveis, se fecharam e assim permaneceram – isso há um mês e meio, um pouco mais –, cumprindo outra etapa do fim.

Foi melhor assim, porque me afligiam suas mudas indagações, quando se fixavam em algum ponto aquém da parede, além do lençol, e em mim principalmente. O passeio eventual das órbitas opacas pelo quarto era, então, o grande acontecimento do dia e me colocava em estado de alerta. Nesses instantes, porque achava que seria necessário entrar em ação ou só para controlar a tristeza, eu falava alguma coisa sem importância sobre o tempo, dava notícias de alguém ou fazia perguntas bobas – quer que abra a persiana? –, sabendo que não haveria respostas e que elas, de toda forma, eram inúteis.

Felizmente, tinham se acabado as inspeções do mundo que lhe restara: o quarto, eu e, vez por outra, um personagem qualquer de branco. Do meu ponto de vista, o quarto e ele, com o horizonte estendido nas conversas de corredor sobre providências que podiam ser adiantadas e nas idas ao restaurante do terceiro andar, para o café seguido do cigarro. No limite, ele e eu, porque nem de cenário servia mais o espaço físico em que nos despedíamos a cada dia. Nas últimas semanas, tampouco isso. Só o tempo passando, das noites para as manhãs, depois as tardes, indiferente à chuva ou ao sol, à claridade do dia e ao silêncio quase absoluto das madrugadas.

Quando aqui chegamos e ainda fazíamos planos para os anos que estavam por vir, tudo atraía a nossa curiosidade. Brincávamos com os controles da cama, observávamos o gotejar dos remédios pelos tubos transparentes, descobríamos do que eram feitas as tardes na televisão. Depois, quando ele parou de andar e se imobilizou na cama, pedia-me que ficasse junto à janela e descrevesse o movimento na rua, divertindo-se com o relato que eu fazia das pessoas que passavam e com as histórias que, a partir delas, eu ia inventando.

Às vezes, invertia o jogo. Ele criava os personagens e eu só tinha que encontrá-los a partir de meu ângulo de visão, fazendo pequenos ajustes quanto à cor de um detalhe qualquer da roupa ou ao corte do cabelo. Se o retoque alterava demais o tipo imaginado – “não me parece tão alto esse seu coronel, senhor, a julgar pelo rápido movimento das perninhas, as quais mal conseguem movê-lo” –, ele fingia enfurecer-se e fazia observações sobre a incapacidade das mulheres de enxergar um pouco mais do que as aparências. Voltavam, então, as antigas provocações, no seu jeito de referir-se a mim falando das mulheres em geral, temendo uma conversa direta que nos levasse afinal ao ponto. A um ponto nunca proposto e ao qual nunca teríamos coragem de chegar.

 

Sempre foi assim e assim foi até o último dia em que nos falamos. Veio depois o tempo em que só eu falava, tentando adivinhar necessidades ou desejos, e em que as janelas foram se fechando, para que a penumbra se antecipasse ao silêncio do quarto. Depois, o olhar também se apagou, tornando indiferentes a claridade e os ruídos e ainda assim me levando a tornar mais discreta a minha presença. Entrava e saía com cuidado, jogava toda a luz sobre o livro e relia os mesmos trechos só para evitar o sobressalto de virar a página. Sentia mais do que observava aquele fim de vida.

Agora, nem isso. E o pior é que a imobilidade do lençol não funcionava como a senha de tudo o que eu tinha programado fazer a partir daquele instante. Só me ocorreu levantar e contemplar, da distância do pé da cama à cabeceira, o rosto querido. Não sei quanto tempo se passou até que a ajudante de enfermagem entrasse – “nossa, moça, meus pêsames” – e eu me afastasse na direção da janela. Para esconder as lágrimas ou dissimular a falta delas. Pelas frestas, olhei a rua pela última vez do ângulo do quarto, quase me vendo passar ao lado das pessoas, novamente como elas. Talvez sendo observada de outra janela, por outra testemunha de outro fim.

Os funcionários entraram e me explicaram que poderia deixar tudo por conta do hospital. Eles acionariam a funerária, avisariam os parentes e amigos, cuidariam do anúncio nos jornais. Eu só precisava ir para casa e esperar, mas demorei-me um pouco rearranjando as roupas dele na pequena valise, há tempos preparada para a volta sem o dono. Ficariam apenas o terno azul marinho com a camisa branca, a gravata de listras em tons bordô, os sapatos e as meias pretas, que ele usaria na despedida.

O blazer cinza guardei para mim, para usá-lo como manta nas noites mais frias, ouvindo as músicas de que ele gostava e lendo os livros que ele me deu.

Publicado por

Marcão

Jornalista aposentado, casado, duas filhas, um neto, dois poodles e nove irmãos. Santista de mãe, pai, cidade, time e o que mais bem qualifique essa condição. Sem vaidade, só verdade!

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