(Música de fundo: Dolores, na voz de Lúcio Alves)
Há um ano, no dia 2 de junho, a Bela Dolores foi ao encontro do Bom Fonseca. Partiu serena, quase um mês após completar o centenário, no dia 5 de maio. Seus últimos tempos, a partir dos 95 ou 96 anos, foram de desorientação. Mas nunca esqueceu as músicas da juventude, que cantava com letras incrivelmente intactas. Nem os bordados, tricotados ainda que de mãos vazias.
Ficaram a saudade boa e a lembrança feliz. Ficaram os olhares mudos passeando pela curta paisagem ao redor, as indagações silenciosas, as risadas sapecas, as historinhas ingênuas e maliciosas: o doutor me receitou/um remédio que é bom de tomar/um beijinho antes do almoço/um beijinho depois do jantar.
Sobraram as recordações que guardava para si de tempos melhores, ou nem tanto. Da antiga Xiririca e da mocidade com os pais e os irmãos, à Santos de toda uma vida. A Dolores – que bem poderia ser chamada Emilinha, Marlene, Isaurinha, Carmem e Ângela, exclusivamente nossas – segue cantando e bordando seus paninhos.
Crochê imaginário
Que outras maravilhas tecem as mãos silenciosas,
sem agulha e linha?
Se delas se fizeram encantos, milagres e vidas,
com pés no chão.
Que sonhos percorrem a mente ágil, incansável,
também canções
embaladas nos versos inspirados dos poetas
que tudo cantam?
Que histórias agitam os olhos vivos, mais opacos
quanto mais longe vêem,
posto não repousarem meigos, joias esplêndidas,
em mansos regaços?
Que veste sairá dessa labuta com arte e método,
e será definitivamente sua?
Talvez o derradeiro manto, antes de se tornar inútil
ao anjo que há de vir.