Um título mundial, com a paradinha que o Rei imitou

Na final do mundial de clubes de 1963, o momento mágico de Dalmo, o lateral que inventou a paradinha aperfeiçoada por Pelé

O chute saiu rasteiro, seco. Nem forte nem fraco. O suficiente para tornar inútil o salto felino do goleiro milanês. Balzarini não se iludiu com a paradinha e foi para o lado certo, o esquerdo, mas não conseguiu evitar o gol.

Seis anos depois, quase no mesmo dia do mesmo mês, no mesmo estádio, na mesma meta. O mesmo time de branco, mas é outro o adversário, são outros os protagonistas. A cena é quase um replay, com diferenças em pequenos detalhes. Desfecho igual, bola na rede, mas o goleiro quase impediu o sucesso do batedor.

Dizem que foi Dalmo Gaspar quem ensinou Pelé a usar a paradinha na cobrança de penalidades máximas. Se é verdade, não foi mera coincidência a semelhança entre os dois gols históricos, no Maracanã.

O segundo desses gols, na noite de 19 de novembro de 1969, contra o Vasco da Gama, entrou para a história como o milésimo do Rei. O primeiro foi o momento mágico vivido por Dalmo, em 16 de novembro de 1963, e deu o bicampeonato mundial para o Santos.

O lateral esquerdo era um dos nomes menos ilustres de um time que, no terceiro jogo da decisão contra o Milan, desfalcado de Calvet, Zito e Pelé, tinha Gilmar, Ismael, Mauro, Haroldo, Dalmo, Lima, Mengálvio, Dorval, Coutinho, Almir e Pepe. Tantas lendas, mas o gol solitário e decisivo foi dele.

Considerado um dos jogadores mais regulares dos grandes times santistas, quase não foi lembrado para as seleções nacionais, ao contrário dos companheiros. Mesmo assim, acumulou uma invejável coleção de títulos, entre 1957 e 1964, período em que permaneceu na Vila.

Além das duas Libertadores da América e dos dois Mundiais Interclubes (1962-1963), foi cinco vezes campeão paulista e quatro vezes campeão brasileiro. Conquistou, também, nove importantes torneios internacionais.

Dalmo (1932/2015) morreu aos 82 anos, em Jundiaí, sua cidade natal, mas nunca esqueceu o Santos, como mostrou em carta dirigida ao clube. Nela, expôs em versos todo o seu sentimento.

Pensar em ti é o que eu faço de bom na vida!
E sentir saudades é o que me resta de bom…!

Quem não gostava do seu futebol criativo e brasileiro…!
Das belezas das suas jogadas e dos gols tão ligeiros…!
A saudade dói em meu peito,
Se para outros não dói, não sei…!
Só sei que não verei mais as vitórias que guardei…!
Santos FC… Sem você jamais seria o que fui!

Na noite mágica do bi, a maior festa que o Maracanã já viveu

Há 55 anos, tinha início a segunda parte da epopeia da conquista do bicampeonato mundial pelo Santos. Na primeira parte, um mês antes, com Pelé em campo, perdemos de 4 a 2 para o Milan dos brasileiros Dino Sani, Altafini (Mazola) e Amarildo. No jogo de volta, o Rei lesionado desfalcou o Peixe, que também não teve o capitão Zito e o zagueiro Calvet. Mas a noite terminou em festa, a maior da história do Maracanã.

 

A bola ainda está parada, antes do início do jogo, ou é apenas um objeto inanimado nas mãos de um auxiliar qualquer da arbitragem, nos minutos que separam um tempo do outro. Momentos mágicos de expectativa para jogadores e torcida e também de retomada de fôlego para mais 45 minutos de partida.

Dependendo das circunstâncias, degusta-se a conquista que virá ou alimenta-se a esperança de que algo aconteça para contrariar o fim anunciado. O destino, em geral implacável, tende a se cumprir. Só em ocasiões raríssimas, a mandinga se quebra. Forças inexplicáveis unem-se para colocar as coisas nos devidos rumos e transformar a frustrante fatalidade.

Maracanã. Perto das 10 da noite, a imagem da TV Tupi volta ao vivo do Rio de Janeiro, depois do intervalo comercial, e mostra, iluminado pelos refletores do estádio, o temporal que subitamente encharca a Cidade Maravilhosa.

Pouco mais de uma hora antes, no início da transmissão, o que a TV levava para todo o país era a figura do Cristo resplandecente na noite carioca, aureolado pela claridade da lua. Mas agora chove, e os jogadores de Santos e Milan estão ensopados, quando se colocam em campo para o reinício do jogo.

Ao contrário de abater, o aguaceiro anima o público. Mais de 100 mil cariocas, rubro-negros, cruzmaltinos, tricolores, botafoguenses, americanos. Cristãos novos de vários tipos, gentios que só foram ao futebol atraídos pela magia das camisas brancas. Era o sobrenatural se manifestando. Aqueles torcedores tinham todos os motivos para se comportar de maneira exatamente oposta.

Pelé nem entrara em campo. Nem ele nem Zito nem Calvet. O time estava desfalcado do principal jogador de cada um dos três setores: defesa, meio de campo e ataque. E o primeiro tempo havia sido algo muito próximo da tragédia. Aos 10 minutos, gol de Altafini. Aos 20, gol de Mora. Milan 2 a 0. O sonho do bicampeonato mundial interclubes ficava cada vez mais distante.

Começa o segundo tempo. A chuva fria incendeia os jogadores de branco. A torcida empurra, os milaneses recuam, Pepe e companhia começam a exibir seu arsenal de petardos. O Canhão da Vila solta a bomba da intermediária: 1 a 2. Dalmo bate uma falta da esquerda, a bola quica na área e Mengálvio desvia de leve: 2 a 2. Lima da meia direita, bem distante da linha da grande área: 3 a 2. Pepe de novo, cobrando falta quase do meio de campo: 4 a 2.

A virada inacreditável literalmente caíra do céu, junto com a chuva. Dois dias depois, com tempo bom, Santos 1 a 0, bicampeão do mundo.

O Rei em Nova York

Há 52 anos, completados no dia 21 de agosto, o Santos goleou o Benfica de Portugal por 4 a 0. Foi outro momento mágico proporcionado pelo time que, durante mais de dez anos, reinou absoluto no futebol mundial. Essa condição não foi reconhecida apenas pelo número de conquistas internacionais, mas também pelas exibições de gala que liquidaram um a um os maiores clubes europeus.

Naquela noite, aqui no Brasil, imagens do jogo entraram na escalada do Jornal Nacional, na voz de Cid Moreira. Mas por que o destaque, se a partida decidiu apenas uma desimportante Copa dos Campeões, disputada em Nova York?

Na verdade, foi mesmo um mero quadrangular, completado por Internazionale de Milão e AEK da Grécia (ambos também batidos pelos santistas). Para o futebol brasileiro, porém, o jogo teve significado maior. Foi a desforra da humilhação imposta pela seleção portuguesa aos bicampeões mundiais, dois meses antes, na Copa da Inglaterra.

No Mundial, o time português era o Benfica vestido com a camisa nacional. Já o escrete canarinho não contava com tantos santistas, como deveria, uma vez que a CBD (atual CBF) tinha resolvido agradar a todos os grandes clubes brasileiros da época, incluindo os emergentes de Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Até o Bangu teve jogador convocado.

Vieram daí os absurdos e inexplicáveis cortes dos santistas Coutinho e Carlos Alberto Torres e a produção de um mostrengo, recheado de veteranos em fim de carreira, facilmente abatido por portugueses e húngaros e eliminado na primeira parte da competição. Em apenas três jogos, a seleção usou 21 dos 22 jogadores inscritos, e não formou um time.

O jogo contra Portugal foi particularmente traumático, não só pelo resultado incontestável de 1 a 3, mas também porque os lusos bateram sem dó em Pelé. Havia, ainda, a empáfia lusitana. Eusébio, estrela da equipe dirigida pelo brasileiro Otto Glória, reivindicava e se julgava merecedor do título de melhor jogador do mundo, no lugar do Rei.

O moçambicano havia debutado na decisão do mundial de clubes, quatro anos antes, em Lisboa, numa goleada considerada até hoje o maior espetáculo apresentado por um time de futebol. O Santos fulminou o Benfica, por 5 a 2, no Estádio da Luz, mas o jovem Eusébio jogou apenas os últimos minutos. Em 1966, para a imprensa lusitana, com o desempenho de seu astro na Copa, o trono passava a ter um novo ocupante. O próprio futebol brasileiro estava rebaixado.

Apenas dois meses depois, em Nova York, o Santos recolocou as coisas nos devidos lugares. Com gols de Toninho Guerreiro, Pelé e dois de Edu (o único convocado que não jogou na Inglaterra), o Peixe não deixou dúvidas sobre quem, afinal, detinha a primazia do futebol mundial (os melhores momentos dessa partida estão disponíveis no Youtube).

Apenas um gol de Coutinho

Este momento mágico aconteceu na abertura de um campeonato paulista, entre 1964 e 1965. O ponta esquerda Abel, que estreava, recebeu a bola pouco depois do meio de campo, junto à lateral, e foi driblando em velocidade até a linha de fundo. O cruzamento saiu rasteiro, para trás, e pegou no contrapé toda a defesa do América de Rio Preto, além de vários santistas. Menos o último de branco, que chegava sem pressa. Coutinho dominou a bola com um toque de pé direito na meia lua da área. Coutinho levantou a cabeça, e tudo parou.

Na torcida, cessou a algazarra provocada pela jogada do ponta. Juíz e bandeirinha, agradecidos, puderam se recuperar da esbaforida carreira para acompanhar a rapidez do lance. O locutor da rádio teve tempo de fazer um rápido comercial. A charanga do Salu perdeu o compasso e emudeceu.

Imagem congelada, entre Coutinho e as traves, entre a bola e a linha do gol, são exatos 9 pares de pernas, outras tantas barrigas e bundas (sim, nem todos conseguem girar o corpo a tempo de ver o que acontece às suas costas) e nenhuma trajetória que, pelas leis da física, possa ser vencida em linha reta. No total, 10 figurantes, somando-se o goleiro, que ainda acredita ser possível virar protagonista do momento mágico. Há, sobretudo, o diretor de cena. Mas não apressemos tal segundo, cujo prazer revivo agora, tanto tempo depois.

Diretor de cena? O tempo dá e sobra para burilar à vontade essa imagem. Mudemos para a do enxadrista, que olha o tabuleiro inerte e antevê vinte movimentos adiante, contados os do pensativo opositor sentado à frente. Que tal um cirurgião, adivinhando sob a pele o trajeto perfeito do bisturi e o corte sem riscos? Ou, ainda, um engenheiro com preocupações ambientais? Ele observa a mata e percebe dentro dela, por entre as árvores, o caminho que evitará a devastação. Para não forçar demais a barra, fico com o general no momento decisivo da batalha. Ele verifica a posição das tropas inimigas, identifica suas vulnerabilidades e orienta o artilheiro no ajuste do tiro.

Na meia lua da área em frente à arquibancada hoje de uso da Torcida Jovem, Coutinho é ao mesmo tempo o oficial que comanda e o soldado encarregado de executar o disparo. A comparação faz sentido, porque há garbo no porte daquele atleta de silhueta fora de padrão – reparem como lhe caem tão bem o branco do uniforme e o arredondado número 9 de sua patente – e a ele não se podem negar tanto a autoridade quanto o domínio absoluto do ofício, como em seguida constatará o guarda-valas rival. A bola seguirá seu rumo e nada poderá ser feito, mesmo que o goleiro reúna em si toda a agilidade humana. Ele precisaria mais. Teria de possuir o dom de decifrar e agarrar mortais pensamentos. Teria antes de encontrar um jeito de se livrar do olhar que o imobiliza e o abate preventivamente.

 

Que situação! Estar no sentido contrário do ponto de vista de Coutinho foi pesadelo para todo goleiro da época. Eu não desejaria isso para meus piores inimigos, mas, se teve de acontecer, melhor que tenha sido com eles, os defensores dar metas adversárias. Por isso, não me apiedo da impotência escandalosamente exposta ao sol da tarde de domingo e que está prestes a virar a mais abjeta humilhação. Ao contrário, volto a saboreá-la com o mesmo prazer do instante vivido há cinco décadas, quando enfim a parte interna do pé direito de Coutinho toca pela segunda vez aquela bola.

Por ocasião das comemorações do milésimo gol, o poeta Carlos Drummond de Andrade alcançou o gênio dos campos com versos definitivos:

Difícil não é fazer mil gols, como Pelé.

Difícil é fazer um gol como Pelé.

Coutinho marcou menos, mas impõe um desafio do mesmo tamanho, tanto aos seus colegas de posição no campo de jogo quanto aos que, como eu, tentam sintetizar em palavras a sua arte. Com relação aos primeiros, basta dizer que nunca houve um centroavante como Coutinho. Não há, portanto, termos de comparação. Quanto a mim, ai de mim, como descrever qualquer dos gols de Coutinho, se todos e cada um foram feitos de sutilezas muito próprias? Coloquem-se no meu lugar e concluam igualmente que é melhor nem tentar. Rodemos, pois, o videotape da imaginação, a partir do primeiro giro da bola em direção ao canto esquerdo do goleiro americano.

Diante da multidão de corpos, braços e pernas que povoava a área, havia dois caminhos naturais: o chute forte, e seja lá o que Deus quiser, escolhido por 10 entre 10 dos atacantes menos refinados; e o toque de classe por cobertura, sobre a muralha humana, reservado aos talentosos. Mas a bola já rola pela terceira via, rota exclusiva do craque; e não encontrará obstáculos, todos inesperadamente removidos pela imprevisibilidade da opção. E manterá a velocidade contínua, apesar do contato permanente com a grama. E ultrapassará a linha da cal a três palmos do poste, já iniciando a desaceleração. E se acalmará aquém do abraço das redes, enquanto o estádio, ao contrário, destrava o grito. E pula, e canta, e dança. E sorri.

Coutinho não espera o desfecho. Antes da primeira comemoração e da prostração do goleiro sobre a terra batida do seu lote maldito de campo, nosso Carne Frita da bola grande, nosso Oscar Schmidt de chuteiras, nosso Tiger Woods sem tacos já se encaminha para o círculo central. Quase se espanta com tamanho alarido diante de algo tão simples como fazer mais um gol.

Pelé, 78 anos

Um momento mágico do Rei, que na época os locutores preferiam chamar de Fera

O atarracado lateral esquerdo do Botafogo do Rio calcula o longo arco que a bola lançada pelo goleiro do seu time começa a descrever na sua direção. Prepara-se para recebê-la com elegância no peito e deixá-la cair com graça na grama, antes de acionar o pé esquerdo e iniciar o avanço.

Já pressente os aplausos, quando, de rabo de olho, vê a Fera com o temível uniforme branco do Peixe iniciar a corrida. O perigo está distante, ainda, uns 30 metros, mas convém mudar os planos. Melhor deixar a bola dar um primeiro pique no chão e chegar amortecida.

Por isso, recua na diagonal do campo na direção da linha lateral, enquanto a bola continua sua viagem. Há espaço suficiente para a marcha a ré e tempo de sobra para checar a aproximação do inimigo. Descartada a matada no peito, continuam valendo as demais manobras.

Dará o primeiro toque com o lado interno do pé esquerdo e, em seguida, virá a rápida puxada com o lado externo, aproveitando a rotação do corpo para a frente.

Pronto. Subjugada a bola, ele terá diante de si todas as possibilidades. Pode ser uma tabela com o companheiro mais próximo ou um lançamento longo até a área inimiga. A torcida vai gostar de qualquer forma. Pode até sair um gol.

Mudança de planos. É preciso recuar ainda mais, porque o primeiro pique não foi suficiente para garantir o controle seguro da bola e o demônio agora parece perto demais.

Melhor esquecer os aplausos, adiar o projeto de gol, simplificar as coisas. Ganhar mais espaço, deixar que as leis da física amansem naturalmente essa outra ameaça redonda.

A nova ideia é bater chapado na bola e mandá-la de volta ao goleiro, afinal um dos dois responsáveis por aquela situação incômoda. O outro é esse diabo negro que vem decidido a lhe complicar a vida. Danem-se as vaias, será melhor assim.

Nem isso, porém. Em pânico, o botafoguense perde a noção dos limites do campo. Ultrapassa a linha, desequilibra-se e cai sentado na grama. As pernas abertas são como o ninho que a bola escolhe para se aquietar.

O drama que as arquibancadas acompanharam apreensivas vira comédia. O Maracanã explode em gargalhada.