Santos 1950-1960 – Parte IV

Comecei a frequentar a Vila na metade da década de 50. Era um moleque feliz, que vivia descalço pelas ruas de terra do Marapé e que fazia do campo do Santos, do alto do morro e das areias do José Menino extensões do minúsculo quintal do nosso pobre chalé de madeira na Morvan Dias de Figueiredo. Naqueles tempos, o time de branco começava a se armar para conquistar o mundo e meus deslumbrados olhos só viam craques no nosso Peixe. Era vestir o manto sagrado para virar ídolo. E era incomparável a alegria das tardes de domingo no pequeno lance de geral reservado aos “meninos do Santos FC”.

A bombas do Pepe, os lançamentos do Jair da Rosa Pinto, a garra do Zito, a classe do Ramiro, a arte do Pagão, a força do Del Vecchio. Depois, Pelé e Coutinho, o chamado trio final de Gilmar, Mauro e Calvet. Mas o principal eram as goleadas, as chuvas de gols. Quatro gols em um jogo era pouco para aqueles ataques, que podiam ter Dorval e Tite pelas pontas.

Crescido, fiquei mais exigente. Para se ter uma ideia, durante anos não engoli o Toninho Guerreiro, em suas primeiras temporadas no Peixe, para mim um usurpador da camisa 9 tão finamente vestida por gente da estirpe de Pagão e Coutinho. Até que, encerradas as carreiras desses dois príncipes, tive de me render aos dotes do goleador que veio de Bauru para ajudar na conquista de nosso tricampeonato paulista, de 1967 a 1969. Toninho não era o fino da bola, mas foi um grande jogador e eu deveria ter tido mais respeito por ele.

Durante aquela década, acompanhei todos os jogos que pude, em Santos e em São Paulo. Muitas vezes, faltava grana para subir a Serra, mas na Vila sempre se dava um jeito de entrar de graça. Impossível era ir mais longe e o Peixe era cada vez mais um time do mundo, levado pelo brilho de Pelé e companhia e, também, pela clarividência da diretoria da época.

Athié, Roma e Moran tinham outra cabeça. Logo, perceberam que o negócio do Santos era o fantástico time de futebol. Viram que só alargando seus horizontes seria possível mantê-lo sempre forte. Daí que fomos decidir os nossos maiores títulos no Maracanã e fizemos de Montevidéu, Buenos Aires, Nova York, Paris, Berlim, Roma e Madrid, entre outras capitais, palcos cativos de nossos espetáculos. O Peixe exportação não perdeu um pingo de sua identidade com a cidade e com a torcida. Pelo contrário, nos dava orgulho ver multidões brigando por um lugar nos estádios que reverenciavam o nosso time.

Segui esse Santos em parte pelas imagens em preto e branco da televisão da época e principalmente pelo texto maravilhoso dos cronistas de A Tribuna. De Vaney, Chico Sá, Ary Fortes, Walter Rozzo, Gilberto Bezerra e J. Lima transformavam as excursões internacionais do time em epopeias dignas das narrativas de Marco Polo, em contos das Mil e uma noites. Até que virei jornalista, também, e fui cobrir o Santos, ainda de Pelé, Carlos Alberto, Ramos Delgado, Clodoaldo, Joel Camargo e Edu, na pré-decadência do início dos anos 1970. Acompanhava os treinos, entrevistava diretores, técnicos e jogadores. Ia aos jogos e participei, como membro da delegação, de viagens ao exterior.

A convivência profissional com o clube me transformou num outro torcedor. Os tempos também eram outros, o futebol se modificava, com a implantação de um profissionalismo algo exagerado e frequentemente equivocado. Passavam a prevalecer os interesses individuais num esporte até então considerado coletivo. Começava a surgir o “jogador maior que o clube e sua torcida”. Carlos Alberto Torres, por exemplo. De repente, no pior momento, quis porque quis voltar para o Rio. Achou que as coisas por aqui começavam a ficar ruins, mas, quando viu que lá podiam ser piores, voltou. Por pouco tempo.

Além de perder jogadores para a idade e incapacitado de fazer as reposições necessárias porque a infeliz compra do Parque Balneário exauria as finanças do clube, o Santos ainda sofreu perdas precoces de jogadores vítimas de contusões e acidentes. A doença nos tirou o goleiro Cláudio, batidas de carro praticamente encerraram as carreiras de Joel Camargo e Mané Maria, enquanto um joelho problemático brecou Djalma Duarte, jovem promessa vicentina.

Se o futebol começava a dar algumas tristezas, a vida naquelas praias era só felicidade. As famílias assistiam ao programa Sílvio Santos e à Jovem Guarda do Roberto, na TV, nas tardes de domingo. Mas eu, quando não tinha recital do Peixe na Vila, pegava minha fusqueta azul, a inesquecível Agripina, e fugia para São Lourenço, antes de Boraceia e da divisa com São Sebastião.

Na época, Bertioga pertencia a Santos e a praia não tinha sido desfigurada pelos condomínios. Levávamos um isopor cheia de gelo e latinhas. Estacionávamos na areia, estendíamos a esteira sob o guarda-sol e passávamos o dia ocupados apenas em, vez por outra, dar um mergulho. Nenhum dinheiro, mas para nós aquele pedaço deserto do litoral era a própria costa mediterrânea, de tão chic.

Minha namorada era linda, nunca chovia, e eu era o dono do mundo.

Santos, 1950-1960 – Parte III

Para mim, o Santos é o melhor do mundo desde os anos 1950, quando eu via com meus próprios olhos de garoto do Marapé, na Grande Vila Belmiro, o que o time de branco era capaz de fazer com a bola e com os adversários. Mas também sei que o Santos é o melhor desde muito antes, porque meu pai falou que era, ele que viu jogar os lendários times de Arnaldo, Araquém, Feitiço, Athié e Antoninho Fernandes. Ele garantia que já naqueles tempos nada havia de parecido no mundo do futebol – e o velho Fonseca nunca mentiu.

Não sei se todos sabem, mas nós Fonsecas somos Peixe desde antes do Peixe, porque o mais Fonseca de todos nós veio ao mundo um ano antes do time, em abril de 1911, na mesma cidade de Brás Cubas, de Nossa Senhora do Monte Serrat e do meu amigo Manente. E é bem provável que antes do fim daquela década o Fonsequinha – como ficou conhecido da Vila Mathias à Ponta da Praia, da Praça dos Andradas ao José Menino – botasse banca com os feitos santistas. Feitos como ceder três atletas, incluindo o capitão Arnaldo Silveira, às primeiras seleções brasileiras, na Copa Roca de 1914 e no Sul-Americano de 1919.

Pois, é! Meu pai dizia, quando nos levava e deixava na Vila, nos anos 1950, que o Santos foi formidável desde o início, e só não ganhou os títulos que viriam aos montes na segunda metade do centenário porque era invariavelmente prejudicado pela arbitragem. Já naquela época era muito duro para os donos do futebol, os times da capital e seus empertigados torcedores, engolir a supremacia forasteira. Ainda mais vinda de um lugar que ousava concorrer com a metrópole em relevância política e cultural, sem falar na beleza das praias e na desenvoltura da gente santista. O Santos era o máximo e a cidade, também.

Mas essa é só a primeira parte da mais bela história escrita dentro de um campo de futebol. A primeira e a menos conhecida. A segunda parte, que tive a felicidade de acompanhar e que continua enchendo de felicidade os corações alvinegros, dispensa relatos e adjetivos. Está fartamente documentada e, no conjunto da obra, é comemorada onde quer que haja um amante da arte da bola. Onde quer que estejam os craques de ontem e de hoje. Onde quer que pulse um sentimento praiano e vibre uma alma Fonseca.

 

 

 

 

Santos, 1950-60 – Parte II 

Coisa mais fácil de encontrar na noite da Baixada, qualquer dia da semana, qualquer época do ano, eram os grupos de choro. Os chorões. Bem tarde, você no ponto, de volta da escola ou da casa da namorada, esperando o ônibus, e lá vinham eles, antecedidos do som inconfundível. Era puro enlevo.

Ou você entrava no bonde, e dava de cara com eles. Até na travessia da balsa cheguei a encontrá-los. Violão, cavaquinho, pandeiro, quatro ou cinco músicos que nada falavam, não conversavam entre si, nem cantavam. Só tocavam. E como tocavam! Uns após outros, os grandes clássicos da nossa música saltavam das cordas: Pixinguinha, Nazareth, Jacob, Zequinha, Chiquinha, Waldir. De onde surgiam ou para onde iam, não faço ideia. Daí que acho que eram criaturas fantásticas, cruzando meu caminho só para me encantar!

Perdoando-os desde logo pela pouca idade, é claro que os meus amigos de muito depois não toparam com o seresteiro Mauricy Moura cantando sucessos da época em um boteco qualquer da noite santista. “Eu daria tudo o que pudesse…” E a arrepiante “Sou santista/Tu vais me perguntar/Sou santista/Meu samba vai falar…” Nem prestigiaram o restaurante que Tite, nosso ponta-esquerda do time abusado que nascia, montou no caminho da Ponte Pênsil, onde era a atração com seu violão.

Ambos, o calunga Mauricy e o craque Tite, tinham no repertório as canções do gaúcho Lupicínio Rodrigues e do santista Lúcio Cardim, que poucos sabem ser o autor de Matriz e filial, magnífica interpretação de Jamelão. De fato, nem imaginam do que falo. Seja lá o que desconheçam: Mauricy, Lupicínio, Cardim, Jamelão, Matriz e filial

Se não sabem de tais monumentos, é claro que nunca foram a uma batalha de confete para ver as Dengosas do Marapé, os Romanos do Campo Grande, os Chineses do Mercado, a Embaixada de Santa Teresa, as Esmeraldas e a Cruz de Malta. Porque essa monumental folia é do tempo em que os blocos na rua eram a melhor coisa do carnaval, e o frevo pulado nas ruas arrepiava.

A proeminência das escolas de samba – com as maravilhosas X-9, Império e Brasil – viria mais tarde. Sinto muito não terem visto a Bola Alvinegra desfilar com o Rei, para mim não faz tanto tempo assim, nos entornos do templo sagrado da Vila Belmiro. Lamento não terem atendido o convite dirigido à Dona Dorotéia, mas extensivo a todos: vamos furar aquela onda?

Os meus amigos teriam, como eu, saboreado os tremoços da patrícia gorda que fazia ponto, todo jogo, sob as sociais de Ulrico Mursa? Teriam ajudado a cobrir de cuspe e cutucões o infeliz goleiro adversário, nas pugnas contra a briosa burrinha? Teriam usado de todos os artifícios para invadir a Vila? Ah, a Vila! Os recitais do Peixe! O Santos de glórias mil do Plínio Marcos!

Quando troco ideias com meu quase contemporâneo Braz Cubas, chegamos à conclusão de que a cidade fundada por ele é um lugar enfeitiçado. Maravilhoso como o país de Alice. Pois onde mais poderiam surgir gentes, lugares e fenômenos tão arrebatadores? E, de quebra, um time como o nosso, de reis, príncipes e uma corte completa? Dos malabaristas Kaneko, Edu e Mané Maria. Do capitão Zito. De Araquém, Athié, Odair, Coutinho, Pelé e Pepe. De poetas da bola, como Pagão, Giovanni e Dom Antônio Fernandes.

A máquina de fazer gols, versos e canções. Para se ver de joelhos, entoando as mais fervorosas orações de graças ao Criador.

(Continua)

Santos, 1950-60 – Parte I

Naqueles tempos, se os amigos que conheci depois eram da Vila Rica, do Gonzaga e do Boqueirão, nós nunca moramos a menos de oito quadras da praia. Enquanto vivi em Santos, minha família foi do Campo Grande ao Marapé, do Macuco à Encruzilhada. Sempre contornando a Vila dos Sonhos e tendo por quintal um mundo descomunal. Tanto maior quanto a memória recua e o garoto se apequena.

Um mundo que reunia todos os morros, todos os postos e canais, todos os mangues e todas as praias entre Bertioga e Peruíbe. E percorria o cais e suas bocas. Pois eram várias as bocas ao longo do porto. E chegava ao Centro, com suas lojas de mil réis e a primeira escada rolante da região. E esticava até a Zona Noroeste, na direção de São Vicente, pela linha 1 do 2º BC, onde Pelé serviu e eu escapei do serviço militar. Linha 1 do fedorento Matadouro Municipal, os urubus voando em círculo, bem alto.

Aposto que eles, esses amigos posteriores, nunca pegaram uma catraia colorida na Bacia do Mercado, rumo a Itapema, que hoje chamam Vicente de Carvalho e que a maledicência da época apelidou de Cornolândia. É que o trabalho no outro lado do porto ou nas indústrias de Cubatão substituía os maridos ausentes, nas casas simples do bairro, por tórridos e imaginários romances nas tardes úteis das semanas.

Temos a mesma idade, alguns desses amigos e eu. Por isso, nossas memórias são quase as mesmas. Mas eles nunca nadaram nos valões que se abriram nas ruas de terra do Marapé, para a colocação dos tubos do esgoto. Não subiram o morro, indo catar coquinho brejaúva ou colher bico de papagaio para vender na feira. Não invadiram quintais e roubaram carambolas, goiabas, mamões, amoras, pitangas e abricós. Não mancharam indelevelmente com o roxo do jambolão as puídas camisas, que a bem da verdade nunca vestiram – as puídas camisas, digo.

Nunca arriscaram a vida, meninotes a saltar do bonde em movimento, depois de passar de um estribo a outro, do boque ao reboque, fintando o cobrador. Nem mudaram a direção dos trilhos com qualquer alavanca ao alcance das mãos, só para ver a fúria do motorneiro lusitano (um, dois, três, pau no cu do português) e a algazarra dos passageiros, quando o coletivo seguia reto ao invés de virar, ou virava quando devia seguir reto. Seu cobrador, não leve a mal, eu vi sua mulher agarrada com o fiscal! Era terrível ser motorneiro ou cobrador, e ainda por cima patrício!

Quem nunca contornou a Lagoa da Saudade, tão linda no alto do morro, é certo que jamais arriscou um mergulho da Pedra do Tarzan ou do temível trampolim da Ponta da Praia. Bem ali no início do canal do porto, que se cruzava a remo, de baleeira, em direção às aventuras da praia do Góes, do Forte dos Andradas e da Pouca Farinha. Para tirar das tocas da areia fresca e molhada o melhor berbigão.

Esse amigo aí sequer deve imaginar onde ficam Itatinga e Praia das Vacas. É capaz de acreditar que a Ilha Porchat e seu clube só passaram a existir depois da chegada de um afetado caipira, o qual, ao preço de muita boca-livre para jornalistas, estrelas da tevê e decadentes personalidades paulistanas, transformou as noites dos mares do sul em assunto de programas populares, sonho de consumo país afora.

Ainda que a ilusão de luxo fosse produzida pela profusão de frutas baratas espalhadas em torno da piscina e nas areias daquele canto de praia. Nada que uma ida à feira do bairro não pudesse resolver, se a intenção dos casais era encher sacolas. Casais, diga-se, nada interessados em orgias pagãs, pois, mal vencida a demorada fila de entrada, e feita a abundante colheita, punham-se de volta aos apartamentos dos prédios próximos à vicentina Praia dos Milionários. Talvez se sentissem magnatas, curtindo noites havaianas de luxo e riqueza, degustando queijos, mangas e abacaxis, ao som da festa que rolava até a manhã seguinte.

(continua)

Beleza e preconceito

Olho para trás e vejo que meus cabelos sempre foram brancos e poucos. Quando muitos e escuros – constato nas velhas fotos dos times das redações e das assembleias do Vlado no Sindicato –, eram desgrenhados. Bem palha de aço, até. Tentei alisá-los com orientação de uma namorada e o auxílio de um produto de farmácia. O resultado provocou o comentário de um negro famoso, com quem viajei na época: “O jornalista tem um pé na cozinha!”

Meus antepassados vieram de Portugal e da Espanha. Os avós portugueses do pai chegaram direto e se instalaram em Santos, com uma escapada do bisavô para o Vale do Ribeira. Lá, explorou uma mina de chumbo e abriu um armarinho em Eldorado Paulista, então Xiririca. Os avós maternos, de sangue espanhol e lusitano, vieram do litoral norte do Paraná, com escala no Vale do Ribeira. Ali, vovó Helvetia lecionou em colônias de imigrantes japoneses, como professora leiga. Veio dela o português que mamãe, com poucos estudos, impôs à nossa casa modesta de Santos, cidade que a família dela adotou na década de 1930.

Ainda assim, pode haver em nós algum vestígio de sangue índio, como assegurava a madrinha, irmã do pai, para desgosto da mãe. É incrível, mas a Bela Dolores carregou algum preconceito no coração bonito. E quem não, naquela época e até hoje, sem nada que explique? O Bom Fonseca também. Sua cisma eram os jovens negros que se vestiam melhor, e ele achava mascarados só porque jogavam no juvenil do Peixe. Vai entender!

Um desses, se bem me lembro Luís Cláudio, era engomadinho e perfumado, como qualquer rapaz bonito. Chegava na entrada do ginásio Athié Jorge Cury, Vila Belmiro, e mal olhava para o pai. Ia passando, sem crachá e sem boa noite! Mas o velho barrava, com educação e algum sadismo: “Ingresso, por favor!” O rapaz, surpreso: “Como assim, ingresso? Não me conhece?”. E o velho, inflexível: “Não, não conheço. Ingresso, por favor!”.

Talvez só ali, na entrada dos jogos de vôlei e basquete, daqueles anos 1950, em Santos, o humilde servidor público, faxineiro, garçom, montador de coberturas para festas, cobrador, bilheteiro, pau-pra-toda-obra, que sangrava para pôr dinheiro em casa e alguma comida na mesa pequena da família grande, exerceu alguma autoridade na vida. Em especial, diante de “jovens mascarados”.

Na viagem com o maior time de todos os tempos, achei legal o Rei me acolher. Numa época em que diferenças não se viam a olho nu e respeito não se impunha, meu sentimento era mais que sincero. Chegava ao orgulho. A voz do pastor King ainda se ouvia forte e a negritude estava em alta no mundo, com Ali, Ella, Marley e os Panteras. E, também aqui, com Cartola, Elza, Simonal, os livros de Machado e a força negra daquele time inesquecível!