Nelson Rodrigues foi jornalista e escritor, contista e cronista dos costumes e do futebol. Nasceu no Recife em 1912 e morreu no Rio de Janeiro em 1980. Publicou nos principais jornais do país e diversas de suas obras impressas e escritas para o teatro (é considerado um dos principais dramaturgos brasileiros) viraram filmes, entre eles Boca de ouro, Bonitinha mas ordinária, A falecida, A dama do lotação, O beijo no asfalto, Toda nudez será castigada, Álbum de família e Vestido de noiva. Neste terceiro texto que reproduzo, ele comemora a conquista da Copa na Suécia, em 1958. Foi publicado na revista Manchete Esportiva.
O escritor em livros e filmes
Dizem que o Brasil tem analfabetos demais. E, no entanto, vejam vocês: − a vitória final, na Copa da Suécia, operou o milagre. Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. A partir do momento em que o rei Gustavo da Suécia veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo aqui sofreu uma alfabetização súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com “x” iam ler a vitória no jornal. Sucedeu essa coisa sublime: − analfabetos natos e hereditários devoraram vespertinos, matutinos, revistas e liam tudo com uma ativa, uma devoradora curiosidade, que ia do “lance a lance” da partida até os anúncios de missa. Amigos, nunca se leu e, digo mais, nunca se releu tanto no Brasil.
E a quem devemos tanto? Ao escrete, amigos, ao escrete que, hoje, é o meu personagem da semana, meu múltiplo personagem. Personagem meu, do Brasil e do mundo. Graças aos 22 jogadores, que formaram a maior equipe de futebol da Terra em todos os tempos, graças a esses jogadores, dizia eu, o Brasil descobriu-se a si mesmo. Os simples, os bobos, os tapados hão de querer sufocar a vitória nos seus limites estritamente esportivos. Ilusão! Os 5 x2, lá fora, contra tudo e contra todos, são um maravilhoso triunfo vital de todos nós e de cada um de nós. Do presidente da República ao apanhador de papel, do ministro do Supremo ao pé-rapado, todos aqui percebemos o seguinte: − é chato ser brasileiro!
Já ninguém tem mais vergonha de sua condição nacional. E as moças na rua, as datilógrafas, as comerciarias, as colegiais, andam pelas calçadas com um charme de Joana D’Arc. O povo já não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos: − o brasileiro tem em si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas.
Vejam como tudo mudou. A vitória passará a influir em todas as nossas relações com o mundo. Eu pergunto: − que éramos nós? Uns humildes. O brasileiro fazia-me lembrar aquele personagem de Dickens que vivia batendo no peito: − “Eu sou humilde! Eu sou o sujeito mais humilde do mundo!”. Vivia desfraldando essa humildade e a esfregando na cara de todo mundo. E, se alguém punha em dúvida a sua humildade, eis o Fulano esbravejante e querendo partir caras. Assim era o brasileiro. Servil com a namorada, com a mulher, com os credores. Mal comparando, um são Francisco de Assis, de camisola e alpercatas.
A festa na rua e o trio santista: Zito, Pelé e Pepe
Mas vem a deslumbrante vitória do escrete e o brasileiro já trata a namorada, a mulher, os credores de outra maneira; reage diante do mundo com um potente, um irresistível élan vital. E vou mais além: −diziam de nós que éramos a flor de três raças tristes. A partir do título mundial, começamos a achar que a nossa tristeza é uma piada fracassada. Afirmava-se também que éramos feios. Mentira! Ou, pelo menos, o triunfo embelezou-nos. Na pior das hipóteses, somos uns ex-buchos.
E a quem devemos tanto? Ao meu personagem da semana. Ninguém aqui admitia que fôssemos os “maiores” em futebol. Rilhando os dentes de humildade, o brasileiro já não se considerava o melhor nem de cuspe a distância. E o escrete vem e dá um banho de bola, um show de futebol, um baile imortal na Suécia. Como se isso não bastasse, ainda se permite o luxo de vencer de goleada a última peleja. Foi uma lavagem total.
Outra característica da jornada: − o brasileiro sempre se achou um cafajeste irremediável e invejava o inglês. Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o seguinte: − o verdadeiro inglês, o único inglês, é o brasileiro.
[Manchete Esportiva, 12/7/1958]