Escrevi estes versos há três anos, quando a mãe estava para completar 98 anos de idade. Ano passado, no 5 de maio, comemoramos seus 100 anos e me pareceu que ela só esperou por isso, pela festinha que fizemos, para ir juntar-se em seguida ao Bom Fonseca. A Bela Dolores morreu serenamente um mês depois, no amanhecer do dia 2 de junho, na Santos que aprendeu a amar e em que nasceram seus doze filhos. O áudio pode acompanhar a leitura.
Que bênção de mãe!
A sua bênção, mãe.
Deus te abençoe, meu filho…
Vá com cuidado,
Não tome chuva.
Você já fez a lição?
Não volte tarde demais.
Porque eu não durmo.
E, quando acordada,
seu pai não dá sossego jamais.
Que sonho de mãe!
Nenhuma melhor do que a minha!
Ou mais linda! De certo que não!
De certo que outra igual
Nem daqui mil anos.
Xiririca não tem mais,
E o molde ficou no Ribeira,
Uma padroeira inteira.
De cabeça no lugar,
Mas impossível de achar.
Que perfeição de mãe!
Que mais podia ter feito
Que deixou por fazer?
Nossas roupas de tecido barato,
Costuradas na singer
Que lhe arruinou as pernas bonitas.
As tortas domingueiras.
De camarão ou uva preta,
Bem ao gosto do marido.
Preta é a uva, mãe!
Que orgulho de mãe!
Teria sido rainha do rádio,
Carmem, marlene, emilinha,
E preferiu ser Ângela só minha.
Se a ouvissem, não se pediria
Mortadela com ene no meio.
O português que bem se fala
Ficou entre as tábuas do Marapé,
Suas cercas, seu chalé.
É acelora ou acerola?
Que emoção, mãe!
Mesmo que hoje me desconheça,
Que não me chame Marcão,
Que pergunte “quem é o cara?”,
Tão logo me afasto dela.
A confusão vem dos tempos felizes,
No meio de tanto irmão,
Quando fui Nélson, Zinho, Albano, Horácio,
Paulo, Sílvio e mesmo Márcio, Marisa e Tzi.
Mudei eu, mãe. Você não!
(São Paulo, 5 de maio de 2017)