Até para emitir opinião, ou principalmente para isso, o texto jornalístico deve ter coerência, lógica e clareza, entre outras virtudes. Por exemplo, é preciso dizer com todas as letras que o Santos FC é o maior time da história do futebol mundial. Mas vejamos um exemplo mais difícil: defender o resultado quatro da soma de dois mais dois. Pois a ombudsman da Folha conseguiu derrapar de todas as formas em sua análise semanal deste domingo (11/11), sob o título “Perguntar não ofende?”. Seu mote é o confronto da semana passada entre o presidente Trump e o setorista da CNN na Casa Branca.
Solidamente fincada em cima do muro, a ombudsman tabajara faz cara de paisagem e apenas reproduz, análises a favor e contra o jornalista. Admite que as críticas levantam uma questão importante – “Qual o limite da atuação de um repórter?” –, mas também foge dessa interrogação. Refugia-se nas recomendações de manuais de jornalismo, entre os quais o da Folha, e não opina.
Se é assim, gostaria de usar o mesmo recurso, recorrendo ao meu media trainer preferido, que sou eu mesmo. Para mim, jornalista deve reservar as perguntas para o entrevistado e poupar delas o leitor, que lhe paga o salário. No texto final, entram só as respostas, quando houver. A ombudsman começa com uma pergunta no título e repete a interrogação no ponto crucial do texto.
Meu treinador diria que tem algo errado aí. Quem se dedica a fazer a crítica da imprensa precisa ser no mínimo assertivo. Defender-se com a regra da neutralidade jornalística não vale, pois expor posição é inerente à função. E quem lê a coluna procura justo uma opinião a respeito do objeto da crítica. Concorde ou não com ela.
O incidente em Washington envolve direito de expressão e liberdade de imprensa. Ou seja, é um prato cheio para a colunista. A mídia em geral colocou-se ao lado do repórter, exceto dois analistas citados pela ombudsman, que desaprovaram o “tom de discurso” usado por ele diante de Trump.
Para dar a impressão de sair do muro, a profissional da Folha trouxe o assunto para o Brasil. Mas inverteu a situação. Ao invés de comentar alguma possível impertinência de colegas, dá um salto triplo carpado e analisa o que chama de subserviência no tratamento supostamente “amistoso” ou “reverencial” que, em entrevistas coletivas, jornalistas brasileiros teriam dado ao presidente eleito e ao seu futuro ministro da Justiça. É quando, de fato, ela salta para um lado do muro, por acaso aquele de seus patrões na recente disputa eleitoral.
Além de criticar o comportamento de profissionais de outros veículos, a profissional faz a defesa da pergunta da repórter da Folha ao juiz Sérgio Moro. Essa pergunta foi apontada por um leitor como irrelevante e militante. No texto da própria ombudsman, a repórter questionou Moro sobre a definição de “ponderado e sensato” que ele atribuiu a Bolsonaro, lembrando que o presidente eleito “já defendera a tortura, a ditadura, grupos de extermínio, disse que seria incapaz de amar um filho gay e afirmou que pretendia fuzilar a petralhada”.
Ufa! Tudo isso discursou a repórter, antes de chegar ao ponto. Embora o manual da Folha recomende perguntas “curtas e objetivas, sem conter afirmações que possam passar a impressão de que o entrevistador já tem convicção formada sobre o personagem ou o assunto”, a ombudsman sentenciou que o questionamento fez sentido. Defendeu mais. No seu entender, a repórter “buscava esclarecer até que ponto Moro poderia associar-se a episódios que estão longe da ponderação e sensatez e pelos quais poderá ser também julgado futuramente – por leitores, por eleitores e pela história”.
Enfim, no último parágrafo, traiu-se a crítica implacável, a ombudsman feroz, não do jornalismo, como seria de se esperar, mas do entrevistado. Embora Moro tivesse dado sua resposta, a ombudsman se exime de avaliar se a repórter conseguiu ou não esclarecer a posição do juiz. De novo, acumpliciada ao tom, aos juízos de valor e às convicções da perguntadora, ela sobe o muro e joga o julgamento para o futuro.
Questão de clareza, de texto mal redigido? Talvez não. Observemos quem, para a ombudsman, fará esse julgamento. Os leitores, OK. Mas e os eleitores, neste novembro de 2018, de onde saíram? De uma candidatura já anunciada a prefeito ou vereador nas eleições municipais de 2020? De um sonho confidenciado pelo entrevistado a algum blogueiro? Ou vieram das especulações com que os contrariados por decisões da Lava Jato procuram diminuir a figura do juiz?
Pois é, dona ombudsman. O texto todo é confuso, incoerente, ilógico. Parece que vai pra lá e vai mesmo, como um Garrincha de dígitos tortos. Mas dele não se diga que carece de clareza. Que não tenha posição. É claro o suficiente e tem posição até demais. Basta saber ler!