Vivemos uma ditadura entre meados dos anos 1960 até o início dos 80 do século passado. Começou com o golpe militar, que em 1964 derrubou um presidente legitimamente eleito (na época, os vices tinham votação própria, e foi nessa condição que o deposto João Goulart chegou ao poder, pós renúncia do presidente Jânio Quadros), em movimento semelhante às quarteladas latino-americanas. O golpe, entretanto, só se transformaria em ditadura de fato em dezembro de 1968, com o Ato Institucional número 5. Foi então que os militares tiraram a máscara do regime que impunham ao país, com o apoio de muita gente boa, inclusive a chamada grande mídia.
A penada fechou o Congresso, extinguiu os partidos políticos, controlou o Judiciário, tornou ilegais as instituições que se opunham ao sistema, cassou mandatos e afastou da vida pública os políticos de oposição, além de prender estudantes, intelectuais e sindicalistas. Iniciou-se, também, um período de censura à imprensa, em alguns casos com o censor fazendo plantão nas redações. Tal situação levou parte dos opositores do regime a buscar a resistência armada, enquanto outros acreditavam que, contra todas as restrições, a luta poderia manter-se no campo político. Tudo isso é história. Nem precisaria recontar, mas serve para o paralelo que pretendo estabelecer.
Hoje, ouço e leio pessoas declarando-se na resistência à ditadura e em luta pela democracia no País. Acreditam fazer parte de uma cruzada heroica. Mas a principal arma de que dispõem é um discurso feito de lugares comuns, denúncias vazias e argumentos insustentáveis, posto que baseado em naturais diferenças político-ideológicas. Sua irritação mais profunda volta-se contra a postura de um governo nem sempre coerente com sua plataforma eleitoral (o combate à corrupção parece ter sido esquecido, por exemplo), mas que quase nada difere daquela que o levou a ser preferido por expressiva maioria do eleitorado. A bandeira dos “resistentes” é a derrubada de um presidente eleito de forma legítima, tal como os militares de 1964 fizeram com Jango.
Se o governo foi democraticamente eleito e, dois anos depois, os demais poderes (Legislativo e Judiciário) funcionam em toda a plenitude, por vezes até usurpando atribuições de Executivo, e nenhuma instituição da sociedade civil teve suas atividades encerradas, como falar em ditadura? Pois é, estranha tirania que se permite a todo momento ser desafiada e derrotada no embate político que transcorre normalmente. Verdadeira jabuticaba na cena mundial das ditaduras.
Sem falar no ridículo mantra do genocídio, curiosa é também a queixa de uma intelectualidade contra suposta censura à imprensa e imaginária ausência de liberdade de expressão. Isso é quase uma anedota. Os veículos de comunicação, grandes e pequenos, impressos e eletrônicos, na grande maioria fazem oposição militante ao governo e não sofrem qualquer represália. Jornalistas, artistas e escritores dizem e assinam o que lhes vai pela cabeça, com total sem cerimônia. Um colunista chegou a escrever e publicar que torce pela morte do presidente da República. O STF, que procura “discursos de ódio” para alimentar seu inconsistente inquérito a respeito, comeu mosca. Não se emocionou com essa explícita demonstração de ira. Deixou para lá.
Então, vamos combinar. Fazer oposição a um governo que não escolheu, tudo bem. Procurar todos os argumentos possíveis para enfraquecer um futuro adversário nas urnas, tudo bem. Faz parte do jogo político. O que não cola é essa pretensa defesa da democracia num país em que todas as instituições funcionam sem sustos. O que não pega bem é reclamar de censura quem pode manifestar-se livremente, alto e bom som, inclusive para de forma inédita (porque exclusiva do nosso país) responsabilizar o presidente por uma epidemia mundial. O que não existe por aqui, e agora, é tentativa de se criar algum tipo de controle social da mídia, ameaça que só foi real nos governos lulopetistas.
E são justamente os apoiadores dessa excrescência e os defensores de ditaduras como as de Cuba e Venezuela os que mais criam fantasmas. É o que fazem para se sentir intrépidos resistentes. Mas no fundo, o que os pobres diabos aspiram é o golpe, quando deveriam estar apenas estar se preparando para disputar com competência o voto dos brasileiros na próxima eleição.