Receita para estes tempos

Tudo bem!

Bom dia, Sol! Bom dia, dia!
Amaryl, Omeprazol, Amoxilina!
Sonho a volta da alegria,
De algo novo, sem rotina!

Bom dia taqui, taquicardia!
Salve, salve, amiga angina!
Nem te ligo, tibitate arritmia.
Vá ver se estou na esquina!

Vias aéreas ou baixas.
Tudo certo, tudo Rivotril.
Cadê as sagradas caixas
Do inescapável Isordil?

Viva bem, viva contente,
Seja smart, seja sagaz
Tenha sempre um bom estente.
Um ou dois ou três ou mais!

Negação do humor, sublimação do ódio

As campanhas petistas já foram criativas e divertidas. Desde o oPTei do início das lutas do partido e o inesquecível “Lula, lá”, que não levou mas empolgou o país, o humor sempre esteve presente, atenuando a carranca do seu líder. OK, aquilo não ganhava mesmo eleição, tanto que Lula perdeu três em seguida, mas sugeria um novo jeito de fazer política.

Eram os tempos de Carlito Maia (que tanta falta faz) e da participação espontânea da militância, capaz de criar a estrela vermelha num guardanapo de mesa de bar molhado de cerveja. Mesmo o “Lulinha, paz e amor”, forçado pelo marketing profissional, deu para engolir como instrumento de disputa eleitoral. Mas, a seguir, a coisa desandou, nos desatinos do confronto PT-PSDB.

Este ano, atingiu o estado da arte da maledicência. A campanha do primeiro turno foi toda baseada na negação e na destruição dos adversários. Estes também atacam e maldizem o candidato petista? Sim, claro, mas quem costuma queixar-se do ódio, que só enxergam do outro lado, são justamente os que agora não apresentam um argumento a favor do próprio candidato. Nem as ideias próprias que eventualmente ele possa ter. “Elenão”, gritam, sem dar pista de quem seria o “elesim”.

É também curiosa a falta seletiva de inspiração dos humoristas da mídia, sempre tão ativos e engajados. Nem a possibilidade (sur)real de o país ser governado de dentro da cela de um presidiário, condenado em duas instâncias por corrupção, instiga a veia criadora dessa gente. Colunistas, chargistas e artistas preferem seguir requentando piadas sobre Bolsonaro, Cyro, Alckmin e Marina. Do mesmo modo, ignoram o papel ridículo desempenhado por Haddad, com aquele Lula pregado no peito (o boneco não consegue renegar sua voz?) e as visitas regulares à PF de Curitiba.

Ao autorizar a Folha a ouvir o líder petista na cadeia, Lewandowsky tentou dar mais o espaço para a participação do presidiário, condenado em duas instâncias, na atual campanha presidencial. A Justiça foi salva dessa afronta pela ação rápida do ministro Fux, que suspendeu a decisão do colega, em ação movida pelo Partido Novo.

Entretanto, o PT continuará devendo ao ministro do STF pelo menos a eleição de uma senadora. Pois foi ele quem preparou a pizza de jabuticaba que, no processo do impeachment da Dilma, permitiu à ex-presidente, mesmo condenada, manter os direitos políticos e, agora, a possibilidade da candidatura.

O golpe frustrado e a fábula de Matheus

No último sábado de setembro, desci a Serra para participar da assembleia geral dos associados do meu time. Tínhamos a tarefa indesejável de confirmar ou não a destituição do presidente eleito em dezembro. O processo foi autorizado por margem limítrofe no Conselho Deliberativo do clube e resultou de iniciativa de gente ligada ao que há de mais retrógrado e provinciano na política interna do Peixe. Votei contra, é claro.

Entendo que José Carlos Peres, o presidente encrencado, não possui qualificação para comandar o Santos e, muito menos, para conduzir o maior time da história do futebol mundial. Não fui um de seus eleitores e não concordo com seu jeito de administrar o clube. Pelo contrário.

Em nove meses, ele abusou do direito de fazer besteiras, por vezes afrontando de fato os Estatutos Sociais, que são a constituição do clube. Peres também costuma cercar-se de más companhias, talvez por entender que pode manobrar os medíocres com mais facilidade. Foi possivelmente o que imaginou ao unir-se a Orlando Rollo, envolvido nas piores confusões que denegriram o Peixe nos últimos anos e o vice que o trairia menos de dois meses depois da eleição.

Apesar de tudo, ou por falta de tempo, Peres não fez tanto mal ao Peixe quanto seu antecessor, Modesto Roma, que teve as contas reprovadas em dois de seus três anos de mandato. Comenta-se em Santos que, se houvesse vontade política do atual Conselho (presidido por Marcelo Teixeira, patrono das candidaturas Roma), o ex-presidente já teria sido afastado do clube, no mínimo.

De forma que os associados viram-se na condição de ter de escolher entre o feio e o pavoroso. A maioria dos santistas preferiu não apoiar o golpe articulado pela turma do “o Santos é de Santos” e, apesar dos pesares, ficar com o presidente escolhido há poucos meses. Nessa situação, e em “homenagem” às pessoas que têm dirigido o Peixe desde 2015, subi a Serra de volta a São Paulo lembrando uma história que escrevi em dezembro de 2002, logo depois das inesquecíveis pedaladas.

Presente de Natal – O ex-presidente corintiano Vicente Matheus caminha nervoso na ante sala do Criador. Vai de um lado a outro, move as perninhas miúdas e resmunga alto, sem se preocupar se é ou não ouvido. De qualquer forma, pensa, Ele lê até pensamento. Sabe que blasfema, mas não se segura.

– Você é injusto! Não trata os Seus filhos com igualdade. Você tem todo o direito de torcer pro time que quiser. Mas não pode ser assim tão parcial.

Deus, que naqueles dias antes do Natal de 2002 passava as últimas instruções para o Papai Noel chefe, acha graça daquela irritação e pede à secretária:

– Madalena! Mande o Vicente entrar.

O homenzinho muda de humor, diante da audiência não agendada, e até sorri, quando se apresenta ao Todo-Poderoso. Mas logo volta ao ar triste e choroso.

– Desembucha, infeliz, que agora Eu não tenho muito tempo!

Matheus odeia ser chamado de infeliz, mas resiste ao golpe.

– Sabe o que é, Senhor? Nós, corintianos, não aguentamos mais passar humilhações diante daquele time. E tudo por Sua causa, que, não contente em colocar na Vila o Rei do Futebol, agora dá a eles esses dois capetinhas, Robinho e Diego. Você viu o que eles fizeram com a gente na decisão do campeonato brasileiro?

– É claro que Eu vi, sofredor. Eu estava lá! E Me diverti muito com as pedaladas do Robinho. Aliás, você chama os garotos de capetas, mas aquilo não é obra do cara lá de baixo. O rabudo torce pro teu time. Foi coisa de Deus, quero dizer, Minha.

– Pois é justamente com isso que eu não me conformo, Divino. Por que o Senhor, que tudo pode, favorece sempre o Santos? Não podia ter mandado pelo menos um dos dois para o Parque São Jorge?

– Não seja ridículo, Meu bom Vicente! Você acha mesmo que Eu seria capaz de romper, sem falsa modéstia, a maravilhosa harmonia da criação, só para não ter você aqui, chorando na Minha frente? Entenda, de uma vez por todas, que a vida é assim. Tem céu e inferno, alegria e tristeza, vitórias e derrotas. Tem Santos, desculpe, santos e demônios. Tem os que se dão bem e os que se dão mal. Os vencedores e os perdedores.

– Quer dizer, então, que nós estamos condenados a perder sempre, meu Pai?

As lágrimas já escorriam pelas bochechas avermelhadas do marido de Dona Marlene, e Deus, que é Bondade, Misericórdia e Compaixão, resolveu ser também Consolo e Esperança para aquele pobre diabo.

– Acalme-se, meu torturado filho! Enxugue essas lágrimas e ouça o que Eu tenho a lhe dizer. O Santos é o meu time, certo? Mas isso não significa que ele será sempre o vencedor. O que Deus põe, digo, o que Eu ponho, o homem dispõe. Porque é arrogante, orgulhoso e metido. Aquele pessoal da Baixada estava se achando dono da cocada preta. Por isso, foi punido.

– Mas como, Senhor? Com esse time maravilhoso de garotos, que vai durar pelo menos mais dez anos?

– Não, Vicente, punido com os dirigentes que Eu coloco lá na Vila Belmiro. Espere e verá, homem de pouca fé. Em dois tempos, essa gente, uma espécie de oitava praga do Egito, acaba com o time e com o Santos.

– Oba! Então, logo nós seremos maiores do que eles?

– Menos, Vicente! Menos! Aí você já está querendo demais. Ponha-se no seu lugar. E reze três Ave Marias em homenagem a Mamãe.

Beleza e preconceito

Olho para trás e vejo que meus cabelos sempre foram brancos e poucos. Quando muitos e escuros – constato nas velhas fotos dos times das redações e das assembleias do Vlado no Sindicato –, eram desgrenhados. Bem palha de aço, até. Tentei alisá-los com orientação de uma namorada e o auxílio de um produto de farmácia. O resultado provocou o comentário de um negro famoso, com quem viajei na época: “O jornalista tem um pé na cozinha!”

Meus antepassados vieram de Portugal e da Espanha. Os avós portugueses do pai chegaram direto e se instalaram em Santos, com uma escapada do bisavô para o Vale do Ribeira. Lá, explorou uma mina de chumbo e abriu um armarinho em Eldorado Paulista, então Xiririca. Os avós maternos, de sangue espanhol e lusitano, vieram do litoral norte do Paraná, com escala no Vale do Ribeira. Ali, vovó Helvetia lecionou em colônias de imigrantes japoneses, como professora leiga. Veio dela o português que mamãe, com poucos estudos, impôs à nossa casa modesta de Santos, cidade que a família dela adotou na década de 1930.

Ainda assim, pode haver em nós algum vestígio de sangue índio, como assegurava a madrinha, irmã do pai, para desgosto da mãe. É incrível, mas a Bela Dolores carregou algum preconceito no coração bonito. E quem não, naquela época e até hoje, sem nada que explique? O Bom Fonseca também. Sua cisma eram os jovens negros que se vestiam melhor, e ele achava mascarados só porque jogavam no juvenil do Peixe. Vai entender!

Um desses, se bem me lembro Luís Cláudio, era engomadinho e perfumado, como qualquer rapaz bonito. Chegava na entrada do ginásio Athié Jorge Cury, Vila Belmiro, e mal olhava para o pai. Ia passando, sem crachá e sem boa noite! Mas o velho barrava, com educação e algum sadismo: “Ingresso, por favor!” O rapaz, surpreso: “Como assim, ingresso? Não me conhece?”. E o velho, inflexível: “Não, não conheço. Ingresso, por favor!”.

Talvez só ali, na entrada dos jogos de vôlei e basquete, daqueles anos 1950, em Santos, o humilde servidor público, faxineiro, garçom, montador de coberturas para festas, cobrador, bilheteiro, pau-pra-toda-obra, que sangrava para pôr dinheiro em casa e alguma comida na mesa pequena da família grande, exerceu alguma autoridade na vida. Em especial, diante de “jovens mascarados”.

Na viagem com o maior time de todos os tempos, achei legal o Rei me acolher. Numa época em que diferenças não se viam a olho nu e respeito não se impunha, meu sentimento era mais que sincero. Chegava ao orgulho. A voz do pastor King ainda se ouvia forte e a negritude estava em alta no mundo, com Ali, Ella, Marley e os Panteras. E, também aqui, com Cartola, Elza, Simonal, os livros de Machado e a força negra daquele time inesquecível!

Outubro, 17

Hoje esqueço o boné
Com que me cubro
Pois é outubro
E o verão se insinua
No céu, na rua.
No ar, até!
 
Apogeu vermelho das pitangas!
 
Outubro do sangue
Rubro, remoto na neve,
Que aqui não ferve.
E lá abunda.
Revés do nosso sol
De alma branda.
 
Revolta amável destas tangas!
 
De novo outubro.
E se a cabeça descubro,
Quisera liberar igual
Os pés das vestes,
Pisar sem dor o mal,
Subir mil everestes!
 
São Paulo, 17/10/2017