Dolores, 100 anos

Chamava-se Xiririca o lugar em que ela nasceu, no Vale do Ribeira, dia 5 de maio de 2019, com a primeira grande guerra terminando. Uma dos oito filhos dos Almeida, Helvetia e Horácio, vindos do litoral norte do Paraná. O pai fazia de tudo para prover a numerosa família e a mãe dava aulas como professora leiga, nas crescentes colônias de imigrantes japoneses da região. Maria das Dores, naturalmente virou Dolores, assim como tempos depois Xiririca virou Eldorado Paulista, Nesse tempo, andava por lá um certo Ouhydes, o Fonseca, neto de comerciante português que foi em busca de riquezas nas cavernas do Vale.

O avô não teve sorte, mas Ouhydes encontrou Dolores e com ela se casou, em 1939, quando os Almeida já moravam em Santos. Alguns anos e doze filhos depois, dez dos quais vivos até hoje, o Bom Fonseca morreu e deixou com a Bela Dolores a tarefa de continuar cuidando de crianças, netos e bisnetos que não param de nascer. Nessa missão, ela passou um tempo em Vinhedo e, agora, de volta a Santos, comemora o centenário na terra do coração.

A sua bênção. mãe!

 

A greve geral e o novo peleguismo

Na desmilinguida manifestação recente contra a reforma da previdência, os movimentos ligados à esquerda voltaram a falar em “greve geral”. Então, falemos dessa farsa, que só existe na cabeça delirante dos profissionais que a comandam e na preguiça da imprensa em apurar a verdadeira extensão e espontaneidade das supostas paralisações decorrentes. Em geral ocorre não haver greve alguma, mas sim o fechamento de estradas por grupelhos de mal pagos, vandalismos diversos pelas cidades e o tradicional locaute dos transportes. Mas nossos jornalistas confiam cegamente nas suas fontes enviesadas e não vão à rua conferir as informações que lhes  caem no colo.

No caso do transporte urbano, os trabalhadores são usados como massa de manobra dos dirigentes sindicais e das empresas, que adoram esse tipo de “paralisação”. Com ela, podem depois demitir quantos e quem quiserem e a justiça aprovará o corte do ponto dos faltosos. Que patrão desejaria mais e melhor? Se fosse pouco, os empresários ainda dão uma cutucada nos poderes municipais e estaduais, com os quais conflitam. Quem perde são os trabalhadores do setor e a população, privada do seu direito à mobilidade.

Nas estradas, a mesma coisa. Transtornos a quem precisa se deslocar entre cidades para trabalhar, estudar, fazer negócios, transportar mercadorias, ir a hospitais e postos de saúde, visitar amigos e parentes ou, simplesmente, passear. Aconteceu outro dia na Anhanguera, quando meia dúzia de empregados de uma empresa privada bloqueou uma pista da rodovia. Isso com a complacência das autoridades e a cobertura da polícia. Não deve ser difícil identificar os caminhões que levam os pneus para queima e prender seus ocupantes e mandantes. Mas a polícia nada faz, embora conheça perfeitamente a logística desses atos.

Quando pesquisas revelavam a altíssima rejeição dos governos petistas e o grande apoio ao afastamento da ex-presidente, a intelectualidade apelidou de golpe o processo constitucional seguido no impeachment. Na época, desdenharam da vontade popular, alegando que a opinião pública é manipulada pela grande mídia, ou seja, pelos inimigos do povo. Depois, passaram a usar sondagens compradas de institutos que oferecem resultados ao gosto do freguês para justificar a organização e operação de crimes contra os brasileiros e o país. Na última “greve geral” que conseguiram plantar como tal na grande mídia, expoentes do fascismo-stalinismo (sim, o dragão de duas cabeças, ou dois rabos, existe!) profetizaram que o país iria parar.

Argumentavam que o povo não aceitava o governo de plantão, na época do aliado Temer, nem as reformas por ele propostas. Esqueceram-se de combinar com os russos, como falou Garrincha. Se não houve adesão ao movimento, então os trabalhadores estavam do lado oposto ao dos amigos dele?

Guilherme Boulos, profissional remunerado de movimentos encilhados, ditos sociais, e mais tarde figurante bufão na eleição presidencial do ano passado, comemorou “a maior greve geral dos últimos 30 anos no país”. É curioso, porque, em 2017, só uma categoria parou de fato, em alguns estados. Foi a dos trabalhadores em transportes urbanos, cujos sindicatos são controlados pelos novos pelegos das centrais sindicais. Aconteceram, ainda, paralisações localizadas e pontuais, como as que envolveram ínfimas minorias de professores e bancários, em alguns pontos do país.

Entre estas, a mais ridícula foi a que uniu direção, professores, pais e alunos de colégios da elite paulistana. Ah como é bom ser eternamente adolescente! Essa greve consentida e festiva guarda semelhança com a dos ônibus. A paralisação dos trabalhadores do transporte urbano também juntou conveniências: dos sindicalistas, basicamente político-ideológicas, e dos patrões, de viés econômico. Foi aquilo que a precisão jornalística manda chamar de locaute, e não de greve. Mas, em algumas circunstâncias, dane-se a precisão jornalística, não é mesmo?

Boulos, entretanto, sabia muito bem do que falava. A confusão que ele faz, misturando no mesmo saco paralisação do trabalho, manifestação de rua e vandalismo, é proposital. Tem o objetivo de gerar a ilusão de que a esquerda radical alcança seus propósitos. Para isso, conta com a covardia dos meios de comunicação, que chamou pelo nome errado o que aconteceu perto do 1º de Maio e o que se repetiu no ano seguinte, com os caminhoneiros. O que tivemos de fato foi mais uma demonstração do tipo de democracia que os radicais de direita e esquerda adotam, quando obtém o poder absoluto. Um dos nomes que a esquerda usa é centralismo democrático, o sistema em que cabe aos líderes iluminados decidir o que é melhor para todos. Outro nome é ditadura.

No dia anterior à greve geral que não houve, uma jovem me disse: “Sexta-feira, não vou trabalhar. Vou fazer piquete”. Estranhei, porque a empresa que a empregava tinha no máximo oito funcionários. Imaginei que ela iria bloquear a escada, para que seus companheiros não pudessem chegar à saleta que a empresa ocupava no primeiro andar. Por via das dúvidas, perguntei a ela o que significava fazer piquete: “Vou encontrar o pessoal na Paulista e lá a gente decide onde vai quebrar alguma coisa, queimar lixeiras, parar o trânsito, provocar a polícia… Essas coisas.” Entendi que, apesar de mal ter começado a menstruar, a moça sabia preparar um coquetel molotov.

Se não há honestidade, que haja coerência

No dia da prisão do Temer, um ex-funcionário do PT, hoje comentarista de rádio (eles estão por todo lado, após o fim das boquinhas), disse que a sentença do juiz da Lava Jato criminalizava a política e prejudicava o governo na sua relação com o Congresso. Por consequência, afirmou o militante, colocava obstáculos à tramitação e aprovação do conjunto de reformas preconizadas pelo Executivo.

O comentarista é o que se chama de “jornalista político”. Esse tipo, em geral, se diz crítico feroz da “velha política” e fervoroso defensor da renovação das práticas políticas. Isso, é claro, da boca pra fora, em discursos vagos, meramente teóricos. Nas situações reais, alinham-se invariavelmente ao passado. Gostosamente, deixam-se abduzir pela conversa fiada das velhas raposas.

Assim que o governo enviou para a Câmara seus principais projetos, entre eles o de Moro, foi unânime a crítica a respeito de uma certa “falta de articulação”. É evidente que essa pílula de sabedoria política tem origem no parlamento, é vocalizada na mídia pelas lideranças queridinhas (entre elas a da oposição de esquerda, resistente) e conquista corações e mentes dos comentaristas, especialmente no rádio e na TV.

Nas sucessivas sessões de “eu acho que”, “uma fonte me disse”, “na minha opinião”, que preenchem a grade da emissora, as melhores cabeças da Globo News aderiram imediatamente. Não questionaram a conduta de quem usa o cargo público em defesa de interesses menores, nem procuraram a razão de o nhonhô fazer beicinho. Apenas insistiram: como o governo quer aprovar as reformas, se não tem “articulação política”? – reforçando a cobrança com sonoras dos mais inexpressivos porta-vozes do baixo clero, no qual hoje se incluem PT, PSOL e companhia.

Articulação política? Que bicho é esse? Para os çábios, articular é “fazer política”. Caramba! Genial! O comentarista da rádio falou. Os especialistas da TV repetiram. O governo precisa fazer política. Pois sim, sei, tá bom! Conversa fiada: isso aí é o velho toma-lá-dá-cá, o “é dando que se recebe”. Tão condenada em outros momentos, tais práticas parecem estar reabilitadas. Não são mais pecado.

O ex-funcionário do PT lamentou a criminalização da política, sem nominar os verdadeiros responsáveis por isso: os políticos corruptos, envolvidos nas bandalheiras que o projeto do Moro quer pegar e Rodrigo Maia prefere arquivar. Um desses alvos é justamente o oportunista menor, que herdou a Câmara de Eduardo Cunha e a manteve com benesses oferecidas aos pares.

Rodrigo Maia, subitamente reverenciado por grande parte da mídia e dos blogueiros “bem informados”, merece sua origem e é digno sucessor de Cunha. Deve ter motivos pessoais para querer barrar o projeto anticrime, com as justificativas que quiser. Jornalistas, porém, não têm o direito de entrar nessa conversinha. Nem de criticar a prisão de Temer, se há pouco reclamavam da imunidade que mantinha o ex-presidente fora do alcance da Justiça. Argumentavam, então, que o fim, o “fora Temer”, justificaria o atropelo da lei.

Jornalista, até para abrir mão da honestidade, deveria ser coerente.

A triste ideologização da tragédia

Tenho um comunista velho conhecido, daqueles que comiam criancinha, o que ele talvez continue fazendo. Esta semana, quando se discutia a ajuda israelense no resgate das vítimas do desastre criminoso de Brumadinho, entre manifestações a favor e contra, eis o que meu sensível conhecido escreveu: “Judeu não sabe resgatar corpos. O que sabe é enterrar corpos de palestinos”. Se você procurava uma mensagem edificante, humana, e absolutamente oportuna, acabou de encontrar.

O ogrismo não espanta. Essa gente, tipos que se dizem de esquerda, são como aqueles que preferem perder um amigo para não perder a piada. No caso, preferem ostentar todo o ridículo de que são feitos para não perder a oportunidade de militar e obrar em favor de suas lamentáveis causas político-ideológicas. Não abandonam um milímetro a trincheira da heroica resistência em que se julgam fincados, sem largar a mão de nenhum companheiro ou camarada.

Mas estamos apenas no aquecimento da mais recente batalha da guerra partidária iniciada na última campanha presidencial. A tragédia mineira ainda renderá fortes condenações de autoridades passadas (FHC, o “criminoso” responsável pela privatização da ex-Vale do Rio Doce) e das atuais (o governo Bolsonaro, que não soube ou não saberá tomar as duras medidas para punir os criminosos e prevenir futuras tragédias).

Como sempre, o olhar esquerdista brasileiro, qualquer que seja a miséria nacional em análise, é absolutamente cego para o intervalo de 16 anos lulopetistas, que separam o curto período de Vale privatizada no governo tucano e o mal transcorrido mês de governo toscano (de tosco).

Pois é! A esquerda teve treze anos e três reeleições para impedir que a “sanha capitalista” da Vale transformasse a mineradora em ameaça mortal aos infelizes vizinhos de suas barragens. E, como em todos os casos que exigiram pulso firme e determinação, nada fez, com Lula e sua sucessora, do que agora cobra dos adversários. Mesmo que estes, por enquanto, enfrentem Brumadinho com mais espírito público, presteza e competência, do que Dilma demonstrou em Mariana.

 Duas sugestões

Se eu pudesse dar uma sugestão às autoridades, no caso Vale, daria logo duas.

  1. Sempre que acontecer tragédia como a de Brumadinho e assemelhadas, a Justiça nomeia rapidamente um pequeno comitê de especialistas, indicados pelo Ministério Público, pela Polícia Federal, por entidades de classe dos engenheiros e advogados e pelos ministérios da área. No total, uns cinco profissionais que logo no primeiro dia fazem uma estimativa dos prejuízos humanos, materiais. ambientais e institucionais e definem pesada multa a ser imediatamente paga pelos responsáveis. A ideia é inverter o processo: os criminosos pagam primeiro e depois vão pleitear eventuais restituições.
  2. Em cada atividade de risco, cria-se um grupo de peritos fornecidos e remunerados pelas próprias empresas da área, para cuidar da rotina da fiscalização. O ideal é que os peritos atuem nas empresas concorrentes, mas nada impede que fiscalizem seus próprios empregadores, pois terão estabilidade funcional e assinarão termos de conduta reconhecendo a própria responsabilidade criminal em casos de desastre. Um fundo financeiro mantido pelas empresas cobrirá todos os custos operacionais do trabalho.

É claro que essas duas medidas não excluem punições imediatas a pessoas físicas, como a prisão de CEOs, gestores, funcionários, parceiros externos e agentes públicos envolvidos na tragédia, nos moldes das propostas pela procuradora Rachel Dodge. Algo do gênero foi aplicado preliminarmente contra funcionários da Vale e da empresa terceirizada que atestou a segurança da barragem de Brumadinho.

Aí vem o dilúvio!

Já sei, mas não ligo. Serei bolsonarista fascista, mesmo que no segundo turno de outubro tenha me mantido equidistante das duas tragédias reservadas à infeliz Sofia em que me transformei. Prensado entre tão tristes, e no fundo parecidas, opções, exerci o direito que William Styron não concedeu à personagem de Meryl Streep na tela. Votei em branco. Escolhi a não-escolha.

Tudo isto posto, venho dizer que nunca antes neste país um governo assume cercado de tão duros vaticínios. A partir do primeiro dia de 2019, segundo os arautos da hecatombe, o país entrará na mais profunda treva. Retrocederá cinco décadas até a ditadura militar, à tortura e ao aniquilamento físico dos adversários. Tudo porque “o mal venceu o bem”, e os perdedores não se conformam. Querem ganhar o “terceiro turno”.

E lembrar que, no início da campanha eleitoral, o diabo não parecia tão feio! Tanto que as esquerdas (Boulos, Haddad) preferiram bater no candidato tucano, enquanto a Alckmin encarava Bolsonaro sozinho. O picolé foi ejetado da disputa e rolou um frente a frente mamão com açúcar para os petistas, mesmo com a “traição” de Ciro e o vacilo de Marina. Imaginavam os inteligentezinhos, estar assegurada a vitória “dos que querem o bem e a felicidade de todos”, diante de tão tosco rival.

Bastava expor ao distinto e esclarecido público as terríveis faces do capitão: intolerante, reacionário, inimigo das políticas sociais, adepto da violência policial-militar, antifeminista, homofóbico, racista. Tudo enfim que só encontra paralelo em bater na própria mãe. Pelo menos, era o que calculavam os estrategistas de Lula, crentes de que postes ganham sempre. Não foi bem assim. A preferência pelo outro só fez aumentar e a gente boazinha ficou desesperada. Nem fake news nem apoio indisfarçado da mídia ajudaram. O capeta levou quase 60% dos votos.

Do estupor e da frustração – outros nomes do nojo do veredito popular – cresceu o ódio a aliados e adversários, e surgiram a “resistência” e o “ninguém larga a mão de ninguém!” Da insanidade e da raiva incontida foi um pulo até a hostilidade máxima ao novo governo, a implicância com os ministros e planos anunciados e o desejo de que tudo dê errado para Bolsonaro e os seus. De Moro à pastora, de Paulo Guedes ao astronauta, dos ministros militares à mulher, filhos e amigos do presidente, nada presta.

Como se não tivessem sido ministros de Lula e Dilma finórios da estirpe de Dirceu, Palocci, Mantega, o marido da Hoffman, a própria Gleisi e tantos aliados de rapina, à esquerda e à direita. Até Delfim, os Sarney, Collor, Renan e Maluf estiveram juntos, deram as mãos. Crendeuspai! Como se Bolsonaro não fosse ocupar o lugar que até há pouco foi de Lula e Dilma e, atualmente, de Temer, a sujíssima trindade dos 16 anos de governos petistas. Como se tantos outros filhos, primeiras damas e namorada não tenham cultivado malfeitos até maiores.

Não importa! Para os resistentes, que venha o tsunami, que nada sobreviva, que não reste pedra sobre pedra. Para os adoradores do amado guia, tão fanáticos quanto a ministra que viu Jesus na goiabeira, a redenção só virá com o Lula de Deus Livre e a reintrodução do quadrilhão no lugar do farsante. O que acontecerá, creem piamente, tanto mais se as tropas de Stédile e Boulos, da CUT e dos sindicatos pelegos não baixarem a guarda e mantiverem a militância pondo pra quebrar. Crendeuspai de novo!

Ocorre que não parece ser isso o que o povo quer. Se em outubro os eleitores deram um bico no fundilho do lulo-petismo, agora a maioria ainda mais expressiva de brasileiros quer acreditar que as coisas podem melhorar com o novo governo. Rejeita os agouros dos perdedores, quer poder curtir um pouco de otimismo. De acordo com o DataFolha, 65% dos entrevistados acham que a economia do país vai avançar, bem como sua própria situação pessoal (67%). São os indicadores mais favoráveis desde 1997.

Eu mantenho os pés atrás e prefiro ver para crer. Mas também não ponho lenha na fogueira da inquisição petista, como os três porquinhos de estrela vermelha na testa, que não conseguem ver, ler, escutar.

A pegadinha sem originalidade da polarização

 

Desde que as urnas do primeiro turno me deixaram na condição de sem candidato para a rodada final da eleição presidencial, tenho pensado num filme de 1970, do diretor Mike Nichols, chamado Ardil 22 (Catch-22, no original). Depois, passado o segundo turno, achei que a maluquice ia terminar, mas parece que piorou.

Do lado bom da lembrança, veio o lançamento da Netflix, O método Kominsky, que nos traz o prazer de rever Alan Arkin em grande forma, ao lado de Michael Douglas. Mas voltemos ao panfleto de Nichols contra a insanidade das guerras. A história fala da conflagração do mundo entre 1939 e 1945, num episódio que envolve oficiais da aviação norte-americana baseados numa ilha do Mediterrâneo. O alvo de fato, entretanto, era a guerra do Vietnam, então mais sangrenta do que nunca.

O ardil do título é a regra segundo a qual só pode ser dispensado do combate quem alegar loucura. Para o código, porém, a maior prova de sanidade era justamente querer fugir da guerra. Então, não tinha jeito. “Deixa ver se entendi”, diz o aviador diante da resposta do médico ao seu pedido de baixa. “Para ser dispensado, eu tenho que estar louco. E eu preciso estar louco para continuar voando. Mas se eu pedir para ser dispensando, significa que não estou mais louco, e tenho que continuar voando?”

O Brasil de hoje, para quem não está numa das pontas da polarização bárbara vigente, virou uma pegadinha como a do filme. No segundo turno, de um lado e de outro, quem se sentia desconfortável para votar em um ou outro candidato era apoiador dos ladrões ou fazia o jogo dos fascistas. E tomava pau com a mesma virulência, a torto e a direita.

Agora, a luta ou a resistência continua. Um fala A e o outro respondeo Z. Não há a menor possibilidade para um J ou um S, na variedade do abecedário. Ou se está com o bem ou se está com o mal. O que o Z faz é inarredavelmente errado, na mesma proporção que Z acha absurdas todas as ideias que saiam do A. O país virou campo de batalha para duas seitas que se digladiam sem quartel (ops!).

Se correr… Quero descer desse bonde, mas será que o Ardil 22 deixa?

Mesmo em cima do muro, a ombudsman tem lado

Até para emitir opinião, ou principalmente para isso, o texto jornalístico deve ter coerência, lógica e clareza, entre outras virtudes. Por exemplo, é preciso dizer com todas as letras que o Santos FC é o maior time da história do futebol mundial. Mas vejamos um exemplo mais difícil: defender o resultado quatro da soma de dois mais dois. Pois a ombudsman da Folha conseguiu derrapar de todas as formas em sua análise semanal deste domingo (11/11), sob o título “Perguntar não ofende?”. Seu mote é o confronto da semana passada entre o presidente Trump e o setorista da CNN na Casa Branca.

Solidamente fincada em cima do muro, a ombudsman tabajara faz cara de paisagem e apenas reproduz, análises a favor e contra o jornalista. Admite que as críticas levantam uma questão importante – “Qual o limite da atuação de um repórter?” –, mas também foge dessa interrogação. Refugia-se nas recomendações de manuais de jornalismo, entre os quais o da Folha, e não opina.

Se é assim, gostaria de usar o mesmo recurso, recorrendo ao meu media trainer preferido, que sou eu mesmo. Para mim, jornalista deve reservar as perguntas para o entrevistado e poupar delas o leitor, que lhe paga o salário. No texto final, entram só as respostas, quando houver. A ombudsman começa com uma pergunta no título e repete a interrogação no ponto crucial do texto.

Meu treinador diria que tem algo errado aí. Quem se dedica a fazer a crítica da imprensa precisa ser no mínimo assertivo. Defender-se com a regra da neutralidade jornalística não vale, pois expor posição é inerente à função. E quem lê a coluna procura justo uma opinião a respeito do objeto da crítica. Concorde ou não com ela.

O incidente em Washington envolve direito de expressão e liberdade de imprensa. Ou seja, é um prato cheio para a colunista. A mídia em geral colocou-se ao lado do repórter, exceto dois analistas citados pela ombudsman, que desaprovaram o “tom de discurso” usado por ele diante de Trump.

Para dar a impressão de sair do muro, a profissional da Folha trouxe o assunto para o Brasil. Mas inverteu a situação. Ao invés de comentar alguma possível impertinência de colegas, dá um salto triplo carpado e analisa o que chama de subserviência no tratamento supostamente “amistoso” ou “reverencial” que, em entrevistas coletivas, jornalistas brasileiros teriam dado ao presidente eleito e ao seu futuro ministro da Justiça. É quando, de fato, ela salta para um lado do muro, por acaso aquele de seus patrões na recente disputa eleitoral.

Além de criticar o comportamento de profissionais de outros veículos, a profissional faz a defesa da pergunta da repórter da Folha ao juiz Sérgio Moro. Essa pergunta foi apontada por um leitor como irrelevante e militante. No texto da própria ombudsman, a repórter questionou Moro sobre a definição de “ponderado e sensato” que ele atribuiu a Bolsonaro, lembrando que o presidente eleito “já defendera a tortura, a ditadura, grupos de extermínio, disse que seria incapaz de amar um filho gay e afirmou que pretendia fuzilar a petralhada”.

Ufa! Tudo isso discursou a repórter, antes de chegar ao ponto. Embora o manual da Folha recomende perguntas “curtas e objetivas, sem conter afirmações que possam passar a impressão de que o entrevistador já tem convicção formada sobre o personagem ou o assunto”, a ombudsman sentenciou que o questionamento fez sentido. Defendeu mais. No seu entender, a repórter “buscava esclarecer até que ponto Moro poderia associar-se a episódios que estão longe da ponderação e sensatez e pelos quais poderá ser também julgado futuramente – por leitores, por eleitores e pela história”.

Enfim, no último parágrafo, traiu-se a crítica implacável, a ombudsman feroz, não do jornalismo, como seria de se esperar, mas do entrevistado. Embora Moro tivesse dado sua resposta, a ombudsman se exime de avaliar se a repórter conseguiu ou não esclarecer a posição do juiz. De novo, acumpliciada ao tom, aos juízos de valor e às convicções da perguntadora, ela sobe o muro e joga o julgamento para o futuro.

Questão de clareza, de texto mal redigido? Talvez não. Observemos quem, para a ombudsman, fará esse julgamento. Os leitores, OK. Mas e os eleitores, neste novembro de 2018, de onde saíram? De uma candidatura já anunciada a prefeito ou vereador nas eleições municipais de 2020? De um sonho confidenciado pelo entrevistado a algum blogueiro? Ou vieram das especulações com que os contrariados por decisões da Lava Jato procuram diminuir a figura do juiz?

Pois é, dona ombudsman. O texto todo é confuso, incoerente, ilógico. Parece que vai pra lá e vai mesmo, como um Garrincha de dígitos tortos. Mas dele não se diga que carece de clareza. Que não tenha posição. É claro o suficiente e tem posição até demais. Basta saber ler!

Arrogância, outra carta do baralho da mídia

Na década de 1960, o Estadão desancou a APAE, associação de pais e amigos das crianças excepcionais, por obra de um editorialista português, gente fina, que agiu a pedido da direção. O redator escreveu, e o jornal publicou, que tais pessoas, tão orgulhosas de seus brilhantes rebentos, os excepcionais, melhor fariam se os exibissem em programas domingueiros de TV. Foi algo assim, bem chocante.

Em outro editorial da época, o jornalão fez uma “advertência” ao papa de plantão, em assunto da Igreja. Tipo: “Recomendamos à Sua Santidade que se abstenha de…” Literalmente, ensinou o Padre Nosso ao vigário. Pois arrogância é outra carta do baralho da imprensa, tema deste blog outro dia, quando o assunto foi a reação raivosa da mídia, quando contrariada. Falava da Folha

No tempo em que os editoriais do Estadão cometiam tais atrocidades, a Folha nem publicava editorial. Não tinha opinião. O máximo que fazia era abrigar colunas sociais, abundantes também em outros diários do grupo. Num deles, um colunista divertia-se identificando os “hóspedes do cinco estrelas da Rua Tutóia”, ou seja, os perseguidos que a ditadura mandava para o DOI-Codi. O nome Vladimir Herzog teria constado de um desses check-ins.

Dos 1980 para cá, a Folha publica editoriais, até na primeira página, de vez em quando. Nesta segunda-feira, dia 29 de outubro, o texto “Constituição acima de todos”, que divide a capa com o noticiário das eleições, não é só ironia com o mote de campanha do presidente eleito. É, também, a reafirmação do ódio que o grupo empresarial passou a nutrir pelo “capitão reformado”, desde que ele reagiu a uma matéria que considerou tendenciosa. A mídia odeia ser acionada na justiça, direito de todo cidadão e instrumento legítimo nas democracias.

Até aqui, estamos falando de ira e raiva. No fim do editorial, vêm a soberba e a arrogância. Achando-se no direito de substituir os quase 60 milhões de votos que legitimam a eleição de Bolsonaro, exige que o presidente seja diferente do candidato. Mas como, se foi justamente com o que falou e prometeu que conquistou a vitória? Está sugerindo que, tal qual Dilma, traia o eleitorado e troque o que anunciou pelo que o jornal acha melhor?

É exatamente isso. O jornal arroga-se impor a Bolsonaro que mude, que esqueça o que falou nos últimos meses. O tom é quase de ameaça, porque “a Folha ficará onde sempre esteve”. Pena que não localize precisamente esse onde. É o de agora? O de anteontem? O dos idos de 1964?

PS 1: Só para constar, o blogueiro votou em branco, no último domingo

PS 2: O primeiro parágrafo foi reescrito com correções de Ludenbergue Góes

Imprensa raivosa

“Desse baralho eu entendo”, disse uma vez o antigo treinador de futebol Rubens Minelli, irritado com o tratamento que recebia da CBF. O corporativismo dos jornalistas e o poder de retaliação das empresas de comunicação – o baralho da imprensa – são talvez menos insondáveis, porque se escancaram barulhentamente ante qualquer contrariedade.

A Folha e seus coligados UOL e Datafolha nem disfarçam o rancor que passaram a nutrir de um dos oponentes da disputa presidencial, após o questionamento da isenção de seu grande feito. A denúncia de utilização de recursos privados para fomentar ataques difamatórios contra o adversário é mesmo gravíssima.

O jornal tinha a obrigação de publicar, mesmo que a apuração tenha sido tão frágil e leve a assinatura de uma profissional assumidamente situada num dos fronts da disputa. Da mesma forma, porém, é direito do acusado refutar a acusação e até colocar em dúvida a imparcialidade da matéria.

Nada demais. Nada que não aconteça a toda hora, em qualquer parte do mundo. Nada que não se resolva nos foros competentes, nos lugares civilizados. O problema é que, por aqui, a mídia não consegue conviver com a contradição, atitude que exige de outros setores da sociedade. Em geral, reage com fogo de artilharia contra o petulante desafeto.

Teria sido mais decente a Folha anunciar apoio ao candidato de sua preferência em editorial de capa, como já fez em outras eleições, e deixar o noticiário em paz. Alguma dúvida sobre a ira sagrada do jornal? Vejam a primeira página de hoje, acompanhem o noticiário das eleições pelo UOL. É só ter olhos para ver!

No mesmo time

Recebi um vídeo da querida Nair Suzuki, na semana passada. É um discurso do ex-presidente Barack Obama sobre eleição e democracia. Ele comenta o resultado da disputa presidencial norte-americana, no contexto da derrota de Hillary Clinton para Donald Trump. O momento era constrangedor para os democratas e penoso para o presidente, que não conseguiu fazer a sucessora. Obama estava sereno, porém.

São menos de dois minutos, que cabem todinhos no atual momento, no nosso contexto e nas circunstâncias em que transcorre a eleição brasileira. Há pelo menos duas passagens marcantes. Na primeira, Obama diz que, se derrotados, devemos seguir em frente, “com a presunção de boa fé em nosso povo”. Tal presunção, garante, é essencial para o funcionamento da democracia.

Por aqui, à direita e à esquerda, temos o hábito de culpar o eleitor – ou seja, o povo – por escolhas que julgamos erradas. Às vezes, lamentam os destros, são os nordestinos, pobres e pouco instruídos, que erram induzidos por gente que só tem olhos para as benesses do poder, os cargos nas estatais, as vantagens da Lei Rouanet. Outras vezes, vomitam os canhotos, é a classe média tonta que cai na conversa mole das elites econômicas, e vota em políticos interessados em perpetuar privilégios, a favor dos ricos e contra os pobres.

Na cabeça dos perdedores, de um lado e de outro, é impenetrável a ideia de que existe alguma sinceridade a orientar o voto popular e a dirigir o resultado das urnas. Os que se julgam perfilados com o “bem” acham inacreditável o eleitor preferir representantes do “mal”, naturalmente os seus adversários.

Nossos queridos derrotados nem temem o ridículo, quando difundem explicações para seus fracassos. A terceirização da culpa de forma recorrente aponta para o inocente cidadão, que apenas exerceu seu direito inalienável de escolher.

Essa imbecilidade quase sempre vem acompanhada de denúncias de fraude eleitoral e de queixas de golpe contra as instituições. Inconformismo total, a partir do qual decorrem incompreensão, preconceito, raiva e ódio, muito ódio, para despejar em conversas de botequim, posts, textos para a mídia, teses acadêmicas, discursos inflamados nas tribunas dos parlamentos.

É que essa gente, além do mais, descrê dos benefícios da alternância no poder. Um dirigente tucano chegou a prever, após a primeira eleição de FHC, uma permanência mínima de 24 anos (se bem me lembro) do PSDB no Palácio do Planalto. O reinado, porém, durou um terço do previsto. Já os sucessores petistas fizeram projeções ainda mais duradouras. Puseram fé, e talvez ainda ponham, na eternidade. O sonho acabou com Dilma, e Lula foi parar na cadeia.

Pessoalmente, desde minha primeira experiência de escolher um presidente, tenho alternado alegrias e decepções, sem deixar de acreditar que o voto é o grande instrumento da democracia. Quando Collor foi eleito, para desgosto de quem “oPTou” pelo “Lula-lá”, não senti na ressaca a sensação de fim de mundo. E achei o impeachment precipitado, por entender que errar faz parte do aprendizado do eleitor, tanto quando sofrer as consequências até o fim.

Hoje, não pressinto igualmente o fim do mundo, embora me sinta em situação ainda pior do que aquela de trinta anos atrás. Naquela eleição, opunham-se também dois polos, mas eu tinha uma esperança, quase certeza, de que existia um lado melhor para o País. Agora, não. As alternativas que restaram são igualmente funestas, pelo que representam de retrocesso no rumo do totalitarismo.

Uma opção remete ao passado tirânico e cruel, feito de sangue e da supressão dos direitos e garantias individuais. Além do que, pela carência de projeto do seu candidato, alimenta suspeitas sérias de ameaçar a democracia.

A outra conduz a um tempo que mal passou, e continua oprimindo os brasileiros com suas maléficas consequências sociais, políticas e econômicas. Obra das  malas artes de uma facção determinada a não apenas recuperar o governo, mas a tomar o poder absoluto, no dizer de um de seus próceres. Não existe golpe mais anunciado.

É aí que entra o segundo trecho notável do discurso de Obama. No fim do vídeo, comparando a disputa político-eleitoral a uma corrida de revezamento, na qual se ganha e se perde, ele ensina: “Você pega o bastão e corre o melhor que puder, com a esperança de que, quando for a hora de passar o bastão, você esteja um pouco à frente, você teve progresso. Eu posso dizer que nós fizemos isso. Eu quero garantir que a passagem do bastão seja bem executada, porque acima de tudo estamos todos no mesmo time”.

Estamos todos no mesmo time. Por aqui, qualquer que seja o resultado das urnas do próximo domingo, vencedores e derrotados, nosso melhor destino será continuar correndo na mesma direção. Persistir na busca dos objetivos comuns de povo e nação. Seguir defendendo as mesmas cores.