Palavra de Rei: ele sou eu!

Foi mais ou menos por esta época. Minutos finais de Santos e Guarani, na Vila, no início do ano mágico de 2002. Mágico? Quem sabe das coisas entende. O repórter de campo da TV anuncia uma substituição no Santos e a câmara mostra o magrela saltitante na beira do gramado. Não é possível! A semelhança só pode nascer da minha enorme vontade de ver algo pelo menos parecido em campo. Do nosso lado, do lado branco, é claro.

O juiz custa a autorizar a mudança, de modo que a TV pode mostrar um pouco mais o garoto, quase criança, olhar ansioso acompanhando a trajetória da bola.

Foi a primeira vez que vi Robinho. Nos minutos seguintes, quem estava ansioso era eu. Havia algo ainda mais inebriante a formar, tornar inescapável até, a comparação herética. Não é possível! As mesmas passadas rápidas, a disparada com a bola em direção ao adversário, o drible vertical, sempre no rumo do gol. Mas o jogo acabou cedo demais para outras constatações.

Dias depois, a imagem repetida na mesma Vila Belmiro. Santos versus São Paulo perto do fim. Por duas vezes, estivemos à frente no placar. Por duas vezes, o atacante tricolor França foi lá e empatou. O Santos parece sem forças de continuar buscando a vitória, quando Robinho entra de novo no gramado, com a mesma sem-cerimônia, o mesmo futebol abusado.

Tempo regulamentar esgotado, lá vai ele pela esquerda, da linha lateral em direção à área. Beletti, o defensor são-paulino, pensa que vai tomar o drible pela direita, mas toma pelo outro lado. Vencido, passa a rasteira e se garante ainda mais agarrando o serelepe pela cintura. O importante do lance acaba aí, com os dois jogadores rolando na grama. Depois, Diego cobrará a falta e o zagueiro Preto desviará de cabeça, deslocando o goleiro Rogério Ceni e assinalando a nossa vitória. Nada relevante. Apenas mais um gol, apenas outra vitória.

Eu estava maravilhado com o drible, e a imagem do raio não me saía da cabeça. Liguei o computador e escrevi aos amigos do grupo virtual: parece que o raio caiu de novo no mesmo lugar. No total, na soma das duas partidas, haviam sido uns 15 minutos de Robinho em campo, mas não tive dúvidas em apostar: temos um pelezinho.

O veredito seria repetido, meses depois, na maravilhosa crônica do colorado Luís Fernando Veríssimo sobre a nossa conquista do campeonato brasileiro. “Parem as buscas”, decretou o escritor gaúcho. “O sucessor já foi encontrado, na mesma Vila Belmiro.” Veríssimo também citou o raio e usou como definitivo o vaticínio feito pelo próprio Pelé, anos antes, ao cruzar com o adolescente Robinho no CT do Peixe: “Ele sou eu”.

Mensagem que certamente não terá resposta da Globo

Senhores,

Há muitos anos sou assinante dos canais pagos do sistema Globo de televisão. Das TVs por assinatura, sou três vezes assinante, em São Paulo, Itupeva e Santos. Igualmente há bem mais de uma década, tenho duas assinaturas (São Paulo e Itupeva) dos canais Première, que transmitem ao vivo os jogos dos campeonatos paulista e brasileiro. Sou torcedor do Santos FC.

De uns tempos para cá, tenho o desprazer de perceber que os jogos do meu time são praticamente ignorados no canal aberto da Globo, que detém a exclusividade das transmissões dos dois campeonatos. Mais recentemente, também os canais SporTV passaram a excluir os jogos do Santos FC. Para ver o Peixe, vou regularmente à Vila Belmiro e ao Pacaembu. Para vê-lo em locais mais distantes, a opção foi assinar o Première.

Os canais SporTV chegam ao cúmulo de sequer reprisar o Santos. Torcedor gosta de ver seu time ao vivo, e também nas reprises. Esse prazer o sistema Globo não oferece aos assinantes santistas. Ao longo do ano, cansei de ver todos os times sendo reprisados, não uma, mas até dezenas de vezes em poucos dias, incluindo as partidas da segunda divisão. Do Peixe, nada!

Recentemente, descobri que o canal 221 Première costuma reprisar os jogos da semana. Nele, não seria possível excluir o Santos. Pelo menos, era nisso que eu ingenuamente acreditava. Até cair na real na última terça-feira, dia 09/12/2019. Da forma mais inacreditável, pude ver que até nos canais que o assinante paga diretamente para ver seu time, a Globo favorece algumas torcidas e desrespeita outras. No caso, a do Santos.

Domingo, não pude ir a Santos ver o último jogo do campeonato. Compromisso pessoal também me impediu de ver na TV. De madrugada, o jogo foi reprisado uma vez no Première, mas o sono me venceu. Não me incomodei e, a partir da segunda-feira, passei a procurar nova reprise. Mas o canal havia resolvido fazer justa homenagem ao time campeão brasileiro de 2019, reprisando em sequência todos os seus jogos. Tudo bem! Era só ter paciência e esperar pelo 38° jogo, o último, justamente o do Santos contra o Flamengo, na Vila Belmiro.

De vez em quando, eu ia ao 221 e conferia em que altura do campeonato estávamos. No fim da tarde daquela terça-feira, o jogo que estava passando era a goleada do Flamengo sobre o Goiás, o 37° do Brasileiro 2019. Em seguida, animei-me, viria a partida que eu tanto aguardava: Santos x Flamengo, na Vila. E era isso que anunciava o rodapé da tela da TV: depois de Flamengo e Goiás, viria Santos x Flamengo, encerrando o campeonato.

Apesar disso, o jogo que entrou foi Flamengo x Santos, o 19°, no Maracanã, no primeiro turno, que terminou com vitória apertada do time carioca. Sem acreditar no que estava vendo, voltei ao rodapé para conferir: Santos x Flamengo era o jogo que deveria estar sendo exibido. Por coincidência, a partida em que o Flamengo sofreu sua maior goleada: 4 a 0 para o Peixe.

Me senti um otário. Eu pago a assinatura para ser desrespeitado desse jeito pela emissora? Não só eu, mas todos os torcedores do Santos fomos desrespeitados. Mais ainda: todos os assinantes tiveram seus direitos fraudados pela emissora.

A atitude aparentemente banal significou muito mais, porém. Foi de fato uma desonestidade. A Globo sentiu-se no direito de reescrever a história do campeonato, ao eliminar de sua grade o jogo número 38 de Flamengo e Santos. Para ela, a goleada santista não aconteceu.

Como os senhores explicam essa vergonha? Duvido que consigam, pois não há explicação possível para uma atitude tão mesquinha e desonesta. Foi lamentável mesmo para os padrões da emissora, que acha normal torcer descaradamente por um clube, em detrimento dos demais, e escalar para a cobertura da final da Libertadores ex-jogadores ligados ao Flamengo e profissionais reconhecidamente torcedores do time carioca.

Esta mensagem é apenas um desabafo, pois não espero qualquer reconhecimento da parcialidade que orienta o trabalho de vocês. Só espero que esse monopólio daninho ao futebol brasileiro acabe em breve.

Atenciosamente,,

(Na verdade, fiz uma tentativa de enviar esta mensagem para a emissora. Não sei se consegui. apesar de todo o questionário que tive de responder)

“Couto, tu é foda”

Coutinho levou a dupla de zaga chilena para a entrada da área, quando Lima e Pelé iniciaram o contra-ataque, ainda no meio de campo. Pelé tocou para Lima e saiu em velocidade pela meia direita. Coutinho, lá na frente, voltou alguns metros, cercado pelos dois beques, e chamou o passe. Lima percebeu a movimentação do companheiro e lançou. Foi na verdade um chute, forte e rasteiro, numa distância de quase trinta metros. O centroavante desviou a bola com o lado de dentro do pé direito, para a esquerda da defesa adversária, e saiu pelo outro lado, de novo levando junto os marcadores.

Além de Rei, Pelé também era chamado de Fera, quando iniciava suas arrancadas mortais. Naqueles dias mesmo, em Santiago, onde o Santos disputava mais um torneio de verão, um hexagonal com a participação dos três maiores times chilenos da época, mais América do México e Dínamo de Zagreb, a agência de uma distribuidora de combustíveis gravou com ele alguns comerciais baseados no símbolo da empresa, a pantera. A imagem era perfeita.

Alguns companheiros não gostavam do que consideravam privilégios concedidos pelo Santos a Pelé. Entre eles, a autorização para deixar o hotel e ir ganhar alguns trocados com publicidade. Um dos descontentes era o capitão Carlos Alberto Torres. No início de um treino, ele pediu a palavra ao técnico Antoninho Fernandes e cobrou mais empenho e envolvimento dos companheiros. De fato, o Peixe havia começado mal o torneio, com uma derrota (Colo-Colo) e um empate (Dínamo). O lateral lembrou que era ano de Copa e o futebol brasileiro já não assustava tanto os adversários. Era janeiro de 1970, e a advertência parecia dirigida a Pelé.

Alcançado o milésimo gol, dois meses antes, o Rei não parecia muito animado em disputar partidas sem importância. Mesmo assim, marcou oito vezes em cinco rodadas do torneio chileno, duas no jogo final, que deu o título ao Peixe, contra o Universidade Católica, batida por 3 a 2 na noite de 7 de fevereiro de 1970, sábado de carnaval. Coutinho fez o outro gol santista, possivelmente o último com a camisa branca. O mais espetacular, no entanto, foi o passe para um dos tentos de Pelé, que comecei a descrever acima.

Mesmo desmotivada, a Fera não resistiu ao passe tão açucarado, como diziam os locutores da época (eu preferia o interminável magistraaaaalllll gol de Pelé, de Edson Leite, para mim o melhor narrador da Copa da Suécia). Nem o Rei nem a bola precisaram acelerar ou reduzir a velocidade. Encontraram-se naturalmente já dentro da área da Católica, e Pelé encheu o pé. Com tanta força, que acompanhou deslizando de peixinho pela grama a trajetória da pelota até dentro do gol. Atônito, o goleiro só pode ver com o rabo do olho aquela dupla invasão de sua meta e de sua privacidade.

Coutinho nem se deu ao trabalho de verificar o desfecho do lance, no qual teve participação decisiva. Passou correndo pela frente do fotógrafo, na direção oposta àquela em que seus companheiros amontoavam-se em comemoração. Fazia cara de mau e gritava: “Couto, tu é foda”, caprichando na concordância vigente na cidade que adotara antes de fazer 15 anos. O centroavante não era muito chegado a reverências e, embora participasse com a mesma alegria das comemorações do ataque de sonho, às vezes preferia o recolhimento.

O líder que ensinou o Brasil a vencer

Foi o capitão Zito quem acabou com o nosso complexo de “vira-latas” e nos mostrou que era possível jogar bonito e não perder.

O mano Márcio Fonseca diante da estátua do eterno capitão, na saída da Vila Belmiro, dia 2 de maio de 2019, após Santos 2 a 1 Fluminense

 

Quem conhece a história do futebol defende a tese – verdadeira, inquestionável – de que o Santos de 1962-1963, com sua formação clássica (Gilmar, Lima, Mauro, Calvet e Dalmo; Zito e Mengálvio; Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe) foi o maior time de todos os tempos. De fato, naquele período, o Peixe ganhou todos os títulos possíveis, bateu as maiores equipes europeias e sul-americanas e aplicou a mais sensacional série de goleadas por onde passou.

Foi um momento mágico do futebol mundial em que se demonstrou ser possível unir a eficácia ao espetáculo. O show ao resultado. O Santos não apenas jogava bonito, como nenhum outro time jogou antes ou jogaria depois, mas também ganhava as competições que disputava.

A seleção brasileira teve um momento assim, quatro anos antes, na Suécia. Ao conquistar sua primeira Copa do Mundo, os brasileiros aplicaram históricas goleadas contra seus adversários na semifinal, diante da fortíssima França, e na final, contra a equipe anfitriã.

Para quem acha que uma coisa (a arte) leva necessariamente à outra (a conquista), os desmentidos são inúmeros: a fantástica seleção húngara de 1954, batida na final da Copa pelos alemães; a revolucionária Holanda de Rinus Michels, que maravilhou o mundo em 1974, mas perdeu o Mundial para a mesma Alemanha; e o Brasil de 1982, bonitinho mas ordinário. Os exemplos contrários – dos times sem charme, mas vencedores – também são inúmeros, mas fiquemos com dois: a já citada Alemanha de 1954 e o Brasil de 1994.

Tudo isso para falar da minha tese: se Pelé foi o maior jogador de futebol de todos os tempos, Zito foi o mais importante. É claro que a segunda afirmação não é tão fácil de sustentar quanto a primeira. Mas também tenho meus argumentos, a começar pelo fato de serem esses dois jogadores o traço de união entre as duas equipes: o Brasil campeão do mundo de 1958 e o Santos ganhador de tudo, em 1962 e 1963. Nesses dois inigualáveis times, Pelé era o talento e a genialidade, e Zito, o grande condutor.

O dramaturgo Nélson Rodrigues criou uma imagem para explicar a razão pela qual, até 1958, o Brasil jogava bonito e não ganhava nada. Aqui mesmo, no cone sul da América, éramos fregueses de caderneta de argentinos e uruguaios. Para o escritor, sofríamos do insuperável complexo de “vira-latas”.

Pois bem. Quem mudou essa história foi o nosso Zito. Foi ele que transformou um time de província, o Santos, no melhor e mais forte de São Paulo, do Brasil e do mundo. E foi ele quem deu caráter e personalidade a uma seleção até então comandada no campo por remanescentes dos fracassos de 1950 e 1954, como Nílton Santos e Didi.

Zito foi a grande diferença de 1958. Foi ele que mostrou aos companheiros que, além de jogar bem, poderiam ser vitoriosos. Não precisavam perder sempre. Zito odiava perder e, em toda a sua carreira, perdeu muito pouco.

O ponto de vista carioca, que continua prevalecendo na crônica esportiva brasileira, perpetua a imagem dos antigos craques da geração perdedora e relega ao esquecimento o nosso grande capitão. Aquele que na seleção não levantou formalmente qualquer das taças, mas ergueu a nossa cabeça.

Pelé sobre o menino Robinho: Ele sou eu!

Minutos finais de Santos e Guarani, na Vila, no início de 2002. O repórter de campo da TV anuncia uma substituição no Peixe e a câmara mostra o magrela saltitante na beira do gramado. Não é possível! A semelhança só pode nascer da minha enorme vontade de ver algo pelo menos parecido em campo. Do nosso lado, do lado branco, é claro. O juiz custa a autorizar a mudança, de modo que a TV pode mostrar um pouco mais do garoto, quase criança, olhar ansioso acompanhando a trajetória da bola.

Foi a primeira vez que vi Robinho. Nos minutos seguintes, quem estava ansioso era eu. Havia algo ainda mais inquietante a formar, tornar inescapável até, a comparação herética. Não é possível! As mesmas passadas rápidas, a disparada com a bola em direção ao adversário, o drible vertical, sempre no rumo do gol. Mas o jogo acabou cedo demais para outras constatações.

Dias depois, a imagem repetida. Santos versus São Paulo perto do fim. Por duas vezes, estivemos à frente no placar. Por duas vezes, o atacante tricolor França foi lá e empatou. O Santos parece sem forças de continuar buscando a vitória, quando Robinho entra de novo no gramado, com a mesma sem-cerimônia, o mesmo futebol abusado.

Tempo regulamentar esgotado, lá vai ele pela esquerda, da linha lateral em direção à área. Beletti, o zagueiro são-paulino, pensa que vai tomar o drible pela direita, mas toma pelo outro lado. Vencido, passa a rasteira e se garante ainda mais agarrando o serelepe pela cintura. O importante do lance acaba aí, com os dois jogadores rolando na grama. Depois, Diego cobrará a falta e o zagueiro Preto desviará de cabeça, deslocando o goleiro Rogério Ceni e assinalando a nossa vitória. Nada relevante. Apenas mais um gol, apenas outra vitória.

Eu estava maravilhado é com o drible anterior, e a imagem do raio não me saía da cabeça. Liguei o computador e escrevi aos amigos: parece que o raio caiu de novo no mesmo lugar. No total, na soma das duas partidas, haviam sido apenas uns 15 minutos de Robinho em campo, maso momento mágico me fez apostar: temos um pelezinho.

O veredito seria repetido, meses depois, na maravilhosa crônica do colorado Luís Fernando Veríssimo sobre a nossa conquista do campeonato brasileiro. “Parem as buscas”, decretou o escritor gaúcho. “O sucessor já foi encontrado, na mesma Vila Belmiro.” Veríssimo também citou o raio e usou como definitivo o vaticínio feito pelo próprio Pelé, anos antes, ao cruzar com o adolescente Robinho no CT do Peixe: “Ele sou eu!”

Meninos da Vila, o nosso maior ativo

Junto com a história incomparável, escrita em mais de um século por centenas de craques, a marca Meninos da Vila é hoje o maior ativo do nosso clube. Infelizmente, o patrimônio físico – composto de um estádio charmoso e histórico, mas decadente, e de dois acanhados centros de treinamento – pouco valor agrega à marca. Não coloca o Santos na primeira linha do futebol, por essa avaliação.

O time também não assegura estabilidade financeira ao Peixe, na medida em que seu nível de competitividade há tempos se mantém abaixo da média, mesmo no concerto nacional. O resultado é que desaparecem os títulos (nos primeiros doze anos deste século, ou seja, até seis anos atrás, éramos o time mais vitorioso do futebol brasileiro) e a torcida some dos estádios.

O fenômeno negativo solapa outros dois potenciais de arrecadação: a ampliação do quadro associativo e o faturamento das bilheterias. Do que decorrem, ainda, perdas significativas na atração de parcerias e patrocínios e na participação no rateio das cotas de TV.

Transformar a história em ativo gerador de ganhos econômicos para o clube, embora obrigatória no caso da grandeza do Peixe, é tarefa difícil, quase impossível quando não se tem um marketing eficaz. Na verdade, esse bicho é coisa estranha nas bandas da Vila. O departamento só funciona de forma reativa, mal e mal aproveitando as oportunidades que se apresentam, ao sabor do desempenho do time de futebol e do surgimento de novas estrelas.

Resta o caminho mais fácil e seguro de investir na formação de novos talentos, aperfeiçoando nossa expertise no setor e aproveitando a justa fama que conquistamos de clube formador de jogadores. Temos reconhecimento mundial. Nossas divisões de base recebem observação de olheiros dos principais mercados do futebol. Mas a nossa produção é, digamos, artesanal. É quase um milagre que, vez ou outra, surja um Robinho, um Neymar.

Não tenho a mínima dúvida em defender que, hoje, o maior investimento do clube deveria ser feito na base. Na estrutura de atração, recepção, preparação e revelação de jovens talentos. O que inclui a construção de um moderno e amplo centro de treinamento, a montagem de equipes multidisciplinares para cuidar da formação dos garotos e a estruturação de um trabalho técnico integrado ao elenco profissional.

O Santos sempre foi campeão contando com a força de suas revelações. Essa trajetória, iniciada com os jovens fundadores do clube, intensificou-se nos tempos de Athié, Lula e Antoninho Fernandes, ganhou impulso com Chico Formiga e o time moleque de 1978 e consolidou-se com Pelé/Samir e a instalação do primeiro CT do clube, no bairro do Jabaquara, onde a presença do capitão Zito era fundamental.

Nas últimas gestões, a partir de Roma, a receita foi esquecida. A presença de um agente de jogadores como conselheiro da presidência dirigiu o clube para o mercado externo, com resultados trágicos, tanto técnica quanto economicamente. Atentado pior sofreu o trabalho de base do clube, que foi praticamente abandonado. Nossos times do sub 20 para baixo sofreram um processo de enfraquecimento que se reflete até hoje nas fracassadas participações em torneios nacionais e internacionais e na carência de revelações para abastecer o time principal.

A diretoria atual, embora sem ter um empresário para chamar de seu, também insistiu na busca de reposições estrangeiras para o time principal (nada contra a eventual contratação de jogadores no mercado sul-americano, desde que essa não seja a política e a prioridade) e continuou errando no trabalho dirigido às equipes menores. Estamos ficando para trás, rapidamente superados não só pelos rivais tradicionais do sul e de Minas, mas também por clubes de menor tradição. Que 2019 represente um reinício para os Meninos da Vila.

A astúcia sorrateira de Cláudio Adão

Na fase final do campeonato paulista de 1975, o primeiro disputado pelo Santos após a era Pelé, aconteceu uma inédita rodada tripla no Morumbi, reunindo os seis clubes que disputavam o título do segundo turno. Corinthians e América de Rio Preto jogaram com o sol ainda brilhando e a segunda preliminar – São Paulo x Palmeiras – aconteceu já com a luz dos refletores. Por fim, o jogo de fundo: Peixe x Portuguesa de Desportos.

Conhecidos os resultados das partidas anteriores, a Lusa entrou em campo interessada no empate, que a manteria em primeiro lugar (só o campeão desse hexagonal iria para a decisão do título contra o São Paulo, vencedor do primeiro turno), com vantagem no saldo de gols sobre o próprio Santos. Por isso, tratou de tocar a bola e fazer o tempo passar. Antes de partir para o desespero do ataque total, no segundo tempo, os santistas ainda tentaram atrair o adversário para o seu campo, procurando abrir a retranca lusa.

Nosso time já não tinha a força dos anos anteriores, mas no comando do ataque havia Cláudio Adão, pelo segundo ano consecutivo artilheiro santista. Natural de Volta Redonda, RJ, o centroavante havia sido formado nas categorias de base do Santos e tinha acabado de completar 20 anos. Pelo porte físico, foi para mim a maior esperança de revelarmos um novo Pelé, naqueles tempos em que a inevitável procura mal havia se iniciado.

Como o Rei, Cláudio Adão foi o único atacante que vi disputar bolas pelo alto, de costas para os zagueirões adversários, e voltar ao chão mantendo o equilíbrio para continuar a jogada. Mas não era só o físico. Havia também o chamado “faro de gol”, e uma inteligência muito acima da média. Esta última qualidade estava prestes a ser demonstrada, quando se aproximava dos 20 minutos o jogo chato do Morumbi, entre uma Portuguesa que não queria ganhar e um Santos que ainda esperava o momento certo de atacar. O empate sem gols permaneceria até o fim, mas houve o momento mágico de Cláudio Adão.

A Lusa tinha um líder incontestável no meio de campo. Era Badeco, volante alto e técnico, que determinava o ritmo da partida. Desde o início, ele segurava a bola, tocava de um lado para o outro, procurava as zonas mortas do campo. De vez em quando, chegava perto da linha central do gramado, mas não invadia o espaço santista. Parava nas imediações do grande círculo, voltava um pouco e, lá de longe, atrasava a bola para as mãos do goleiro (manobra que as regras do futebol ainda permitiam).

Era a clássica “cera”, que Badeco não teve vergonha de fazer três vezes, na última tão tranquilo que nem se deu ao trabalho de olhar para trás. A bola já havia saído de seus pés quando percebeu, alarmado, que entre ele e o goleiro Zecão, Cláudio Adão estava sorrateiramente colocado, perto da meia lua da área lusa. O gol só não saiu porque Zecão – o primeiro em todo o estádio a perceber a astúcia do santista – conseguiu chegar junto e atrapalhou a conclusão do lance.

A Portuguesa foi para a decisão contra o São Paulo e, depois de uma vitória para cada lado, repetiu o fiasco de dois anos antes na cobrança de pênaltis. Errou as três primeiras cobranças, o juiz fez as contas certas e não houve divisão de título, como em 1973, quando tivemos de dar metade da taça para eles, por conta da incompetência do Armando Marques. No ano seguinte, já sem Cláudio Adão que havia quebrado a perna num choque com o goleiro do América, em Rio Preto, o Santos nem se classificou para o segundo turno.

Giovanni dá o bote, pobre zagueiro!

Há tantos lances inesquecíveis, num tempo que recua das oito pedaladas de Robinho até o chute cruzado de Dorval, que vence Valdir de Moraes e derrota o Palmeiras no domingo perdido da década de 60, na Vila lotada. Há tantos momentos mágicos em cada tabelinha de Pelé e Coutinho, nas bombas do Pepe, nas sutilezas do Pagão e na astúcia de Giovanni preparando o bote sobre o incauto zagueiro fluminense. Todas essas jogadas resultarão em gols, muitos deles decisivos, e serão contadas e recontadas ao gosto do narrador. Eu, por exemplo, sou capaz de descer da tribuna de imprensa do Pacaembu, naquela tarde de dezembro de 1995, para me colocar ora na pele do infeliz tricolor ora na mente do nosso outro 10 de ouro.

Como o tricolor Alê, corro em direção à bola que rola macia pela grama, na zona morta do campo, em direção à linha de fundo. Corro, olho para a direita e vejo um único adversário, lento e distante, perto da linha central. Trato de chegar rápido só para garantir o domínio da bola com tempo e espaço para sair jogando. Pronto. Tudo sob controle.

Mas agora sou Giovanni e me aproximo ainda sem pressa. Quero que o adversário me veja e pense que vou cercá-lo de longe, inofensivo.

Volto a ser Alê. Verifico mais uma vez se o santista insiste ou desiste. Beleza. O cara só continua na minha direção por dever de ofício. Desse jeito, não chegará nunca. Dá pra sair pelo meio, pro lado do pé bom, e decidir com calma o que fazer.

De novo Giovanni, acelero as passadas. O infeliz vai me olhar de novo, girando a cabeça sobre o ombro esquerdo, mas será tarde. Já estarei passando pela direita e roubando-lhe a bola. Ele ainda tentará entender o que aconteceu, quando eu estiver na área, livre para o passe ou para a finalização. Fim do dilema: Camanducaia se apresenta. É rolar para trás e correr para os abraços.

O CRAQUE

– Ele tem dificuldade com a bola.

– Como assim?

– Não consegue controlar, passar, lançar.

– Entendo.

– Se atrapalha todo. Mata de canela, bate de tornozelo.

– Coitado!

– De longe, o chute sai fraquinho. De perto, sai torto.

– O cara é tosco assim?

– Pior. Não corre, não se movimenta.

– Por que?

– É meio mole, desanimado. Sei lá! Parece doente.

– E o que ele faz na vida?

– Joga num time grande do nosso futebol!

Um foca na epopeia do milésimo

 

Ag. O Globo

O milésimo gol coincide com o início de minha carreira de jornalista. Entrei na Faculdade de Comunicação da Universidade Católica de Santos no começo daquele ano, 1969. Trabalhava no porto e, em julho, graças ao prestígio de meu irmão Ouhydes Fonseca, fiz um curto estágio noturno em A Tribuna. Uma noite acompanhava o repórter de polícia e, na noite seguinte, fazia a ronda dos eventos com o repórter social. Acho que agradei, pois no início de agosto estava contratado para a reportagem geral.

Logo de cara fui escalado para cobrir a posse tardia do interventor militar em Santos. Nomeado em dezembro, na rebarba do AI-5, para ocupar o lugar do prefeito eleito, Esmeraldo Taquínio, cassado pela ditadura, o general que vivia no Rio mandou um ajudante de ordens tomar conta da cidade. Só oito meses depois foi assumir o cargo.

Eu faria o factual da cerimônia de posse, enquanto o colega Antônio Tadeu Afonso, mais experiente, entrevistaria o interventor e faria os bastidores políticos. Informado de que o general não falaria com a imprensa, Tadeu voltou indignado para a redação e eu fiquei sozinho, cuidando da principal cobertura do dia. Era repórter há menos de uma semana.

Mas o meu interesse era trabalhar no esporte e, tão logo surgiu uma vaga na editoria, em outubro, já estava transferido, a pedido do editor de esportes. Dez de outubro, no Pacaembu, acompanhei o saudoso Ary Fortes, e cobri meu primeiro Corinthians e Santos.

Noite duplamente trágica. No intervalo, o serviço de som do estádio anunciou a captura e morte de Carlos Marighela pelas forças da repressão, não muito longe dali, na Alameda Casa Branca. E o Peixe perdeu de 4 a 0. Começava então o único período da vida em que não torci pelo meu time.

Procurei ser tão isento no trabalho que, em dois anos, fui expulso da Vila pela diretoria da época. Semanas depois, embora mantido pelo jornal como setorista do Santos, preferi mudar o rumo de minha carreira. Abandonei o jornalismo esportivo e voltei a ser Peixe.

O jogo daquela noite fazia parte do planejamento do jornal para o cobertura do milésimo gol do Rei, cuja contagem regressiva avançava rapidamente. Por conta da efeméride, acompanhei o Santos no Maracanã (goleada sobre o Flamengo), em Recife e em Salvador. Entretanto, quando o time voltou ao Rio para enfrentar o Vasco, o jornal preferiu não mandar sua equipe de jornalistas, por economia.

Foi a noite do milésimo, do vamos olhar pelas criancinhas, do love, love, love do Caetano, e de uma história que o mundo conhece.