O Santos é o time do céu. Mas o tinhoso vive ciscando na Vila

Durante dois meses, de maio a junho de 2004, o extinto Portal do Santista Roxo revelou um personagem de ficção, em textos atribuídos a um certo Argemiro da Veiga, que assinava a coluna “Tesoura afiada” e se dizia dono de uma barbearia no Macuco, bairro popular de Santos, próximo ao porto. Ali, uma freguesia variada discutia futebol, especialmente o Peixe. Nos comentários anotados pelo barbeiro, destacavam-se as observações do portuário aposentado Nicácio Silva Pinto. Mas logo o velho ranzinza morreu, no mesmo dia em que Diego partiu para Portugal, e a coluna parou. Ano e meio depois, em janeiro de 2006, a pedido do editor-chefe do Portal, Arnaldo Hase, Argemiro produziu mais três crônicas, a última delas relatando uma conversa que tivera em sonho com o amigo. Nessa conversa, o falecido dizia que era coisa do diabo a dispensa do craque Giovanni pela parceria Marcelo Teixeira-Vanderlei Luxemburgo. É o texto que se segue.

O Peixe da Mari: um time divino

“Tem o Santos que é coisa daqui de cima, Argemiro, feito à imagem e  semelhança do Criador. Ou você acha que o Robinho surgiu assim, da sabedoria dessa gente aí? Que foi o turco – e você sabe que eu respeitava muito o Athié – quem guiou os passos do menino Pelé de Três Corações até a Vila? Claro que não, meu amigo. Só que também tem o Santos do general Osman, o vice-presidente que certa vez vendeu Coutinho, Corró e meio time do Peixe para um jornalista da Placar, achando que fazia negócio com um empresário do Marrocos. Caiu foi num conto de 1º de abril. Esse Santos é coisa do demo.”

Parecia um sonho ver o Nicácio com o jornal dobrado em cima dos joelhos, sentado na cadeira junto à porta do salão, iluminado pelo fiozinho de sol que atravessava a cortina. A conversa sempre começava daquele jeito, como continuação das notícias que ele tinha acabado de ler na Tribuna, mas vindo de trás pra frente. Da conclusão para os fatos, da moral para a história, do resumo para a ópera. Eu, que conhecia bem o finado, digo, o velho, tratava de conferir com o rabo do olho os assuntos que chamavam a atenção dele, para depois não boiar. Tava na cara que ele ia falar do caso do Giovanni.

Antes de continuar, porém, é importante explicar que foi sonho mesmo, porque eu ainda não dei pra ver fantasmas e todo mundo sabe que o Nicácio morreu, coisa de ano e meio, quando o Diego desamarrou o barco dele do nosso cais e foi pro outro porto. Além do mais, nunca incorporei espírito e nem acredito nisso, que me desculpe dona Matilde, a mulata ali do 47, que diz encarnar um índio velho num terreiro do Golfo. Toda sexta-feira.

De forma que o Nicácio continuou falando, dentro da minha cabeça, enquanto eu dormia, de segunda pra terça. Me entreteve tanto, eu que me agito demais nessas noites quentes de janeiro, que foi uma estirada só, do fim do Big Brother até as seis da manhã. “Acorda, Argemiro. Abre o olho que aí tem coisa … Sol forte na capital da Baixada … Sou Peixe, mas não sou trouxa … ” – ouvi, ou pensei ouvir, antes de pular da cama, ainda sem saber se quem falava era o Nicácio do sonho ou o locutor do rádio.

“O Santos daqui de cima é um time abençoado, que recebe a ajuda divina para resolver as encrencas do pessoal aí de baixo. Mas não é caridade, Miro. Esta turma gosta mesmo do Peixe. Você precisava estar aqui comigo (“eu, heim!”) para ver como a galera se divertiu naquele domingo em que o Robinho e o Leo fizeram gato e sapato dos infelizes, na Vila. Foi 3 a 0, lembra? O Chefe também estava de bom humor, mas no fim do jogo disse uma coisa que me deixou grilado: ‘Aproveitem enquanto é tempo’”.

Aí o Nicácio explicou como é que funciona. O Chefe é Peixe e ponto. Mas tem de ser justo. Não pode ficar favorecendo sempre o time dEle. De vez em quando, deixa a coisa correr frouxa. São aquelas fases tétricas que a gente passa, achando que o Santos de glórias mil (deve estar enturmado com o Plínio Marcos, o velho ranzinza) acabou. O Cara larga a mão só pra dar um gostinho pros que vivem reclamando nas divinas orelhas.

Como o Vicente “benditos os que sofrem” Matheus. “Dizem, porque eu ainda não tinha vindo para cá, que o corintiano fez um escândalo quando viu Robinho e Diego pela primeira vez com as camisas brancas. Justo contra quem? É, isso, naquele 3 a 1 que abriu o mais recente tabu contra o ‘faz-me rir’. Era só um amistoso, mas o marido de dona Marlene pressentiu o que viria pela frente, já que conhece como ninguém as mumunhas de ser um bom freguês do Peixe.”

“Pó! Por que é que Você só leva esses garotos pra Vila? Já não bastava o Pelé, aquele insuportável? E, agora, esses dois meninos?” – bronqueou. A resposta até hoje é lembrada pelos boleiros aqui do céu: “Do que é que você está reclamando, Matheus. Você não viu o tipo que Eu coloquei na Presidência do Nosso clube, digo, do clube deles?”

Mas o Nicácio, que duvida de tudo e nunca aceita explicação simplória, quis saber que história é essa de que Deus não pode ajudar só o Santos, para não ser injusto com os outros? Deus é Deus, pode tudo. Se ele quer, faz e pronto. Conversa daqui, assunta dali, me disse o Nicácio que conseguiu desvendar o mistério.

“Sabe o que é, Miro? Cabeça não é só o lugar por onde as palavras passam, indo da orelha para a boca. Cabeça é pra pensar. Não é para usar que nem esses repórteres que ouvem qualquer coisa e vão correndo transmitir pro povão, se achando muito informados. É por isso que todo dia dizem barbaridades nos jornais, no rádio, na televisão. Furos… n’água. Ou você também acreditou que o Giovanni foi dispensado por que não se encaixa nos planos do Luxemburgo para o Santos?”

Esse era o ponto, mas o Nicácio não falaria do Giovanni. Naquele momento do sonho, ele ainda estava me explicando porque o Homem, que gosta tanto do Santos, não faz logo o time ter sempre os melhores jogadores e ganhar todos os campeonatos. “Se fosse assim, que graça teria? Você não viu o que aconteceu com o Otávio, que papava todas as meninas? Ficou tão fácil que ele acabou mudando de time. Saiu da linha e foi pro gol. Acabou desfilando na Dona Dorotéia com faixa de Rainha da Estiva e tudo o mais.” Tive de concordar com a lógica do falecido, digo do velho.

“Tem que ter emoção, Argemiro. É por isso que, de vez em quando, você vê são-paulino ou corintiano se achando. Palestrino pensando que é mais. Nunca serão, porque isso Ele não vai permitir. No máximo, deixa os caras terem um pouco de alegria, pra depois o sofrimento ser maior e a nossa felicidade, mais completa. O Próprio, contam os hóspedes antigos daqui, percebeu que iria morrer de tédio, se tivesse de passar a eternidade tomando conta do jardim sem pecado. Foi quando teve a ideia genial de transformar o seu melhor assistente no anjo do mal. Inventou o capeta, para animar o pagode aí de baixo.”

“Levanta, Argemiro. Sol forte na capital da Baixada…” Nesse momento, eu acordei e o sonho acabou. Tomei um banho gelado, bebi o café em dois goles e saí andando pro salão com a cara e as palavras do Nicácio rodando na cabeça. Foi assim o dia inteiro, tentando não esquecer nada e querendo voltar logo pra casa pra colocar tudo no papel. De tanto pensar, acho que acabei escrevendo coisas que ele não disse. Culpa daquele filme do poeta que ensina pro carteiro o significado da palavra metáfora.

O Nicácio também era assim, meio poeta, com a prosa cheia de imagens, dando cor ao que dizia. Foi desse jeito que ele me falou do Santos do céu, que nunca vai ser destruído pelo Santos das trevas, porque é o Santos do Antoninho Fernandes e do Zito, do Zeca Balero e do Jair Rodrigues, do Athié e do Urbano, do Rei Pelé e do Pagão, do Torero e do Ary Fortes, do Salu e do Sabuzinho, do Bom Fonseca e da Belas Dolores, do baiano Jonas Lopes e do paraense Frank Siqueira, do Márcio Fonseca e do Zé Lúcio, do Mário Covas e do Eduardo Suplicy, do violeiro Armindo e do sambista Jamelão, do Osvaldo Martins e do professor Sílvio, do Jun e do Rafa, da Bia e da Eliane, do Pepe e do Coutinho, dos Setúbal e dos Bracher, do Lúcio Cardin e do Mauricy Moura, do Luís Álvaro e do Hase, da Jovem e da Sangue e de todos os Fonsecas.

Esse time que é o paraíso dentro dos nossos corações e nos faz aceitar, como pequenas provações da vida, fatos como a dispensa do Giovanni.

Perícia profissa

Agora que Michel Temer é passado e está pronto a ser alcançado pela força tarefa da Lava Jato, vale a pena reconstituir os bastidores de um momento chave da fase final dos governos petistas. Espinafrado pelos ex-aliados, o vice bom de bico tentou aos trancos e barrancos estancar o processo de decomposição do país, herdado da presidente afastada, mas enfrentou a fúria dos velhos amigos. Além disso, incorrigível, manteve o hábito de lambuzar-se com a coisa pública, e se perdeu.

Caiu na armadinha armada dentro da PGR, com a cumplicidade de um promotor público, do diretor jurídico Francisco Assis e Silva e dos donos do grupo empresarial JBS, Joesley e Wesley Batista. A mal ajambrada gravação feita por Joesley com o então presidente, em março de 2017, no Palácio Jaburu, revela na versão oficial que Temer teria estimulado o pistoleiro da proteína animal a calar o deputado Eduardo Cunha mediante propina. “Tem que manter isso, viu?”, disse o presidente, no trecho mais claro da fita. A versão a seguir é pura ficção, mas pode ter a mesma credibilidade.

 

00’00 – Ops, chefia, tem mais um “é” aqui na gravação.

00’03 – Onde? De quem?

00’06 – No meio daqueles três “és” que já tínhamos ouvido. Está entre o segundo e o terceiro “é”, da voz número 2. Na interrupção mais longa, sabe qual?

00’14 – Sei. Dá para cravar que esse “é” também é da voz 2, certo?

00’19 – Não tenho muita certeza, mas… Pode, sim!

00’22 – Então, é isso. Vamos avisar o delegado que já temos a confirmação. O presidente combinou com o delator a propina para comprar o silêncio do deputado.

00’31 – Poxa, tudo isso?

00’33 – Claro, companheiro! É o encadeamento lógico da conversa!

*****

00’00 – Chefia, pesquei mais um “inaudível”. Está bem no começo.

00’04 – E de quem é esse “inaudível”?

00’07 – Não deu para ouvir, hahaha.

(impublicável… silêncio)

00’11 – Desculpe, chefia. Deve ser da voz número 2, porque parece responder ao “boa noite!” da voz número 1.

00’16 – Então, vamos passar para aquele colunista político. Diga a ele que temos mais uma prova da relação íntima do presidente com o delator. Veja como é expressivo, como é caloroso esse “boa noite!”.

00’24 – Mas é um “inaudível”, chefia.

00’27 – É claro que não se ouve direito. Mas nota-se que o presidente é efusivo, é afetuoso com o visitante noturno.

00’33 – Bem… De certa forma… Claro, chefia!

00’38 – O que está esperando? Telefona pro jornalista!

*****

00’00 – Você viu a TV, ontem à noite?

00’03 – Vi sim, chefia!

00’05 – O que achou? Gostou?

00’07 – Aquela parte em que eles falam que comprovamos a cumplicidade do delator com o presidente ficou d+. Digo, demais.

00’14 – Foi muito bom, mesmo!

00’16 – E gostei quando eles disseram que conseguimos provar que o presidente mandou o delator pagar pro deputado ficar calado. Matou a pau!

00’22 – Eu também gostei…  Mas tem um problema!

00’25 – Que problema, chefia?

00’28 – Foi você que fez o relatório da perícia, não foi?

00’30 – Sim, chefia.

00’32 – Pois é! O juiz, o procurador e o delegado gostaram mais do texto da TV. Gostaram tanto que estão pensando em contratar um jornalista desses pra fazer os nossos relatórios.

00’38 – E daí, chefia?

00’40 – Daí que você dançou, companheiro!

O assalto

– Passa a carteira aí, coroa!
Não saio com dinheiro assim tão cedo, garoto.
Coisa de velho esquecido.
Às vezes até preciso de algum para comprar pão.
Mas estou sem. Sabe como é…

– Chega de papo e passa o celular!
Também não trouxe.
Mas você não ia querer, porque é dos antigos.
Só serve pra falar com as minhas filhas, quando consigo.
Estava pensando em comprar um novo, para tirar retrato do neto…

– Porra, velho, nem tênis você usa. Não tem nada pra mim?
Se quiser, pode ficar com os cachorrinhos.
Eu gosto muito deles, mas estão dando uma despesa danada.
É veterinário, banho no pet shop, ração…
Você sabe quanto custa o saco de sete quilos da ração que eles gostam?
Mais de 100 contos. A vida está pela hora da morte!

Ué, cadê o moleque que estava aqui? Sumiu! Também, quem manda eu ficar matracando mais do que a preta do leite? Ele se chateou e nem se despediu. Melhor voltar pra casa, que vem chuva por aí!

Vamos, Nina! Vamos, Chico!

“Isenção” desde a pauta

Reunião de pauta numa redação. Qualquer redação. O chefe de reportagem, um chefe qualquer, levanta o assunto. Vocês viram o que fizeram na reintegração daquele prédio abandonado no centro da cidade? Um absurdo! Puseram a polícia lá, armada até os dentes, para retirar as famílias pacíficas e inocentes. Violência sem sentido!

Alguém recente na equipe tenta defender a operação: Diz que a polícia foi cumprir um mandato judicial e os invasores reagiram com uma tempestade de paus, pedras e objetos diversos, Conversa mole, meu caro, corta um editor. É limpeza de área para a especulação imobiliária.

O pauteiro coloca ordem na conversa. Vamos mandar repórter e fotógrafo para mostrar como ficou o lugar depois da operação policial. Em seguida, a equipe percorre as ruas próximas, por onde o pessoal se dispersou.

Vamos providenciar para que estejam lá nossas fontes de confiança: o padre que lida com população de rua, o pessoal que defende “soluções alternativas”, os técnicos do governo anterior (“que fazia um trabalho admirável, dando moradia e salário para os sem teto!”), um especialista da universidade federal com “visão científica e isenta” do problema, o combativo deputado da oposição, alguém do ministério público e um ou dois representantes dos movimentos sociais.

Estamos tentando encontrar a representante daquela organização internacional que consegue financiamentos europeu para nossas ongs. Ela certamente terá muito o que falar sobre a mudança na política pública para a habitação.

A intervenção é aplaudida. Para jornalistas investigativos e imparciais, as medidas adotadas pelo governo anterior, dependendo do tipo de governo anterior, são sempre melhores do que as do governo atual, dependendo do tipo de governo atual. São melhores sempre, ainda que os problemas persistam e até se agravem. O que vale é a boa intenção.

É melhor recorrer às fontes de sempre, carimba o chefe de reportagem, porque elas têm pontos de vista originais e respeitáveis. Partem do princípio de que a autoridade pública, dependendo do tipo de autoridade pública, é claro, está sempre errada. Sabem o que é melhor para as pessoas e valorizam nossos telejornais. Falam bem e dão boas entrevistas.

Com todos esses cuidados, a cobertura sairá redondinha e a matéria esclarecerá a opinião pública. Sem ruídos perturbadores, como a explicação dos responsáveis pela ação, a opinião dos moradores e comerciantes da região (gente intolerante!), o sentimento dos cidadãos que tiveram seus imóveis desvalorizados pela presença dos invasores do prédio ao lado (problema deles!). Bobagens que, francamente, não interessam! Como crianças de nariz escorrendo, esgoto a céu aberto e índios mal vestidos.

Nem se passará perto da discussão sobre a possível existência de uma indústria da ocupação, ou a respeito da exploração daqueles miseráveis, os invasores, pelos profissionais do setor. Afinal, querem moleza? Querem de graça a luz, a água e a net gatunamente fornecidas? Denúncias infundadas, sabemos, contra pessoas que trabalham pelo bem comum. Papo furado para justificar a desumanidade da ação e encobrir a truculência da polícia.

Pronto! Os telejornais da casa apresentarão matérias edificantes. O telespectador comum ficará um pouco confuso, é certo, sem saber exatamente de que lado estamos. Haverá quem desconfie que defendemos as invasões e o vandalismo, em oposição ao cumprimento da lei. Mas, por outro lado, o lado que interessa, a emissora ficará bem com a inteligência progressista e o pensamento bonzinho.

A teoria da premonição

Esta é uma história que não se conecta à vida real nem se baseia em fatos concretos, embora alguns garantam que aconteceu ou está acontecendo. Ficção, conspiração, profecia? O gênero fica ao gosto do leitor.

 

Era uma vez, no tempo impreciso de uma terra distante, ou no tempo distante de uma terra imprecisa, um jovem advogado aprovado em concurso público para juiz.

(“É golpe!” – grita o coro da fauna corrupta das florestas do lugar. “É golpe!” – repete a gritaria dos pântanos.)

Sérgio Moro, vamos chamar assim o nosso personagem, vive longe das maravilhas do centro do poder. Seu tribunal não usufrui das regalias econômicas e culturais reservadas aos colegas das cortes centrais. Mas Moro é determinado.

(“É golpe!” – assanha-se a turba das profundezas do pré-sal. “É golpe!” – se faz ouvir a proteína animal no abatedouro.)

Na noite da nomeação, Moro não consegue dormir. Um enredo inconcebível insinua-se e bloqueia seu sono. Na fantasia, a grande aventura apenas começa.

De forma imprecisa, ele intui a missão redentora cravada em seu destino. Seria ele o encarregado de enfrentar as forças do mal que infelicitam o reino e seu povo? Sim! Serás nada menos do que isso, Moro!

(“É golpe!” – queixam-se as parasitas nas árvores que sugam. “É golpe!” – junta-se a elas todo o pânico do que está por vir.)

Nisso, um sonho põe fim à vigília e atropela a história, sem respeitar detalhes. A voz tonitruante (como em todo sonho, uma voz vinda não se sabe de onde conduz a narrativa) ordena ao juiz estreante:

– Moro, Moro. Agarra a Operação que te espera e faz dela a razão de teu trabalho e de tua existência. Lave esta terra, ataque a jato os vendilhões do reino!

(“É golpe!” – assanha-se o grasnar das aves negras. “É golpe!” – perfuram a terra as ratazanas em fuga.)

– Imploda a indústria da corrupção, derrube a usurpadora do poder do povo, coloque na cadeia o chefe da quadrilha – vai em frente o vozeirão.

– Siga nessa trilha. Abra caminho para o Messias que virá e serás recompensado. O Príncipe te fará Ministro. Com  c  e   r    t     e      z       a…

A voz silencia. O sol clareia a manhã em Curitiba. Moro já não sabe mais o que é sonho e o que é realidade. Curitiba… Nome estranho esse! Serás Ministro!

Tenta pensar num curto discurso de posse. Ficar na praxe de esperar a colaboração de todos? Falar do trabalhão que teremos pela frente? Ou antecipar o futuro brilhante que a todos aguarda?

(“É golpe! Não disse?” – lamentam os abatidos. “É golpe! Não disse? – praguejam os derrotados.)

Enfim, a paz! Ou não?

Ainda bem que acaba logo, disse Ana Maria Géia. Talvez amanhã, no máximo antes dos finados. Amém, rogo eu, porque aqui em casa e nas proximidades a polarização pegou pesada. Como em toda parte, acho.

Só Nina e Chico, os poodles, não se envolveram. Continuaram brigando pelo lugar ao meu lado na poltrona do vovô, na santa paz dos justos o resto do tempo. Por falar nisso, o netinho Bento, do alto dos seus dois anos e meio, nem deu bola: preferiu continuar consertando bicicletas, brincando de Batman e vendo a Luna.

Entre os demais, jogo duro. Tipo casa de palmeirense e corintiano, sejam quais forem seus gêneros, e ainda mais quando algum “intrusal”, forma a dupla de mais de dois e invade o campo. Aí, a compreensão falece e a intolerância prevalece.

De fato, foi um período triste. Noite dessas, jantando com amigos, a mulher temperava cuidadosamente a salada, quando o marido fez um comentário sobre a quantidade de sal que ela despejava nas folhas. Falávamos de amenidades, mas a observação entornou o caldo, acendeu o estopim da ira, partidarizou irremediavelmente o menu.

“O que você tem contra o sal? Pior é o açúcar, que você consome em doses cavalares. E aquelas ridículas jujubas coloridas e cafonas, que você esconde em casa… Pensa que eu não sei? Não admira que esteja gordo feito um porco!”

Impossível o restaurante não ouvir o edificante diálogo. A nutricionista da mesa vizinha, como ainda chocada explicaria depois, tentou conciliar.  “Sal, açúcar… Vejam bem…” De certa forma, conseguiu unir o casal. “Alguém pediu a tua opinião?”, perguntou cavalheirescamente o marido. “Meta-se com a sua vida“, reforçou com sua melhor fofura a adoradora do sal.

Aproveitando o gancho das jujubas coloridas e cafonas, fiz uma piada sobre o artista Romero Britto, mas ninguém riu. Novidade nenhuma. Sou tão ruim de piada que a Daysi e as meninas às vezes choram, e tenho de explicar palavra por palavra. Entre elas, ganhei o apelido de stand-up comedy sem graça.

Nesse clima, fomos do prato principal ao cafezinho, passando pela sobremesa, que o gordo, só de birra, fez questão de pedir.

O ar ficou irrespirável, como o Torero jamais descreveria. A comida desceu mal, o vinho avinagrou e as pessoas não mais tiraram os olhos da gente. Aliviados saímos do restaurante e nos despedimos deles. Que, adicione-se, voltaram para casa cada um no próprio Uber.

Aqui na família, pelo menos teve voto pra todo candidato e partido. Democraticamente. Consta que Eymael foi sufragado por uma prima muito cristã, morta de pena ao ver o nanico sem tempo na TV e excluído dos debates. Pode-se chamar de “voto piedoso”, pois é com ele que a beata espera ganhar o paraíso.

Só os muito avarentos como eu (avarento ou fascista, como fui meigamente xingado por uns, em contraposição ao ladrão virtualmente escrito nas metafóricas pedras tacadas furibundamente pelos outros), só esses sovinas, dizia, regatearam o voto e tentaram cair fora da cruzada do bem contra o mal. Tolos! Nem assim ficamos imunes. No meio do fogo cruzado, mas com amor e ternura, viramos ratos covardes, na unanimidade dos contendores.

Mas agora, no máximo até os feriados de novembro, as coisas voltarão ao normal. Tudo entrará nos trilhos. O bom é que o país não ficará melhor ou pior com qualquer um dos dois no Alvorada. Mesmo porque (não resisto à maldade), como piorar o que foi feito com tanto capricho nos últimos 16 anos de governos petistas?

E, além disso, voltará a possibilidade de uma pizza com os amigos. De um cineminha, de uma pelada no clube, quem sabe de um fim de semana na pousada da praia, como fazíamos antes do grande cisma. Pensando bem, pode rolar até namoro.

Antes que alguém fale “Bolsonaro”, o abre-te sésamo da discórdia.

O golpe frustrado e a fábula de Matheus

No último sábado de setembro, desci a Serra para participar da assembleia geral dos associados do meu time. Tínhamos a tarefa indesejável de confirmar ou não a destituição do presidente eleito em dezembro. O processo foi autorizado por margem limítrofe no Conselho Deliberativo do clube e resultou de iniciativa de gente ligada ao que há de mais retrógrado e provinciano na política interna do Peixe. Votei contra, é claro.

Entendo que José Carlos Peres, o presidente encrencado, não possui qualificação para comandar o Santos e, muito menos, para conduzir o maior time da história do futebol mundial. Não fui um de seus eleitores e não concordo com seu jeito de administrar o clube. Pelo contrário.

Em nove meses, ele abusou do direito de fazer besteiras, por vezes afrontando de fato os Estatutos Sociais, que são a constituição do clube. Peres também costuma cercar-se de más companhias, talvez por entender que pode manobrar os medíocres com mais facilidade. Foi possivelmente o que imaginou ao unir-se a Orlando Rollo, envolvido nas piores confusões que denegriram o Peixe nos últimos anos e o vice que o trairia menos de dois meses depois da eleição.

Apesar de tudo, ou por falta de tempo, Peres não fez tanto mal ao Peixe quanto seu antecessor, Modesto Roma, que teve as contas reprovadas em dois de seus três anos de mandato. Comenta-se em Santos que, se houvesse vontade política do atual Conselho (presidido por Marcelo Teixeira, patrono das candidaturas Roma), o ex-presidente já teria sido afastado do clube, no mínimo.

De forma que os associados viram-se na condição de ter de escolher entre o feio e o pavoroso. A maioria dos santistas preferiu não apoiar o golpe articulado pela turma do “o Santos é de Santos” e, apesar dos pesares, ficar com o presidente escolhido há poucos meses. Nessa situação, e em “homenagem” às pessoas que têm dirigido o Peixe desde 2015, subi a Serra de volta a São Paulo lembrando uma história que escrevi em dezembro de 2002, logo depois das inesquecíveis pedaladas.

Presente de Natal – O ex-presidente corintiano Vicente Matheus caminha nervoso na ante sala do Criador. Vai de um lado a outro, move as perninhas miúdas e resmunga alto, sem se preocupar se é ou não ouvido. De qualquer forma, pensa, Ele lê até pensamento. Sabe que blasfema, mas não se segura.

– Você é injusto! Não trata os Seus filhos com igualdade. Você tem todo o direito de torcer pro time que quiser. Mas não pode ser assim tão parcial.

Deus, que naqueles dias antes do Natal de 2002 passava as últimas instruções para o Papai Noel chefe, acha graça daquela irritação e pede à secretária:

– Madalena! Mande o Vicente entrar.

O homenzinho muda de humor, diante da audiência não agendada, e até sorri, quando se apresenta ao Todo-Poderoso. Mas logo volta ao ar triste e choroso.

– Desembucha, infeliz, que agora Eu não tenho muito tempo!

Matheus odeia ser chamado de infeliz, mas resiste ao golpe.

– Sabe o que é, Senhor? Nós, corintianos, não aguentamos mais passar humilhações diante daquele time. E tudo por Sua causa, que, não contente em colocar na Vila o Rei do Futebol, agora dá a eles esses dois capetinhas, Robinho e Diego. Você viu o que eles fizeram com a gente na decisão do campeonato brasileiro?

– É claro que Eu vi, sofredor. Eu estava lá! E Me diverti muito com as pedaladas do Robinho. Aliás, você chama os garotos de capetas, mas aquilo não é obra do cara lá de baixo. O rabudo torce pro teu time. Foi coisa de Deus, quero dizer, Minha.

– Pois é justamente com isso que eu não me conformo, Divino. Por que o Senhor, que tudo pode, favorece sempre o Santos? Não podia ter mandado pelo menos um dos dois para o Parque São Jorge?

– Não seja ridículo, Meu bom Vicente! Você acha mesmo que Eu seria capaz de romper, sem falsa modéstia, a maravilhosa harmonia da criação, só para não ter você aqui, chorando na Minha frente? Entenda, de uma vez por todas, que a vida é assim. Tem céu e inferno, alegria e tristeza, vitórias e derrotas. Tem Santos, desculpe, santos e demônios. Tem os que se dão bem e os que se dão mal. Os vencedores e os perdedores.

– Quer dizer, então, que nós estamos condenados a perder sempre, meu Pai?

As lágrimas já escorriam pelas bochechas avermelhadas do marido de Dona Marlene, e Deus, que é Bondade, Misericórdia e Compaixão, resolveu ser também Consolo e Esperança para aquele pobre diabo.

– Acalme-se, meu torturado filho! Enxugue essas lágrimas e ouça o que Eu tenho a lhe dizer. O Santos é o meu time, certo? Mas isso não significa que ele será sempre o vencedor. O que Deus põe, digo, o que Eu ponho, o homem dispõe. Porque é arrogante, orgulhoso e metido. Aquele pessoal da Baixada estava se achando dono da cocada preta. Por isso, foi punido.

– Mas como, Senhor? Com esse time maravilhoso de garotos, que vai durar pelo menos mais dez anos?

– Não, Vicente, punido com os dirigentes que Eu coloco lá na Vila Belmiro. Espere e verá, homem de pouca fé. Em dois tempos, essa gente, uma espécie de oitava praga do Egito, acaba com o time e com o Santos.

– Oba! Então, logo nós seremos maiores do que eles?

– Menos, Vicente! Menos! Aí você já está querendo demais. Ponha-se no seu lugar. E reze três Ave Marias em homenagem a Mamãe.