Passarinhos

O lagarto cinza com manchas amarelas desce rebolando o caminho de terra. Tem cerca de 80 centímetros de comprimento e é um tanto gordo. De repente, para, observa o pequeno barranco coberto de heras e fareja o alimento. Começa a caminhar para lá, quando a passarinha sai das folhagens e pousa, primeiro à direita do bicho de língua comprida. O lagarto vira-se e a passarinha, ligeira, faz um curto voo sobre ele, indo parar do outro lado. Começa a dança. O lagarto olha para a esquerda e a passarinha vai para a direita. O lagarto é lento e a passarinha, ágil. Ficam assim por alguns minutos, até que o lagarto desiste do almoço e retorna pelo mesmo caminho. Missão cumprida! A passarinha volta ao ninho e aos ovinhos.

O passarinho marrom está petrificado, bem no meio da calçada. O homem se aproxima conduzindo dois cachorrinhos, que passam um de cada lado, indiferentes à figura paralisada. Será uma pedra? Uma folha ressecada? Cocô de cachorro grande? Nada que interesse. Aliviado, o bichinho volta às suas tentativas de alcançar as plantas do outro lado do muro, sem perceber que a parte de cima é vidro grosso. Só por isso ele vê aquele verde, que o atrai. O pobre voa, bate e cai de volta. Mas não desiste. Vê ali um refúgio mais seguro do que a calçada. O homem percebe o drama. Recolhe o passarinho e o deposita num galho da pitangueira plantada junto ao meio-fio. Dali, os horizontes serão mais amplos, e o bichinho poderá voar para onde quiser

Primavera / Psicose

Escrevi os versos abaixo em 1962, aos 12 para 13 anos, quando fazia o ginasial no seminário dos padres paulinos, no quilômetro 17,5 da Rodovia Raposo Tavares. O professor de português gostou e disse que mostrou pra mulher, que também gostou. Dei o nome de Primavera, mas depois, quando voltei para Santos, meu irmão Albano disse que Psicose era melhor. E assim foi feito.

E na manhã primaveril do campo,
A flor mais linda dos jardins do mundo
Surgiu-me a mim envolta pelo manto
Do fino orvalho de um amor profundo.

E nela eu descobri tanta beleza,
Toda beleza, o esplendor da vida,
Que o coração tomado de tristeza,
Temi perdê-la, a minha flor querida.

Enlouquecido a destalei do galho.
Assassinada, mas só minha.
E pura

E a derradeira lágrima de orvalho
Rolou-me pela mão que a tem.
Segura

Vlado, 43 anos – Parte II

(continuação)

Terminado o jornal da noite da TV Cultura, na sexta-feira, Vlado despediu-se procurando tranquilizar os companheiros de trabalho: amanhã vou lá, esclareço as coisas e tudo se resolve. Seu único cuidado foi aceitar a companhia do repórter Paulo Nunes, que cobria a área militar para a emissora. Ao chegar em casa, conseguiu acalmar também a mulher, dissuadindo-a de acompanhá-lo na manhã seguinte. Vlado tinha conhecimento da prisão de vários jornalistas nos dias anteriores, conhecia a maioria deles e sabia que seu nome havia sido citado nos interrogatórios, mediante tortura.

Mesmo assim, é pouco provável que se imaginasse seguindo para a morte. Afinal, ocupava alto cargo numa organização estatal, subordinada a um governador (Paulo Egydio Martins) nomeado diretamente pelo general que ocupava o cargo de presidente da República (Ernesto Geisel). Além disso, naquele Brasil ninguém virava síndico de prédio sem que sua folha corrida fosse submetida aos órgãos de informação do governo militar. O nome de Vlado havia sido aprovada pelo SNI. Ninguém se atreveria a maltratá-lo numa dependência oficial do II Exército. Não seria bem assim.

Sérgio Gomes da Silva, o Serjão, aos 25 anos de idade, caiu vinte dias antes, no amanhecer de 5 de outubro, no Largo do Machado, Rio de Janeiro. Tinha acabado de chegar à cidade, depois de viajar a noite inteira de ônibus, e começou a apanhar lá mesmo, na Cidade Maravilhosa. A tortura continuou na viagem de volta a São Paulo e prosseguiu no DOI-CODI, até o dia 28, quando foram liberados todos os jornalistas que continuavam presos. Durante seu depoimento, três anos mais tarde, “todo o tribunal está paralisado, estarrecido, ouvindo o relato daquele jovem que sobreviveu”, conforme nos conta o “Dossiê Herzog – Prisão, tortura e morte no Brasil”, de Fernando Pacheco Jordão.

O procurador da República tenta interromper, alegando que a testemunha fala de sua própria situação, de fatos que nada têm a ver com o processo. Exaltado, o advogado Sérgio Bermudes responde: “É importante, sim, Excelência! É relevante, sim! Porque a testemunha está narrando fatos que demonstram como se tortura, como se mata neste país!”. O juiz João Gomes Martins, que conduz o processo, mas que será impedido de dar a sentença, continua a inquirição de Serjão: “O senhor pode descrever como era esse ‘trono do dragão’?”. “‘Cadeira do dragão’, Excelência”, corrige a testemunha, antes de prosseguir com a narração das atrocidades sofridas.

“… eu tinha de lutar em duas frentes, contra os comunistas e contra os que combatiam os comunistas. Essa é que é a verdade. Eu sabia que a ação do (general) Frota era exagerada, excessiva. Mas não era só o Frota, era sempre o grupo da linha dura”. É o general Ernesto Geisel, quarto presidente do ciclo militar iniciado em 1964, falando a Maria Celina D’Araújo e Celso Castro, pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, numa longa entrevista concedida em diversas sessões entre 1993 e 1994. O resultado foi publicado em livro (Ernesto Geisel, Editora FGV, 1997) e não deixa dúvidas: o general falava em distensão lenta e gradual, mas admite que passou os cinco anos no poder tentando manter as Forças Armadas e o regime sob controle.

Vlado foi preso em meio ao conflito entre o grupo castelista e a chamada “linha dura” do Exército, personificada pelo ministro Sylvio Frota, afinal demitido em 1977. De qualquer forma, Geisel teve de colocar outro linha dura no cargo, o general Bethlem. Na entrevista de Geisel, o período que resulta em centenas de prisões e dezenas de mortes dentro dos aparelhos repressivos ocupa apenas 18 das quase 500 páginas do livro. O capítulo tem o título de Problemas com a linha dura.

Nesse contexto, Vlado vira um caso menor, quando os entrevistadores perguntam se ele aceitou o resultado do inquérito: “É preciso ver o seguinte: o presidente da República não pode passar os dias, ou as semanas, com um probleminha desses. É um probleminha em relação ao conjunto de problemas que ele tem”.

(continua)

Vlado, 43 anos – Parte I

Este texto foi preparado originalmente para a Revista Cult. É republicado aqui com pequenas correções, dividido em três partes, até a semana de 25 de outubro, quando se completam 43 anos do assassinato do jornalista.

Nunca se saberá o quanto de fatalidade concorreu para o desfecho. Nem se, ao contrário, era esse o resultado esperado pelos algozes e seus chefes. Erro de dose ou risco mal calculado? O certo é que naqueles dias de outubro de 1975 a luta que se travava no interior do regime militar encaminhava-se para o ponto de não retorno. O monstro da barbárie, em confronto com seus criadores, tratava de mostrar serviço, num recado para dentro do sistema: ainda havia serviço a fazer.

A resistência armada estava morta e enterrada nas covas do Araguaia e de Perus, ou em alto mar, mas para os zelosos defensores da exceção e do arbítrio, restava o inimigo escondido na defesa das liberdades democráticas e dos direitos e garantias individuais. Tão insidioso, reclamavam, que se infiltrava pelo alto comando das Forças Armadas e chegava à própria cúpula do governo. Manifestos apócrifos circulavam nos quartéis e davam nomes aos bois: Geisel e seu ideólogo Golbery. Era nessa direção que eles agora atiravam. Por isso, as celas cheias e o trabalho incessante no porão.

“Eles chegavam à noite”, contou D. Paulo Evaristo, em entrevista à CULT. E chegavam de preferência no fim da semana, como no cair da tarde da sexta-feira, 24 de outubro de 1975. Dois homens batem na casa da família Herzog, à procura de Vladimir Herzog. “Vlado está na TV”, informa a mulher do jornalista. Os dois homens respondem que seguirão para lá e deixam Clarice preocupada. Ela coloca os dois filhos pequenos no carro e também segue para a TV Cultura, onde o marido trabalhava há menos de dois meses, como diretor de jornalismo.

Free lance para o Vlado? Estranho. Todos sabem que ele não faz e nem tem tempo de pegar serviços extras. Foi isso o que os homens disseram e foi nisso que ela pensou no trajeto até a tevê. Mas a desculpa não foi mantida. Diante do jornalista, os homens anunciam o motivo da visita. Vlado terá de acompanhá-los ao DOI-CODI do II Exército. Estabelece-se uma negociação, com a participação de colegas de redação e da direção da emissora. Fica combinado que a apresentação se dará na manhã seguinte, espontânea, bem cedo.

O juiz federal Márcio José de Moraes tinha 30 anos de idade quando descobriu que havia tortura e morte no Brasil do regime militar. Estava no escritório de advocacia em que trabalhava na época, quando tomou conhecimento pelo jornal da morte do jornalista Vladimir Herzog. Formado pela USP em 1968, ano em que a ditadura baixou o Ato Institucional número 5, ele passou sete anos relutando em acreditar que aquilo acontecesse no País.

“Eu ainda admitia que pudesse haver perseguição política. Mas, na verdade, a tortura e a morte eram coisas que eu tinha dificuldade em acreditar”, lembra Moraes, em entrevista publicada pela Folha de S.Paulo. A revelação foi fulminante. “Eu realmente fiquei chocadíssimo. Não só pela notícia em si. Mas porque ficou absolutamente claro para mim que, na verdade, ele morreu torturado.”

Na sexta-feira seguinte, 31 de outubro, Moraes era uma das 8 mil pessoas que foram à Praça da Sé participar do culto ecumênico em memória do jornalista assassinado. Ainda receoso, conforme admitiu ao jornal, preferiu ficar meio de lado, perto de uma pastelaria. “Se a cavalaria da Polícia Militar invadir a praça da Sé, como se noticiava, eu me ponho aqui dentro da pastelaria e como um pastel.”

Precisamente três anos depois, em outubro de 1978, Moraes deu a sentença do caso Herzog. Responsabilizou o Estado brasileiro. Já não era o advogado assustado, mas um juiz determinado.

(Continua)

Vou regar as plantas

Parabéns e boa sorte aos heroicos combatentes que seguem na luta. Soldado abatido logo na chegada das primeiras hordas inimigas, humilde deponho as armas e me rendo de forma incondicional. Nunca tive filiação partidária, mas procurei ser sempre fiel a princípios e ideais nos embates políticos. Continuo assim. Por isso, não me disponho a participar de uma guerra que se anuncia nojenta e que tentei evitar com meu voto. Ou seja, lavo despudoradamente as mãos.

Minha única preocupação com relação ao segundo turno será entender que postura mais digna adotar no dia 28 de outubro. Votar em branco, anular o voto ou não comparecer. Esse dilema nunca me assaltou, desde que me devolveram o direito de eleger presidente, após a ditadura militar, estreando com a opção por Lula contra Collor. Agora, tornou-se inescapável, diante da escolha que nos restou entre terror e horror.

Até lá, e talvez daqui para sempre, meus refúgios serão a família, as plantinhas de Itupeva e algum jogo do Peixe. Além, é claro, da manutenção deste blog, tão novinho e ainda tão frágil. Tentarei me concentrar principalmente nas memórias. Seletivas, elas tendem a ser muito melhores. Pelo menos, não precisarei tratar dos excrementos que, com afeição, deixo aos cuidados daqueles a quem cumprimentei no início deste texto.

Antes, porém, de me despedir definitivamente do assunto, permitam-me uma avaliação sem qualquer valor ou interesse sócio-político, mas que faço questão de externar. Entre as alternativas restantes, que considero igualmente terríveis, penso que a vitória petista é a pior para o país. Não é declaração de voto, até porque, como já disse, não votarei em nenhum deles. E não é contestação às urnas. Entendo que quem vencer tem de levar, desde que governe exatamente como seus eleitores esperam.

Explico. Se o capitão vencer, dificilmente conseguirá impor ao país suas ideias antiquadas e autoritárias, porque terá na oposição principalmente o PT e aliados à esquerda. E sabemos como essa gente sabe ser do contra. Já o candidato do Lula, se eleito, terá a compreensão da inteligência nacional e internacional para retomar a prática de aparelhamento do governo e para usar as estruturas do Estado como extensões dos seus interesses pessoais e partidários.

Absolvido do mensalão e do petrolão, de todos os desvios de que nunca teve a grandeza de se penitenciar e, também, da desastrosa administração paulistana, no caso direto do alter ego do Lula, o esquema petista estará de mãos livres para de novo lambuzar-se à vontade. Sem que qualquer voz se levante.

Dupla ratoeira

Domingo, vou votar no Geraldo, 45, sem culpa. Será um voto convicto e coerente. Pois não me sinto nem me sentirei responsável pela ratoeira dupla face que se está armando para o segundo turno da eleição presidencial.

De um lado, a “esquerda” utilitária, comandada de dentro da cadeia por um bi condenado. Preso por corrupção, inclusive. De outro, o representante escarrado do mais absurdo obscurantismo e dos tristes tempos da tortura. Horror!

Se durante a ditadura militar fiquei do lado contrário, numa resistência que nada teve de heroica, esclareça-se, por que iria agora apoiar aquela gente estúpida, que cultiva o mesmo sonho de Dirceu. de tomar o poder de assalto? É claro que não colocarei a minha mão nessa cumbuca de podridão e de sangue!

Pela primeira vez desde que me permitiram eleger presidente, e confirmada a polarização tenebrosa que as pesquisas indicam, estarei também diante de três opções: anular o voto, votar em branco ou simplesmente adotar a “abstinência”, como disse uma comentarista da TV.

Para isso, peço ajuda aos universitários. Qual dessas saídas é a menos vergonhosa do ponto de vista da cidadania? Anular, ir de NDA ou me abster?

Sem esperar respostas, penso que vergonha maior seria escolher uma das faces do mesmo autoritarismo predador: o petismo-lulismo corrupto ou o milico-policial sanguinário. É a tal ratoeira com armadilha nas duas pontas.