“Isenção” desde a pauta

Reunião de pauta numa redação. Qualquer redação. O chefe de reportagem, um chefe qualquer, levanta o assunto. Vocês viram o que fizeram na reintegração daquele prédio abandonado no centro da cidade? Um absurdo! Puseram a polícia lá, armada até os dentes, para retirar as famílias pacíficas e inocentes. Violência sem sentido!

Alguém recente na equipe tenta defender a operação: Diz que a polícia foi cumprir um mandato judicial e os invasores reagiram com uma tempestade de paus, pedras e objetos diversos, Conversa mole, meu caro, corta um editor. É limpeza de área para a especulação imobiliária.

O pauteiro coloca ordem na conversa. Vamos mandar repórter e fotógrafo para mostrar como ficou o lugar depois da operação policial. Em seguida, a equipe percorre as ruas próximas, por onde o pessoal se dispersou.

Vamos providenciar para que estejam lá nossas fontes de confiança: o padre que lida com população de rua, o pessoal que defende “soluções alternativas”, os técnicos do governo anterior (“que fazia um trabalho admirável, dando moradia e salário para os sem teto!”), um especialista da universidade federal com “visão científica e isenta” do problema, o combativo deputado da oposição, alguém do ministério público e um ou dois representantes dos movimentos sociais.

Estamos tentando encontrar a representante daquela organização internacional que consegue financiamentos europeu para nossas ongs. Ela certamente terá muito o que falar sobre a mudança na política pública para a habitação.

A intervenção é aplaudida. Para jornalistas investigativos e imparciais, as medidas adotadas pelo governo anterior, dependendo do tipo de governo anterior, são sempre melhores do que as do governo atual, dependendo do tipo de governo atual. São melhores sempre, ainda que os problemas persistam e até se agravem. O que vale é a boa intenção.

É melhor recorrer às fontes de sempre, carimba o chefe de reportagem, porque elas têm pontos de vista originais e respeitáveis. Partem do princípio de que a autoridade pública, dependendo do tipo de autoridade pública, é claro, está sempre errada. Sabem o que é melhor para as pessoas e valorizam nossos telejornais. Falam bem e dão boas entrevistas.

Com todos esses cuidados, a cobertura sairá redondinha e a matéria esclarecerá a opinião pública. Sem ruídos perturbadores, como a explicação dos responsáveis pela ação, a opinião dos moradores e comerciantes da região (gente intolerante!), o sentimento dos cidadãos que tiveram seus imóveis desvalorizados pela presença dos invasores do prédio ao lado (problema deles!). Bobagens que, francamente, não interessam! Como crianças de nariz escorrendo, esgoto a céu aberto e índios mal vestidos.

Nem se passará perto da discussão sobre a possível existência de uma indústria da ocupação, ou a respeito da exploração daqueles miseráveis, os invasores, pelos profissionais do setor. Afinal, querem moleza? Querem de graça a luz, a água e a net gatunamente fornecidas? Denúncias infundadas, sabemos, contra pessoas que trabalham pelo bem comum. Papo furado para justificar a desumanidade da ação e encobrir a truculência da polícia.

Pronto! Os telejornais da casa apresentarão matérias edificantes. O telespectador comum ficará um pouco confuso, é certo, sem saber exatamente de que lado estamos. Haverá quem desconfie que defendemos as invasões e o vandalismo, em oposição ao cumprimento da lei. Mas, por outro lado, o lado que interessa, a emissora ficará bem com a inteligência progressista e o pensamento bonzinho.

A teoria da premonição

Esta é uma história que não se conecta à vida real nem se baseia em fatos concretos, embora alguns garantam que aconteceu ou está acontecendo. Ficção, conspiração, profecia? O gênero fica ao gosto do leitor.

 

Era uma vez, no tempo impreciso de uma terra distante, ou no tempo distante de uma terra imprecisa, um jovem advogado aprovado em concurso público para juiz.

(“É golpe!” – grita o coro da fauna corrupta das florestas do lugar. “É golpe!” – repete a gritaria dos pântanos.)

Sérgio Moro, vamos chamar assim o nosso personagem, vive longe das maravilhas do centro do poder. Seu tribunal não usufrui das regalias econômicas e culturais reservadas aos colegas das cortes centrais. Mas Moro é determinado.

(“É golpe!” – assanha-se a turba das profundezas do pré-sal. “É golpe!” – se faz ouvir a proteína animal no abatedouro.)

Na noite da nomeação, Moro não consegue dormir. Um enredo inconcebível insinua-se e bloqueia seu sono. Na fantasia, a grande aventura apenas começa.

De forma imprecisa, ele intui a missão redentora cravada em seu destino. Seria ele o encarregado de enfrentar as forças do mal que infelicitam o reino e seu povo? Sim! Serás nada menos do que isso, Moro!

(“É golpe!” – queixam-se as parasitas nas árvores que sugam. “É golpe!” – junta-se a elas todo o pânico do que está por vir.)

Nisso, um sonho põe fim à vigília e atropela a história, sem respeitar detalhes. A voz tonitruante (como em todo sonho, uma voz vinda não se sabe de onde conduz a narrativa) ordena ao juiz estreante:

– Moro, Moro. Agarra a Operação que te espera e faz dela a razão de teu trabalho e de tua existência. Lave esta terra, ataque a jato os vendilhões do reino!

(“É golpe!” – assanha-se o grasnar das aves negras. “É golpe!” – perfuram a terra as ratazanas em fuga.)

– Imploda a indústria da corrupção, derrube a usurpadora do poder do povo, coloque na cadeia o chefe da quadrilha – vai em frente o vozeirão.

– Siga nessa trilha. Abra caminho para o Messias que virá e serás recompensado. O Príncipe te fará Ministro. Com  c  e   r    t     e      z       a…

A voz silencia. O sol clareia a manhã em Curitiba. Moro já não sabe mais o que é sonho e o que é realidade. Curitiba… Nome estranho esse! Serás Ministro!

Tenta pensar num curto discurso de posse. Ficar na praxe de esperar a colaboração de todos? Falar do trabalhão que teremos pela frente? Ou antecipar o futuro brilhante que a todos aguarda?

(“É golpe! Não disse?” – lamentam os abatidos. “É golpe! Não disse? – praguejam os derrotados.)

Apenas um gol de Coutinho

Este momento mágico aconteceu na abertura de um campeonato paulista, entre 1964 e 1965. O ponta esquerda Abel, que estreava, recebeu a bola pouco depois do meio de campo, junto à lateral, e foi driblando em velocidade até a linha de fundo. O cruzamento saiu rasteiro, para trás, e pegou no contrapé toda a defesa do América de Rio Preto, além de vários santistas. Menos o último de branco, que chegava sem pressa. Coutinho dominou a bola com um toque de pé direito na meia lua da área. Coutinho levantou a cabeça, e tudo parou.

Na torcida, cessou a algazarra provocada pela jogada do ponta. Juíz e bandeirinha, agradecidos, puderam se recuperar da esbaforida carreira para acompanhar a rapidez do lance. O locutor da rádio teve tempo de fazer um rápido comercial. A charanga do Salu perdeu o compasso e emudeceu.

Imagem congelada, entre Coutinho e as traves, entre a bola e a linha do gol, são exatos 9 pares de pernas, outras tantas barrigas e bundas (sim, nem todos conseguem girar o corpo a tempo de ver o que acontece às suas costas) e nenhuma trajetória que, pelas leis da física, possa ser vencida em linha reta. No total, 10 figurantes, somando-se o goleiro, que ainda acredita ser possível virar protagonista do momento mágico. Há, sobretudo, o diretor de cena. Mas não apressemos tal segundo, cujo prazer revivo agora, tanto tempo depois.

Diretor de cena? O tempo dá e sobra para burilar à vontade essa imagem. Mudemos para a do enxadrista, que olha o tabuleiro inerte e antevê vinte movimentos adiante, contados os do pensativo opositor sentado à frente. Que tal um cirurgião, adivinhando sob a pele o trajeto perfeito do bisturi e o corte sem riscos? Ou, ainda, um engenheiro com preocupações ambientais? Ele observa a mata e percebe dentro dela, por entre as árvores, o caminho que evitará a devastação. Para não forçar demais a barra, fico com o general no momento decisivo da batalha. Ele verifica a posição das tropas inimigas, identifica suas vulnerabilidades e orienta o artilheiro no ajuste do tiro.

Na meia lua da área em frente à arquibancada hoje de uso da Torcida Jovem, Coutinho é ao mesmo tempo o oficial que comanda e o soldado encarregado de executar o disparo. A comparação faz sentido, porque há garbo no porte daquele atleta de silhueta fora de padrão – reparem como lhe caem tão bem o branco do uniforme e o arredondado número 9 de sua patente – e a ele não se podem negar tanto a autoridade quanto o domínio absoluto do ofício, como em seguida constatará o guarda-valas rival. A bola seguirá seu rumo e nada poderá ser feito, mesmo que o goleiro reúna em si toda a agilidade humana. Ele precisaria mais. Teria de possuir o dom de decifrar e agarrar mortais pensamentos. Teria antes de encontrar um jeito de se livrar do olhar que o imobiliza e o abate preventivamente.

 

Que situação! Estar no sentido contrário do ponto de vista de Coutinho foi pesadelo para todo goleiro da época. Eu não desejaria isso para meus piores inimigos, mas, se teve de acontecer, melhor que tenha sido com eles, os defensores dar metas adversárias. Por isso, não me apiedo da impotência escandalosamente exposta ao sol da tarde de domingo e que está prestes a virar a mais abjeta humilhação. Ao contrário, volto a saboreá-la com o mesmo prazer do instante vivido há cinco décadas, quando enfim a parte interna do pé direito de Coutinho toca pela segunda vez aquela bola.

Por ocasião das comemorações do milésimo gol, o poeta Carlos Drummond de Andrade alcançou o gênio dos campos com versos definitivos:

Difícil não é fazer mil gols, como Pelé.

Difícil é fazer um gol como Pelé.

Coutinho marcou menos, mas impõe um desafio do mesmo tamanho, tanto aos seus colegas de posição no campo de jogo quanto aos que, como eu, tentam sintetizar em palavras a sua arte. Com relação aos primeiros, basta dizer que nunca houve um centroavante como Coutinho. Não há, portanto, termos de comparação. Quanto a mim, ai de mim, como descrever qualquer dos gols de Coutinho, se todos e cada um foram feitos de sutilezas muito próprias? Coloquem-se no meu lugar e concluam igualmente que é melhor nem tentar. Rodemos, pois, o videotape da imaginação, a partir do primeiro giro da bola em direção ao canto esquerdo do goleiro americano.

Diante da multidão de corpos, braços e pernas que povoava a área, havia dois caminhos naturais: o chute forte, e seja lá o que Deus quiser, escolhido por 10 entre 10 dos atacantes menos refinados; e o toque de classe por cobertura, sobre a muralha humana, reservado aos talentosos. Mas a bola já rola pela terceira via, rota exclusiva do craque; e não encontrará obstáculos, todos inesperadamente removidos pela imprevisibilidade da opção. E manterá a velocidade contínua, apesar do contato permanente com a grama. E ultrapassará a linha da cal a três palmos do poste, já iniciando a desaceleração. E se acalmará aquém do abraço das redes, enquanto o estádio, ao contrário, destrava o grito. E pula, e canta, e dança. E sorri.

Coutinho não espera o desfecho. Antes da primeira comemoração e da prostração do goleiro sobre a terra batida do seu lote maldito de campo, nosso Carne Frita da bola grande, nosso Oscar Schmidt de chuteiras, nosso Tiger Woods sem tacos já se encaminha para o círculo central. Quase se espanta com tamanho alarido diante de algo tão simples como fazer mais um gol.

Arrogância, outra carta do baralho da mídia

Na década de 1960, o Estadão desancou a APAE, associação de pais e amigos das crianças excepcionais, por obra de um editorialista português, gente fina, que agiu a pedido da direção. O redator escreveu, e o jornal publicou, que tais pessoas, tão orgulhosas de seus brilhantes rebentos, os excepcionais, melhor fariam se os exibissem em programas domingueiros de TV. Foi algo assim, bem chocante.

Em outro editorial da época, o jornalão fez uma “advertência” ao papa de plantão, em assunto da Igreja. Tipo: “Recomendamos à Sua Santidade que se abstenha de…” Literalmente, ensinou o Padre Nosso ao vigário. Pois arrogância é outra carta do baralho da imprensa, tema deste blog outro dia, quando o assunto foi a reação raivosa da mídia, quando contrariada. Falava da Folha

No tempo em que os editoriais do Estadão cometiam tais atrocidades, a Folha nem publicava editorial. Não tinha opinião. O máximo que fazia era abrigar colunas sociais, abundantes também em outros diários do grupo. Num deles, um colunista divertia-se identificando os “hóspedes do cinco estrelas da Rua Tutóia”, ou seja, os perseguidos que a ditadura mandava para o DOI-Codi. O nome Vladimir Herzog teria constado de um desses check-ins.

Dos 1980 para cá, a Folha publica editoriais, até na primeira página, de vez em quando. Nesta segunda-feira, dia 29 de outubro, o texto “Constituição acima de todos”, que divide a capa com o noticiário das eleições, não é só ironia com o mote de campanha do presidente eleito. É, também, a reafirmação do ódio que o grupo empresarial passou a nutrir pelo “capitão reformado”, desde que ele reagiu a uma matéria que considerou tendenciosa. A mídia odeia ser acionada na justiça, direito de todo cidadão e instrumento legítimo nas democracias.

Até aqui, estamos falando de ira e raiva. No fim do editorial, vêm a soberba e a arrogância. Achando-se no direito de substituir os quase 60 milhões de votos que legitimam a eleição de Bolsonaro, exige que o presidente seja diferente do candidato. Mas como, se foi justamente com o que falou e prometeu que conquistou a vitória? Está sugerindo que, tal qual Dilma, traia o eleitorado e troque o que anunciou pelo que o jornal acha melhor?

É exatamente isso. O jornal arroga-se impor a Bolsonaro que mude, que esqueça o que falou nos últimos meses. O tom é quase de ameaça, porque “a Folha ficará onde sempre esteve”. Pena que não localize precisamente esse onde. É o de agora? O de anteontem? O dos idos de 1964?

PS 1: Só para constar, o blogueiro votou em branco, no último domingo

PS 2: O primeiro parágrafo foi reescrito com correções de Ludenbergue Góes

Enfim, a paz! Ou não?

Ainda bem que acaba logo, disse Ana Maria Géia. Talvez amanhã, no máximo antes dos finados. Amém, rogo eu, porque aqui em casa e nas proximidades a polarização pegou pesada. Como em toda parte, acho.

Só Nina e Chico, os poodles, não se envolveram. Continuaram brigando pelo lugar ao meu lado na poltrona do vovô, na santa paz dos justos o resto do tempo. Por falar nisso, o netinho Bento, do alto dos seus dois anos e meio, nem deu bola: preferiu continuar consertando bicicletas, brincando de Batman e vendo a Luna.

Entre os demais, jogo duro. Tipo casa de palmeirense e corintiano, sejam quais forem seus gêneros, e ainda mais quando algum “intrusal”, forma a dupla de mais de dois e invade o campo. Aí, a compreensão falece e a intolerância prevalece.

De fato, foi um período triste. Noite dessas, jantando com amigos, a mulher temperava cuidadosamente a salada, quando o marido fez um comentário sobre a quantidade de sal que ela despejava nas folhas. Falávamos de amenidades, mas a observação entornou o caldo, acendeu o estopim da ira, partidarizou irremediavelmente o menu.

“O que você tem contra o sal? Pior é o açúcar, que você consome em doses cavalares. E aquelas ridículas jujubas coloridas e cafonas, que você esconde em casa… Pensa que eu não sei? Não admira que esteja gordo feito um porco!”

Impossível o restaurante não ouvir o edificante diálogo. A nutricionista da mesa vizinha, como ainda chocada explicaria depois, tentou conciliar.  “Sal, açúcar… Vejam bem…” De certa forma, conseguiu unir o casal. “Alguém pediu a tua opinião?”, perguntou cavalheirescamente o marido. “Meta-se com a sua vida“, reforçou com sua melhor fofura a adoradora do sal.

Aproveitando o gancho das jujubas coloridas e cafonas, fiz uma piada sobre o artista Romero Britto, mas ninguém riu. Novidade nenhuma. Sou tão ruim de piada que a Daysi e as meninas às vezes choram, e tenho de explicar palavra por palavra. Entre elas, ganhei o apelido de stand-up comedy sem graça.

Nesse clima, fomos do prato principal ao cafezinho, passando pela sobremesa, que o gordo, só de birra, fez questão de pedir.

O ar ficou irrespirável, como o Torero jamais descreveria. A comida desceu mal, o vinho avinagrou e as pessoas não mais tiraram os olhos da gente. Aliviados saímos do restaurante e nos despedimos deles. Que, adicione-se, voltaram para casa cada um no próprio Uber.

Aqui na família, pelo menos teve voto pra todo candidato e partido. Democraticamente. Consta que Eymael foi sufragado por uma prima muito cristã, morta de pena ao ver o nanico sem tempo na TV e excluído dos debates. Pode-se chamar de “voto piedoso”, pois é com ele que a beata espera ganhar o paraíso.

Só os muito avarentos como eu (avarento ou fascista, como fui meigamente xingado por uns, em contraposição ao ladrão virtualmente escrito nas metafóricas pedras tacadas furibundamente pelos outros), só esses sovinas, dizia, regatearam o voto e tentaram cair fora da cruzada do bem contra o mal. Tolos! Nem assim ficamos imunes. No meio do fogo cruzado, mas com amor e ternura, viramos ratos covardes, na unanimidade dos contendores.

Mas agora, no máximo até os feriados de novembro, as coisas voltarão ao normal. Tudo entrará nos trilhos. O bom é que o país não ficará melhor ou pior com qualquer um dos dois no Alvorada. Mesmo porque (não resisto à maldade), como piorar o que foi feito com tanto capricho nos últimos 16 anos de governos petistas?

E, além disso, voltará a possibilidade de uma pizza com os amigos. De um cineminha, de uma pelada no clube, quem sabe de um fim de semana na pousada da praia, como fazíamos antes do grande cisma. Pensando bem, pode rolar até namoro.

Antes que alguém fale “Bolsonaro”, o abre-te sésamo da discórdia.

Imprensa raivosa

“Desse baralho eu entendo”, disse uma vez o antigo treinador de futebol Rubens Minelli, irritado com o tratamento que recebia da CBF. O corporativismo dos jornalistas e o poder de retaliação das empresas de comunicação – o baralho da imprensa – são talvez menos insondáveis, porque se escancaram barulhentamente ante qualquer contrariedade.

A Folha e seus coligados UOL e Datafolha nem disfarçam o rancor que passaram a nutrir de um dos oponentes da disputa presidencial, após o questionamento da isenção de seu grande feito. A denúncia de utilização de recursos privados para fomentar ataques difamatórios contra o adversário é mesmo gravíssima.

O jornal tinha a obrigação de publicar, mesmo que a apuração tenha sido tão frágil e leve a assinatura de uma profissional assumidamente situada num dos fronts da disputa. Da mesma forma, porém, é direito do acusado refutar a acusação e até colocar em dúvida a imparcialidade da matéria.

Nada demais. Nada que não aconteça a toda hora, em qualquer parte do mundo. Nada que não se resolva nos foros competentes, nos lugares civilizados. O problema é que, por aqui, a mídia não consegue conviver com a contradição, atitude que exige de outros setores da sociedade. Em geral, reage com fogo de artilharia contra o petulante desafeto.

Teria sido mais decente a Folha anunciar apoio ao candidato de sua preferência em editorial de capa, como já fez em outras eleições, e deixar o noticiário em paz. Alguma dúvida sobre a ira sagrada do jornal? Vejam a primeira página de hoje, acompanhem o noticiário das eleições pelo UOL. É só ter olhos para ver!

Vlado, 43 anos – Parte III

(Num 25 de outubro, em 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado pelos torturadores do mais tenebroso porão da ditadura militar brasileira: o DOI-Codi de São Paulo. Meses depois, durante greve dos metalúrgicos da Capital, a vítima foi o operário Manoel Fiel Filho. Os dois episódios acirraram a crise interna e iniciaram o processo de enfraquecimento do regime imposto pelo golpe de 1964)

 

Na manhã do domingo, com a notícia da morte de Vlado, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, na Rua Rego Freitas, junto à Consolação, começa a receber um movimento anormal. É lá que os jornalistas se reúnem para se informar, para se consolar e para discutir atitudes. De lá, saem às vezes — para o velório do companheiro, para o enterro na manhã da segunda-feira, para trabalhar — e logo voltam.

É quase uma vigília, num movimento de autodefesa. Teme-se pela vida dos companheiros que continuam presos e pela própria segurança. Todas as noites, realizam assembleias disfarçadas de sessões de informação. A plateia pode se manifestar, mas não há votações. Em determinado momento, alguém do sindicato, em geral o presidente Audálio Dantas, morto recentemente, faz um relato dos acontecimentos do dia e fecha o discurso com as decisões da diretoria.

O texto tem clara preocupação legalista: dentro da ordem, os jornalistas manifestam sua perplexidade, pedem explicações aos responsáveis pela integridade física dos presos, mas não deixam que sua dor seja usada por aproveitadores. Exigem respeito ao companheiro morto, à memória de Vlado. Na forma de notas oficiais, essas mensagens são enviadas também aos jornais.

O Estadão e o JT, liberados da censura em janeiro daquele ano, no centenário do grupo jornalístico, assumem papel decisivo no processo informativo que levará muitas pessoas, como o advogado Moraes, a reformular seus sentimentos com relação à ditadura. Numa linha que supõe a defesa da autoridade presidencial, os jornais abrem espaço para denúncias contra os excessos do aparelho repressivo, para as posições dos jornalistas e para a movimentação dos políticos de oposição e dos representantes da sociedade civil.

O outro lado é o próprio governo, que se manifesta determinando a abertura do inquérito para apurar o “enforcamento” do jornalista, sua disposição de continuar combatendo a subversão e de manter o projeto de abertura política.

A voz do porão, nas notas plantadas por militares ligados aos centros de informação e por policiais envolvidos com a repressão, perde-se nos pés de colunas ou ecoa nas manchetes de diários como a Folha da Tarde, com menor credibilidade. A Folha de S.Paulo, de acordo com estudo feito pela pesquisadora Líliam Perosa (A da cidadania), tenta equilibrar-se entre a antiga subserviência e uma recente, mas ainda tímida, tomada de posição.

 

Tarde de 31 de outubro de 1975. Há tanta gente na praça quanto dentro da Catedral da Sé, em frente. Fica para o registro da história o número de 8 mil pessoas no culto ecumênico de 7º dia da execução de Vladimir Herzog no DOI-Codi paulista.

Há muita gente, também, nas janelas e sacadas dos prédios que, então, cercavam a Sé, ainda não ampliada e juntada à Praça Clóvis pela estação do metrô. Alguns desses espectadores usam câmaras fotográficas e são fotógrafos dos jornais, ali colocados não só para obter bons ângulos da manifestação, mas também para documentar possíveis excessos da polícia.

O secretário da Segurança Pública, coronel Erasmo Dias, ao longo da semana vinha tentando desestimular o comparecimento ao culto, com o pretexto de que poderiam ocorrer conflitos e atentados à ordem provocados por militantes de esquerda. Por via das dúvidas, armou também mais de 300 barreiras na região central da cidade, engarrafando o trânsito e prejudicando o tráfego em direção à Sé. Há, também, entre os fotógrafos, agentes de segurança disfarçados, cujo objetivo é identificar gente procurada pelos órgãos de segurança.

A polícia, porém, fica à distância e não ocorrem distúrbios. Em paz, como pedem D. Paulo, o rabino Henry Sobel e o pastor Jaime Wright do altar da catedral, o culto se encerra e as pessoas voltam em calma para o seu dia a dia.

Os três religiosos e mais o jornalista Audálio Dantas, que também participou ativamente da cerimônia, estão satisfeitos e aliviados. Com o culto, pela primeira vez desde que o AI-5 havia entrado em vigor, a ditadura havia recebido uma resposta à altura da sociedade. Sem violência, sem dar margem a um recrudescimento ainda maior da repressão, mas firme e decisiva para os rumos que o país tomará a partir de então. Além disso, cada um tem suas razões particulares.

D. Paulo vê o trabalho à frente da Comissão Justiça e Paz da Diocese de São Paulo afinal atingir a opinião pública. Sobel, porque desde o início colocou-se contra a versão do suicídio, informando no mesmo dia do enterro que o corpo de Vlado fora colocado no “campo dos homens”, já que nada tinha feito contra si mesmo, e não nas covas destinadas aos que tiram a própria vida. Wright vivia um drama pessoal parecido com o da família Herzog: seu irmão há tempos estava desaparecido e não havia a mínima informação sobre o paradeiro dele.

Para Audálio, era o fim de uma semana terrível, em que foi necessário negociar cada passo do sindicato com as autoridades militares e civis e, ainda, com a ajuda dos companheiros de diretoria, conter os ânimos dos jornalistas mais exaltados, cujas propostas de reação poderiam colocar tudo a perder.

(fim)

Pelé, 78 anos

Um momento mágico do Rei, que na época os locutores preferiam chamar de Fera

O atarracado lateral esquerdo do Botafogo do Rio calcula o longo arco que a bola lançada pelo goleiro do seu time começa a descrever na sua direção. Prepara-se para recebê-la com elegância no peito e deixá-la cair com graça na grama, antes de acionar o pé esquerdo e iniciar o avanço.

Já pressente os aplausos, quando, de rabo de olho, vê a Fera com o temível uniforme branco do Peixe iniciar a corrida. O perigo está distante, ainda, uns 30 metros, mas convém mudar os planos. Melhor deixar a bola dar um primeiro pique no chão e chegar amortecida.

Por isso, recua na diagonal do campo na direção da linha lateral, enquanto a bola continua sua viagem. Há espaço suficiente para a marcha a ré e tempo de sobra para checar a aproximação do inimigo. Descartada a matada no peito, continuam valendo as demais manobras.

Dará o primeiro toque com o lado interno do pé esquerdo e, em seguida, virá a rápida puxada com o lado externo, aproveitando a rotação do corpo para a frente.

Pronto. Subjugada a bola, ele terá diante de si todas as possibilidades. Pode ser uma tabela com o companheiro mais próximo ou um lançamento longo até a área inimiga. A torcida vai gostar de qualquer forma. Pode até sair um gol.

Mudança de planos. É preciso recuar ainda mais, porque o primeiro pique não foi suficiente para garantir o controle seguro da bola e o demônio agora parece perto demais.

Melhor esquecer os aplausos, adiar o projeto de gol, simplificar as coisas. Ganhar mais espaço, deixar que as leis da física amansem naturalmente essa outra ameaça redonda.

A nova ideia é bater chapado na bola e mandá-la de volta ao goleiro, afinal um dos dois responsáveis por aquela situação incômoda. O outro é esse diabo negro que vem decidido a lhe complicar a vida. Danem-se as vaias, será melhor assim.

Nem isso, porém. Em pânico, o botafoguense perde a noção dos limites do campo. Ultrapassa a linha, desequilibra-se e cai sentado na grama. As pernas abertas são como o ninho que a bola escolhe para se aquietar.

O drama que as arquibancadas acompanharam apreensivas vira comédia. O Maracanã explode em gargalhada.

No mesmo time

Recebi um vídeo da querida Nair Suzuki, na semana passada. É um discurso do ex-presidente Barack Obama sobre eleição e democracia. Ele comenta o resultado da disputa presidencial norte-americana, no contexto da derrota de Hillary Clinton para Donald Trump. O momento era constrangedor para os democratas e penoso para o presidente, que não conseguiu fazer a sucessora. Obama estava sereno, porém.

São menos de dois minutos, que cabem todinhos no atual momento, no nosso contexto e nas circunstâncias em que transcorre a eleição brasileira. Há pelo menos duas passagens marcantes. Na primeira, Obama diz que, se derrotados, devemos seguir em frente, “com a presunção de boa fé em nosso povo”. Tal presunção, garante, é essencial para o funcionamento da democracia.

Por aqui, à direita e à esquerda, temos o hábito de culpar o eleitor – ou seja, o povo – por escolhas que julgamos erradas. Às vezes, lamentam os destros, são os nordestinos, pobres e pouco instruídos, que erram induzidos por gente que só tem olhos para as benesses do poder, os cargos nas estatais, as vantagens da Lei Rouanet. Outras vezes, vomitam os canhotos, é a classe média tonta que cai na conversa mole das elites econômicas, e vota em políticos interessados em perpetuar privilégios, a favor dos ricos e contra os pobres.

Na cabeça dos perdedores, de um lado e de outro, é impenetrável a ideia de que existe alguma sinceridade a orientar o voto popular e a dirigir o resultado das urnas. Os que se julgam perfilados com o “bem” acham inacreditável o eleitor preferir representantes do “mal”, naturalmente os seus adversários.

Nossos queridos derrotados nem temem o ridículo, quando difundem explicações para seus fracassos. A terceirização da culpa de forma recorrente aponta para o inocente cidadão, que apenas exerceu seu direito inalienável de escolher.

Essa imbecilidade quase sempre vem acompanhada de denúncias de fraude eleitoral e de queixas de golpe contra as instituições. Inconformismo total, a partir do qual decorrem incompreensão, preconceito, raiva e ódio, muito ódio, para despejar em conversas de botequim, posts, textos para a mídia, teses acadêmicas, discursos inflamados nas tribunas dos parlamentos.

É que essa gente, além do mais, descrê dos benefícios da alternância no poder. Um dirigente tucano chegou a prever, após a primeira eleição de FHC, uma permanência mínima de 24 anos (se bem me lembro) do PSDB no Palácio do Planalto. O reinado, porém, durou um terço do previsto. Já os sucessores petistas fizeram projeções ainda mais duradouras. Puseram fé, e talvez ainda ponham, na eternidade. O sonho acabou com Dilma, e Lula foi parar na cadeia.

Pessoalmente, desde minha primeira experiência de escolher um presidente, tenho alternado alegrias e decepções, sem deixar de acreditar que o voto é o grande instrumento da democracia. Quando Collor foi eleito, para desgosto de quem “oPTou” pelo “Lula-lá”, não senti na ressaca a sensação de fim de mundo. E achei o impeachment precipitado, por entender que errar faz parte do aprendizado do eleitor, tanto quando sofrer as consequências até o fim.

Hoje, não pressinto igualmente o fim do mundo, embora me sinta em situação ainda pior do que aquela de trinta anos atrás. Naquela eleição, opunham-se também dois polos, mas eu tinha uma esperança, quase certeza, de que existia um lado melhor para o País. Agora, não. As alternativas que restaram são igualmente funestas, pelo que representam de retrocesso no rumo do totalitarismo.

Uma opção remete ao passado tirânico e cruel, feito de sangue e da supressão dos direitos e garantias individuais. Além do que, pela carência de projeto do seu candidato, alimenta suspeitas sérias de ameaçar a democracia.

A outra conduz a um tempo que mal passou, e continua oprimindo os brasileiros com suas maléficas consequências sociais, políticas e econômicas. Obra das  malas artes de uma facção determinada a não apenas recuperar o governo, mas a tomar o poder absoluto, no dizer de um de seus próceres. Não existe golpe mais anunciado.

É aí que entra o segundo trecho notável do discurso de Obama. No fim do vídeo, comparando a disputa político-eleitoral a uma corrida de revezamento, na qual se ganha e se perde, ele ensina: “Você pega o bastão e corre o melhor que puder, com a esperança de que, quando for a hora de passar o bastão, você esteja um pouco à frente, você teve progresso. Eu posso dizer que nós fizemos isso. Eu quero garantir que a passagem do bastão seja bem executada, porque acima de tudo estamos todos no mesmo time”.

Estamos todos no mesmo time. Por aqui, qualquer que seja o resultado das urnas do próximo domingo, vencedores e derrotados, nosso melhor destino será continuar correndo na mesma direção. Persistir na busca dos objetivos comuns de povo e nação. Seguir defendendo as mesmas cores.